Oitavo dia de Caminho... 18 de junho. Em San André de Teixido, o dia acordou limpo e sereno. Tínhamos cumprido a primeira meta... venerado
o primeiro "apóstolo". A Madalena escreveria...
|
Sobre San Andrés de Teixido,
18.06.2025, 09h50
|
O caminho vai entrando em nós devagar
Como água a correr, decidida, ao passar...
Tudo rola...envolve, encanta e pisca o olhar
Num silêncio de passos, o esforço a calcar
Como balde no poço, sedento a afundar...🙏
Até
Porto do Cabo, a etapa era das mais curtas, pouco mais de 15
km... pelo que nos demos ao luxo de sair mais tarde... depois de um belo
pequeno almoço na
Casa Rural de San Andrés de Teixido. Convinha ter forças para subir a íngreme ladeira para o
Chao do Monte, de onde se tem a imponente panorâmica da foto acima e
onde se encontrava um numeroso grupo de geólogos, algo admirados com dois
septuagenários de mochilas às costas... e a quem pedimos para nos tirarem a
foto.
|
Capela de S. Roque de Reboredo, 10h50
|
|
Ao fundo o mar e ria de
Cedeira ... e uma
|
|
pausa e descanso... tínhamos tempo de chegar...
|
|
Porto do Cabo e rio do mesmo nome, 15h10
|
|
E a nossa casa em Porto do Cabo. Não, não havia morcegos🦇...
|
O
Caminho do Mar
segue aqui o
Camiño Vello de San Andrés de Teixido. Já por aqui tinha passado em 2017, com a minha peregrina do Caminho da
Vida, quando pela primeira vez
conhecemos Teixido.
Em
Porto do Cabo, a "
Casa do Morcego" foi o nosso "albergue", com direito a jantar e pequeno almoço (deixado
preparado)... e à simpatia do casal de proprietários. O nome da Casa? Sim,
havia morcegos... mas antes das obras de reabilitação e transformação em
Casa Rural. No dia seguinte, o
Camiño Vello havia de nos levar a
Xuvia e a
Neda, onde o
Caminho do Mar
se funde com o Caminho Inglês.
|
Ermida de Liñeiro (ou Capela
da Fame) e Embalse
|
|
de las Forcadas, 19.06.2025, 08h30 / 08h50
|
|
Trabalhadoras incansáveis, naquela manhã enevoada do 9º dia de
Caminho
|
|
Capela de Santa Lucía (penúltima foto) e Igreja de
Santo Estevo de Sedes, 11h55 / 12h10
|
Sempre para sul, o Caminho dirigia-se agora a passos largos para o
Río Grande de Xuvia, que depois acompanha
até à foz, na Ria de
Neda e de
Ferrol. Quando no ano passado me
deliciei com a
Ponte e Moinho de Xuvia... não imaginava o paraíso que agora se nos deparou a montante.
|
Río Grande de Xuvia, entre a
Presa do Rei e o
Muiño de Xuvia, 19.06.2025, 14h00 /
14h40
|
Ao chegarmos ao
Moinho de Xuvia... estávamos no
Caminho Inglês, que percorri o ano passado e que a Madalena também já tinha percorrido. Mas
não se lembrava da grande magnólia existente junto à ponte e que a deliciou 😊
|
Na magnólia de Xuvia, 14h45
|
Desde Ribadeo, só tínhamos visto a rapariga espanhola que ia e vinha de
Viveiro para etapas soltas do Caminho do Mar e da Rota do Cantábrico. Em
Xuvia e em
Neda, assim que entrámos no Caminho Inglês... já se
viam peregrinos. No Albergue, conhecemos um jovem casal italiano que tinha
começado em
Ferrol, com uma ainda mais jovem peregrina... em carrinho
de bebé!
|
Neda e a ria, vistas do
Paseo de Xuvia, quando fomos jantar
- 19.06.2025, 20h45
|
Em
Neda termina o
Caminho do Mar, ou melhor, junta-se ao Caminho Inglês. Mas no dia seguinte continuaríamos
no
Caminho dos Apóstolos, já que os "apóstolos" ligados a este Caminho
são três: Santo André (de Teixido), São Rosendo e, claro... Santiago. O mar...
esse iria ficar definitivamente para trás. Ao contrário contudo do Caminho do
Mar, o Caminho dos Apóstolos não está homologado pela Catedral de Santiago.
