domingo, 8 de setembro de 2024

Ascensão ao Teide, pelo trilho 0.4.0 (2)

3718 metros de emoção ... una aventura del mar al cielo... (1ª etapa)

Como em todas as noites que antecedem as grandes "aventuras" ... a noite de 6 para 7 de setembro, em Puerto de la Cruz, teve a ansiedade do acordar cedo. Tínhamos chegado a Tenerife ao início da tarde, como relatei na crónica anterior ... e o Teide até já se me tinha apresentado, imponente!
Playa del Socorro, 07.09.2024, 06h50 - Estava lançado o desafio de subir do mar aos quase 4000m de altitude do Teide
Quando começou a esvoaçar o sonho de subir o colosso que domina as ilhas atlânticas, pensei fazê-lo num dia. Só a subida, claro ... que eu nunca gostei de correr ... nem sou extraterrestre. A sigla 0.4.0, pela qual é conhecido o percurso PR-TF41 da ilha de Tenerife, simboliza precisamente a proeza de ligar, numa só jornada, o nível do mar - 0 - aos quase quatro mil metros do Teide - 4 - e voltar ao mar - 0 - o que totaliza 56 km de uma diversidade de tipos de trilhos e de pisos, em que o único denominador comum ... é o desnível. Tal proeza está apenas ao alcance dos adeptos do trail (e muito poucos de entre esses) ... mas mesmo assim é quase inacreditável que o melhor tempo conseguido até hoje para aqueles 56 km e 4 km verticais ... seja de 6 horas e 15 minutos! Bem ... mas uma hora antes do nascer do Sol lá estava eu a partir, sozinho, da Playa del Socorro.

Primeiros metros da aventura ...
já só faltavam 27 km 😲
Os meus três companheiros de digressão só não estavam à cota 0 porque os quartos eram no 7º andar, em Puerto de la Cruz. O plano era subirem o Teide no teleférico, encontrávamo-nos na estação superior - La Rambleta - eu e o meu "mano velho" fazíamos o cume e descíamos os quatro de novo no teleférico. Tínhamos as reservas e o permiso obrigatório para o cume para o dia 8 ... mas o bom senso e o estudo atento das características dos trilhos levou-me a optar por dividir o desafio em duas etapas. Acrescentando apenas menos de 2 km, era possível o "resgate" na estrada TF-21, a carretera del Teide, o que me permitiria gerir a subida sem o stress de ter de chegar a tempo para fazer o cume e descer no último horário do teleférico, às 18h30. E portanto, aí estava eu no dia 7 ... a caminhar del mar al cielo.

