segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Porque "o mar não é de ninguém"...

Nos dias 25 a 27 de Fevereiro de 2015, a minha Mãe partiu para um cruzeiro eterno, num mar eterno.
Cabo da Roca ... 15.04.1972 ... com 49 anos...
Com uma vida de certo modo ligada ao mar - o meu avô era faroleiro - a minha Mãe chegou a viver no Cabo da Roca. Lá ... "onde a terra se acaba e o mar começa" ... o ponto mais ocidental do Continente Europeu. A este mar, ao mar que também o é da sua amada Santa Cruz, dedicou paixões, dedicou poemas, dedicou amor.
Dois anos depois da sua partida, quis o destino que a minha "Mana" Paula quisesse vir conhecer Sintra e a Serra da Lua. Que traçado lhe sugeriria? Bem, uma travessia ... a terminar no Cabo da Roca! E assim, pouco depois das oito da manhã deste sábado 25, estávamos eu e a Paula em Sintra, preparados para uma travessia baseada na que desenhei para o aniversário de outra "Mana", no fim de Agosto passado. Tal como então, subimos ao Castelo dos Mouros e a Santa Eufémia, contornámos a Cruz Alta, rumámos a ocidente.

Junto à Ermida de Santa Eufémia e respectivo miradouro
Casa dos Espíritos Verdes, na Tapada do Saldanha
O trilho das pontes, ao longo do Rio da Mula, foi um dos atractivos. Apesar do dia de certo modo enevoado, só o som da água corrente já chegaria para melodiar a nossa descida até à albufeira ... seguida da vertiginosa subida para a Pedra Amarela, onde almoçámos, debruçados à encosta sul.

Trilho das Pontes e albufeira do Rio da Mula
Pedra Amarela e respectivas panorâmicas para o Palácio da Pena e para a Peninha
A Peninha foi o objectivo seguinte. De forma a evitar maiores desníveis, optámos pela estrada que atravessa a serra, entre a Tapada da Urzeira e o Monge. E antes das duas horas estávamos no Santuário da Peninha e na Ermida de S. Saturnino. Apesar do dia enevoado, o mar estava à vista, com a praia do Guincho aos nossos pés.

Na Peninha, a 470 metros de altitude
Ermida de S. Saturnino, na Peninha
Seguiu-se a descida do chamado trilho da viúva, através da luxuriante mata que desce para o Vale da Cebeceira e a estrada da Azóia. Um revigorante chocolate quente no Moinho da Azóia deu à Paula a energia necessária para o desce e sobe do vale da ribeira do Louriçal, o troço final da travessia.

Ao longo do "trilho da
viúva", descendo da Peninha
E o fim da Europa ali tão perto...
Vale da Ribeira do Louriçal e Pedra da Azóia
Nestas falésias abruptas que antecedem o Cabo da Roca, ainda assistimos ao "bailado" de uma intrépida "trapezista" que, integrada num grupo de escalada, como que dançava na corda a que estava presa.

Frente à Pedra da Azóia e à Malhada do Louriçal
... o "bailado de uma intrépida escaladora
Vale da ribeira do Louriçal
Vinte minutos antes das quatro da tarde estávamos no ponto mais ocidental do Continente Europeu, com sensivelmente 22 km percorridos desde Sintra ... e mais de 1300 metros de desnível acumulado. O velho Cabo da Roca era uma multidão de turistas de todas as nacionalidades, ali, frente ao mar que a minha Mãe tanto amava e admirava, naquele ermo onde chegou a viver; o meu avô, pai dela, era faroleiro. Lembro-me de histórias que a minha Mãe contava das vivências naquele lugar, como a história de uma charrete que se virou no caminho da Azóia para o Cabo, despenhando-se charrete e cavalos na ribanceira, saltando felizmente os ocupantes a tempo. Outros tempos, outras vivências...

Cabo da Roca, fim da Europa continental ... também ele uma finis terrae ... também ele um memorial
Ao volante do seu velho Corsa, o meu Pai foi ter connosco ao Cabo da Roca, tal como num dia de Abril, em 2015, havia ido ter comigo e com dois meus "Manos" a Fátima ... num caminho que o destino não transformou em Caminho; com ele, eu e a "Mana" Paula regressámos a Sintra.

Sintra, 25 de Fevereiro de 2017, 17h15
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27 de Fevereiro...
Dois dias depois, o mar do Cabo da Roca seria o mar de Santa Cruz. A Santa Cruz da minha infância e adolescência ... a Santa Cruz a cujo mar, há dois anos, entreguei as cinzas da minha Mãe, num dia cinzento, ventoso e frio ... como o de hoje. Porque "o mar não é de ninguém"... (Sebastião Antunes)

Santa Cruz, 27 de Fevereiro de 2017 - Dois anos de saudade...
   As mesmas botas ... o mesmo mar ...
... uma mesma ave?...                              
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As botas com que regressei ao "santuário" do Penedo Guincho ... foram as botas que calçava naquele dia 27 de Fevereiro de há dois anos ... as mesmas que me levaram no meu primeiro Caminho de Santiago ... as mesmas que me levaram de Santa Cruz a Ourém, no caminho que o destino não transformou em Caminho. E que pensar do melro que frequentemente "visita" o quintal da velha casa dos meus pais? Não, não é a "minha" gralha de bico amarelo que "falou" comigo no cume do Toubkal; não é o corvo que me apareceu no alto de Lepoeder, na primeira etapa do Caminho de Santiago Francês; mas cantou-me uma melodiosa canção, quando eu cheguei à velha casa de Santa Cruz ... hoje ... 27 de Fevereiro...