Como referi na
introdução, este projecto nasceu das informações recebidas essencialmente do amigo
Roxelio - o
miñoto do norte 😁- que faz parte de um grupo que reune os
dados históricos para o implementar. De certo modo, esta segunda parte do
nosso Caminho seria portanto um Caminho "de aventura", ou "à aventura" -
un Camiño por descubrir - tal como o meu
primeiro Caminho de Santiago, actualmente
Caminho da Geira e dos Arrieiros.
|
E o dia começava pela fabulosa
|
|
Um desbobinar e desbravar do paraíso, 08h30 / 12h00
|
A
Senda do Belelle
tinha-me sido referenciada pelo Roxelio como a ligação mais natural de Neda ao
concelho de
A Capela e às memórias de
San Rosendo. Percurso sinuoso, com desníveis acentuados... mas
fabuloso! Dir-se-ia que estávamos de novo no paraíso, atravessando
fragas máxicas nunha Galicia máxica. Nalguns pontos, contudo, a
senda precisa limpa, inclusive junto às belíssimas cascatas próximas da
antiga Central Hidroeléctrica que alimentava a cidade de Ferrol. O escarpado
do terreno e a muita vegetação escondem parcialmente a
fervenza... que
se ouve muito mais do que se vê.
|
12h30 / 13h10 - Próximo de Formariz,
comemorámos os 200 Km de Caminho... incluindo um refrescar nas águas
do
Belelle
|
Neste aprazível local deixámos o
Belelle, rumo à Capela de
Nosa Señora das Neves, acompanhando agora sempre que possível a
GR55, a que me referi na
introdução. A
GR55 intitula-se o
Camiño Medieval a San André de Teixido... mas não passa nem em
Porto do Cabo nem em
Xuvia, onde há
evidências históricas de peregrinações medievais de e para Teixido. Pelo menos
a norte de
A Capela, a
GR55 (que viríamos a constatar que por vezes não tem quaisquer marcações) é
fundamentalmente baseada no percurso dos senhores feudais da zona, para cobrar
os tributos dos camponeses.
|
E às 14h30 estávamos em As Neves,
junto ao Cruzeiro e à Capela de Nosa Señora das Neves
|
As Neves e o
Concello de A Capela
guardam amplos testemunhos da vida e obra de
San Rosendo... o segundo "apóstolo" deste
nosso Caminho. De família nobre, nasceu S. Rosendo no ano 907 em Santo Tirso,
recebendo desde cedo uma formação intelectual pouco comum naquela época. Foi
uma figura marcante da história religiosa e política da Península Ibérica no
século X,
|
Interior da Capela de Nª Sª das Neves
|
tendo fundado o Mosteiro de Celanova, um dos centros beneditinos mais
importantes da Galiza, e o
Mosteiro de San Xoan de Caaveiro, ali... nas
Fragas do Eume. Não sendo obviamente um dos Apóstolos de
Cristo,
San Rosendo foi Apóstolo por toda a
Gallaecia. Já o
"víramos" como Bispo de
San Martiño de Mondoñedo, na
segunda etapa
deste nosso... Caminho dos Apóstolos.
No final do Séc. XIX, o Mosteiro de Caaveiro encontrava-se em estado
avançado de ruína. Várias relíquias e objetos litúrgicos foram recolhidos pela
Igreja. No entanto, não foi atribuído grande valor à alba, ou túnica, de
San Rosendo, considerando-a de menor importância ou de autenticidade
duvidosa, pelo que a peça não foi levada para nenhum centro eclesiástico.
Acabou por ser recolhida pela comunidade local, que a guardou na sua Capela
dedicada à Virgem. A Capela de
Nosa Señora das Neves
tornou-se assim um relicário, preservando a alba de San Rosendo num
armário belíssimo... aberto apenas em ocasiões especiais.
É aqui que entra o Roxelio, que nos esperava em
As Neves. Através da sua influência, o
Roxelio conseguiu não só a chave da Capela, como também que pudéssemos ver
aquela relíquia... a alba de San Rosendo. Moitas grazas, Roxelio... es extraordinario!
|
Que privilégio! Somos das poucas pessoas
|
|
que já viram a Alba de San Rosendo !
|
|
A Virgem Maria e San Rosendo, na Capela de As Neves
|
Foi com natural emoção que vivemos aquele privilégio. Como a Madalena tinha
escrito ...
O caminho vai entrando em nós devagar
... mas naquele momento sentimos que o reconhecimento oficial do
Caminho dos Apóstolos... talvez tenha nascido ali. E assim fomos pensando no
quilómetro e meio que faltava até ao já meu conhecido
Hotel Fraga do Eume. O Roxelio ofereceu-se para nos levar as mochilas no carro... o que
naturalmente dispensámos. As mochilas fazem parte do nosso corpo...