Nasce o dia no Lomo El Boliche, 07h55, 07.09.2024 ... y la mar ya se iba quedando lejos...
Miradouro El Lance e estátua de Bentor, mencey de Taoro, líder da
resistência aborígene ante as tropas castelhanas - 526m alt., 08h45
Nestes primeiros repechos, comecei-me logo a aperceber do nível de esforço exigido. A encosta de Tigaiga ao miradouro de El Lance são quase 200 metros de desnível, que se vencem em pouco mais de 1 km...
Sim ... lá em baixo é mesmo a Playa del Socorro, de onde saíra quase duas horas antes.
Icod el Alto (580m) e Miradouro de La Corona (780m) ... e pela primeira vez surge-me o Teide, imponente!
Venci os primeiros mil metros de altitude entre os miradouros de La Corona e de El Asomadero. Eram dez horas de uma manhã de sonho, mas as nuvens começavam a dar origem a um nevoeiro crescente ... à medida que avançava por um estreito e sinuoso trilho. As povoações tinham acabado. A descer, passaram por mim três corredores de trail ... à velocidade da luz! O trail, sinceramente, não é para mim!
Miradouro El Asomadero (1100m alt.), 10h15 ... menos de 8 km percorridos em mais de 3 horas...
Piedra de los pastores (1600m alt.), 11h30 ... horas de
almoçar, na magia do nevoeiro 😀
Em pleno trilho ... uma pequenina imagem, no
interior de uma pequenina "capela"
A esta hora estava com quatro horas e meia de marcha e pouco mais de 11 km percorridos. Comecei a abençoar a hora em que optei por dividir o desafio em duas etapas. Numa única jornada ... estaria já na ansiedade de ter de chegar a La Rambleta no máximo às três da tarde. Faltavam sensivelmente 16 km ... mais do que já tinha percorrido ... e com os maiores declives e os pisos mais duros! Com estes pensamentos a bailarem ... pensei também que o Universo só pode ser Inteligente. Universo? Deus? Seria de me estar a aproximar do Céu que invoquei várias vezes a ajuda de forças "desconhecidas"? E o Universo respondeu-me na forma dos espectaculares raios que começavam a atravessar os últimos pinheiros; antes, tinha arrefecido, com o nevoeiro e até as gotículas de cacimba que caíam ... depois ... depois o Sol aqueceu-me o corpo e principalmente a alma ... e o Teide reapareceu esplendoroso à minha frente!
Estava, literalmente, acima das nuvens!
Com 14 km percorridos, pouco depois das 13h30 chego aos 2000m de altitude ... e o Mundo tornou-se meu...
Sentia-me ao mesmo tempo eufórico e em paz ... uma paz que a alma já buscava. Avançava agora por entre uma vegetação adaptada às condições extremas do ambiente vulcânico, com solos pobres, alta insolação e grandes variações de temperatura. Os pinheiros ficaram para trás, dominavam agora os tufos amarelados da retama del Teide, salpicados aqui e ali pelas inflorescências das tajinastes, um dos símbolos do Parque Nacional. E nisto ... surge uma pequena Ermida.
Ermita de la Fortaleza, ou Cruz de Fregel (2090m
alt.), 14h00
Degollada del cedro, junto à Cruz de Fregel. À minha frente tinha a Cañada de los Guancheros
Na Cruz de Fregel, surgiram-me pela primeira vez outros caminheiros, ambos em sentido contrário ao meu. Estávamos relativamente próximos da estrada TF-21, a carretera del Teide; ambos tinham vindo de El Portillo, um jovem espanhol que ficou espantado quando lhe disse que tinha 71 anos (dava-me 58... 😂) e uma jovem alemã que, segundo me disse, fazia montanhismo ao sabor de cada minuto. Dormia na montanha, também me confidenciou; não sei se chegou a dormir ... não sei se saberia que a amplitude térmica, ali, tem variações de mais de 20º C. Mas entretanto ... havia que tomar opções...

mais emblemáticos do Parque Nacional
Cañada de los Guancheros, um dos locais
Eram três da tarde. Faltavam mais de 12 km para o cume do Teide ... e quase dois mil metros de desnível! Mais uma vez abençoei a opção de fazer duas etapas; hoje ...
A 1ª etapa da épica subida ao Teide desde a cota '0'
(Clique aqui para ver no Wikiloc)
           Nota: a velocidade média indicada é a velocidade média em
                     movimento ... quando num desafio deste tipo é mais o
                     tempo parado do que em movimento; a velocidade média
                     real é de ... 2,08 km/h ... 😏
não tenho dúvidas de que não conseguiria numa. Na TF-21, havia três pontos em que a minha "equipa" me podia "resgatar" ... e a decisão foi tomada face a algo que nunca me tinha acontecido: a falta de água! Normalmente, 1 litro de água chega-me (e muitas vezes sobra-me), mesmo em jornadas duras de montanha. Mas desta vez ... já vinha a racionar a água há umas boas duas horas. Dos três pontos possíveis, optei pelo mais perto, rodeando a sul o pico de El Cabezón; cerca de 1,7 km de descida ... que no dia seguinte teria naturalmente de voltar a subir.
E assim ... regressei à "base" em Puerto de la Cruz de coração e alma cheia. Como o meu fiel Locus registou ... a etapa teve quase 2300 metros de desnível acumulado de subida, num total de sensivelmente 18 km (16,2 a caminho do Teide).

(Escrito após o regresso a Lisboa)

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