À porta do Hotel lá estava o cartaz que já conhecia: "Caminho dos Apostoles". Ahh, "Caminho Irlandes", também, mas... "o nome é cousa miña", dizia-me o Roxelio em fevereiro. "Chamarlle Caminho Inglés resultame contra natura... son protestantes...", acrescentara.
Desta vez não tinha a companheira do Caminho da Vida, nem os "manos velhos"
com quem conheci o Roxelio
em abril de 2024... nem tinha os mais de 50 "gasparitos" que ali alojei em
agosto seguinte... mas tinha uma Amiga... uma Peregrina que aceitou o meu desafio para este
Caminho do Mar e dos Apóstolos... receosa... insegura... mas que a cada dia
ganhava a confiança de chegar a bom porto.
|
Igreja de Santiago de A Capela, 21.06.2025, 07h50
|
O dia seguinte era o primeiro dia de verão; o solstício tinha sido há poucas
horas. E no dia seguinte cruzaríamos as
Fragas do Eume.
E é todo um brilho de verde luxuriante
Que nos veste, nos acompanha, nos agarra
Nos faz estrada, nos troca, nos amarra...
Nos lê história, pintura, dança de viajante
No cansaço nos acalma, se senta junto
Canta...para quê pressa, amigo te pergunto...
🙏🌿
(Madalena Estácio Marques)
O
Mosteiro de San Xoán de Caaveiro
é um dos mosteiros mais antigos e emblemáticos da Galiza. A sua história está
profundamente ligada à figura de
San Rosendo, que o fundou no ano de
934 para reunir os numerosos eremitas que viviam dispersos nas fragas. Foi
isento da autoridade do arcebispado de Santiago, tornando-se uma Real
Colegiata, com seis cónegos. Românico com elementos barrocos posteriores, foi
inicialmente beneditino, passando no século XII à Ordem de Santo Agostinho. A
partir de 1800, o mosteiro foi abandonado e entrou em ruína. Foi declarado
Monumento Histórico-Artístico em 1975 e pertence à
Deputación da Coruña, que promoveu a sua recuperação e restauro.
Embora haja um posto de informação, como o percurso não é ainda oficialmente
Caminho de Santiago não há
sello para carimbar as credenciais, como
também não o conseguimos na Capela de As Neves. É importante que esse pormenor
não seja esquecido no processo de homologação do
Caminho dos Apóstolos,
certificando a passagem dos peregrinos por aqueles históricos locais.
Mas o
Mosteiro de Caaveiro
não é apenas um lugar de história e espiritualidade. Envolvido por uma das
últimas florestas atlânticas autóctones da Europa, foi também sempre um espaço
fértil para lendas e mitos populares que atravessam os séculos. Conta-se que,
quando Deus criou os rios da Galiza, prometeu que o primeiro a chegar ao mar
receberia uma recompensa divina. Os rios
Eume,
Sor e
Landro partiram juntos da Serra do
Xistral. Durante a noite, o
Sor acordou primeiro e traiu os outros, partindo sozinho rumo ao mar; o
Landro, ao perceber a traição, também partiu. O
Eume, ao acordar
e ver-se abandonado, ficou furioso e lançou-se pelas fragas, abrindo vales e
desfiladeiros até ao mar. Desde então, conta-se que o
Eume, tendo ganho
a corrida, reclama uma vida humana por ano.
Outra tradição oral fala de uma luz misteriosa que, em noites de nevoeiro,
brilha sobre as fragas, na zona do eremitério, como se fosse uma vela acesa
no altar. Alguns dizem que é a alma de São Rosendo a proteger o seu
Mosteiro...
|
Ponte de Santa Cristina, sobre o
Eume, abaixo do Mosteiro de
Caaveiro, 21.06.2025, 09h30
|
Cruzado o
Eume na Ponte de Santa Cristina, seguimos ao longo da margem
esquerda pelo
Camiño de A Ventureira, também já meu conhecido do reconhecimento e da actividade com os "meus"
Caminheiros Gaspar Correia, em
agosto passado. Dir-se-ia que estávamos... no reino da magia...
|
Pola maxia silandeira das fragas da beira esquerda do Eume,
onde o tempo se detén e a natureza fala en segredo... 💖
|
As
Fragas do Eume
são conhecidas como terra de
meigas e de espíritos da floresta. Muitos
visitantes relatam uma sensação de encantamento, como se estivessem a entrar
num mundo encantado. Há quem afirme ter ouvido vozes ou cânticos entre as
árvores. Diz-se que duendes e espíritos protectores habitam a floresta e que
aparecem apenas a quem caminha com o coração puro...
|
Ouvimos o cântico das águas e dos bosques, mas não vimos os duendes e
os espíritos da floresta...
|
O traçado da
GR55, que desde
As Neves coincide com o percurso aconselhável do Caminho
dos Apóstolos, sobe a vertiginosa encosta da margem esquerda do
Eume entre duas linhas de água que o alimentam: o
Rego da Vaca (ou
de Rodeiro) e o rio
Parrote (ou
Rego de San Bartolomeu), já no
Concello de
Monfero. Mas... não vimos qualquer indicação, nem qualquer trilho, antes do lugar de
O Parrote. Existem vários testemunhos da sua existência no
Wikiloc, todos já com
alguns anos; já deve ter existido, ou provavelmente ainda existirá, mas como
trilho de montanha para percursos de um dia... muito diferente de um Caminho
com todo o nosso mundo às costas...
|
Ponte de O Parrote, sobre o Rego do mesmo nome, afluente da margem esquerda do
Eume, 10h20
|
Não existindo ali o
GR55
(ou sendo tão diminuto que não o vimos, nem quaisquer indicações) e uma vez
estudadas as cartas disponíveis no
Locus... a opção só
podia ser o vertiginoso empedrado que sobe desde a margem do
Eume no
lugar de
O Parrote. A jornada, que já não
era curta e tinha razoável altimetria, teria certamente mais uns 2 km. Mas...
Santiago foi-nos abrindo um belíssimo trilho, que parcialmente não consta das
cartas, com uma subida mais gradual... e reduzindo até ligeiramente a
distância. O Universo é Inteligente! Será este, naturalmente, o percurso
aconselhável como Caminho.
|
À descoberta de um Caminho... que nos foi "aberto" por Santiago
|
E assim, ao meio dia estávamos na minúscula aldeia de
As Cortizas, já a sul das também pequenas
aldeias de
O Rodeiro e
O Redondo. Do Roxelio tínhamos trazido
tortilla... e mais uma vez a hospitalidade e simplicidade das
populações rurais rapidamente nos deu uma sombra e duas cadeiras
|
Almoço em As Cortizas, 12h00
|
para o nosso almoço. Sozinha, uma humilde aldeã ofereceu-nos água... e
confessou estar numa depressão que se mostrava evidente.
Pouco depois das
12h30 estávamos na
GR55; tínhamos ido ao encontro do percurso previsto, por um belo trilho e sem
aumento de distância. O destino era agora
Monfero.
O
Mosteiro de Santa María de Monfero
é um dos mais notáveis mosteiros medievais da região, com uma história rica
que atravessa séculos de espiritualidade, arte e cultura. A sua origem remonta
ao século X, quando existia no local uma ermida dedicada a S. Marco, e
herdando portanto o impulso monástico que São Rosendo ajudara a estabelecer na
região. Reconstruído em 1134 por iniciativa de Afonso VII, passou a integrar a
Ordem de Cister 13 anos depois, numa linhagem monástica diferente da
beneditina de São Rosendo, mas com valores semelhantes de austeridade e de
oração.
|
Quando chegámos, o Mosteiro tinha fechado ... 7 minutos antes... 😢
|
O mesmo Universo que nos havia brindado com uma bela alternativa à
ziguezagueante subida do vale do
Eume... não quis que pudéssemos
visitar o
Mosteiro de Santa María de Monfero. Esperar pela reabertura, às quatro da tarde? O calor, as poucas sombras e a
perspectiva de terminarmos a etapa às seis ou mais, ditaram que
prosseguíssemos... sem blasfemar; o peregrino agradece, não exige...
|
Igreja de San Fiz de Monfero, 15h05
... e, pouco antes, numa pausa de descanso... com 2 amigos
|
Para esta 11ª etapa, tínhamos reservado alojamento na
Casa Rural "Graña da Acea", uma antiga casa de lavoura do Séc. XVII convertida pela família. A
simpática proprietária já antes me tinha informado não haver nada nas
proximidades, pelo que, a nosso pedido... fez-nos um opíparo jantar de
tortilla; e...
ata o
Godello
brillou con luz propia... foi pura maxia embotellada... 😋
Estávamos a menos de 90 km de Santiago! Faltavam-nos 5 etapas! Mais do que
isso... no dia seguinte, em
Betanzos, iríamos entrar em definitivo no Caminho Inglês. O
Caminho do Mar e dos Apóstolos, na sua vertente "à descoberta"...
estava a chegar ao fim... ou ao ω que antecede um novo α ...
(Crónica escrita entre 04 e 06.07 e publicada a 06.07.2025)