"O mar estava bravo e o vento zumbia. Parecia-me uivar, tal a ventania.
E a espuma do mar no ar se perdia." (Maria Luísa Callixto)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Incursão na História e na Natureza, em terras do Bandarra

Caminheiros Gaspar Correia, 312ª actividade. Quase a comemorar 32 anos de actividade - um dos mais antigos grupos de pedestrianismo portugueses - a minha mais antiga "família" Caminheira levou-nos este fim de semana às terras do Bandarra, o sapateiro visionário.
Próximo de Trancoso, 18.02.2017, 11h30
Trancoso, palco de diversas lutas e batalhas marcantes, foi terra de fronteira. Recebeu de D. Afonso Henriques a Carta de Foral (1162-65). As muralhas, mandadas construir por D. Dinis, acolheram um burgo onde conviveram cristãos e judeus. O próprio rei D. Dinis elegeu Trancoso para celebrar as suas bodas com a Rainha Santa, D. Isabel de Aragão, em 1282. E foi rumo a Trancoso que partimos da Portela, a umas matinais seis e meia da manhã ... e agora liberto das minhas habituais tarefas da "família"; ao fim de 10 anos consecutivos, deixei a Direcção dos Caminheiros Gaspar Correia; sangue novo, precisa-se... 😊
Os percursos deste fim de semana pedestre seguiram em parte o trajecto do PR1-TCS, que realça as ligações entre as aldeias históricas de Trancoso e Moreira de Rei. É evidente o posicionamento estratégico dos castelos milenares que estão na origem destas duas povoações e que, quais guardiões do planalto, defenderam por séculos este território. Ao mesmo tempo, contempla-se uma vista única e deslumbrante para a imensidão das terras de Riba-Côa. A espaços, elevam-se pequenas serras, como a majestosa Serra do Pisco, observável no traçado inicial do percurso, e a Serra do Barroco do Oiro.

Percurso de Trancoso para norte, ao longo da Ribeira do Vale Azedo e até aos barrocos de Castaíde
Em plena serra do Barroco de Oiro, atingimos o ponto mais alto do trilho, conhecido por Cabecinha. A vista espraia-se para um extenso horizonte desde a Serra da Estrela, a sul, até ao vale do Douro, a norte. A partir de então, a visibilidade torna-se abrangente para nascente, onde se desenvolve a vasta peneplanície da Meseta Ibérica, apenas quebrada pela altiva Serra da Marofa.

Panorâmica do Geodésico da Cabecinha (912m alt.), para o vale da Ribeira da Teja e para sul, com a Marofa ao fundo
A visita a Moreira de Rei era imprescindível. A aldeia é, ainda hoje, importante pela riqueza patrimonial que encerra, nomeadamente a sua necrópole. O Castelo, referenciado pela primeira vez no ano 960, tem uma história longa de conquistas e reconquistas. Revivem-se memórias e tradições nesta aldeia, marcada pela exuberante paisagem granítica ... e nela fui encontrar o que aparentam ser Vieiras de Santiago, nos portais da Igreja de Santa Marinha, românica e gótica.

Moreira de Rei: Igreja Paroquial e Igreja de Santa Marinha, românica e gótica
Serão Vieiras de Santiago?...
Pelourinho de Moreira
de Rei
Castelo de Moreira de Rei e panorâmicas em redor. Na segunda foto, a Serra da Marofa, a sudeste
O PR1-TCS é um percurso circular com cerca de 21 km, pelo qual poderíamos regressar a Trancoso. Mas em Moreira de Rei demos por terminado o percurso do primeiro dia deste fim de semana Trancosano; e às quatro e meia estávamos de regresso à cidade, que ficou também para sempre na história como sendo a terra do Bandarra, o sapateiro poeta e profeta, de seu nome verdadeiro Gonçalo Anes.

Trancoso: Porta d'El-Rei
À incursão pela Natureza, este fim de semana em terras do Bandarra somaria naturalmente uma incursão na história, na cultura e nas tradições de Trancoso, nomeadamente nos múltiplos testemunhos da presença judaica. Após uma noite no excelente Hotel Turismo - onde realizámos mais um tradicional Carnaval da "família" caminheira Gaspar Correia - o domingo começaria precisamente por uma visita guiada aos principais locais históricos de Trancoso, como o monumento a Bandarra.
Monumento ao Bandarra, frente à Câmara Municipal
Gonçalo Anes nasceu no início do século XVI. Deu em versejar umas trovas que agradavam aos cristãos-novos ... mas não à Inquisição. Um tal Afonso de Medina, deu por elas em forma de manuscrito e, com desembaraço, alertou os superiores. No Palácio dos Estaus, em Lisboa, onde o Santo Oficio exercia o mester, a nova caiu como uma bomba: um sapateiro, possivelmente de letras gordas, das Beiras, trazia alvoroçados os judeus de Portugal. E a ordem não tardou: prenda-se o dito sapateiro versejador e traga-se acorrentado; que venha à viva força, bem amolgado de costelas, até à enxovia do Santo Oficio, onde será açoitado e mantido a pão e água, para a seu tempo ser julgado.
Algemado e carregado de grilhões, custodiado por beleguins e outras varas da justiça, compareceu Bandarra na sala do despacho. Todos os presos temiam a fogueira do Santo Oficio, dita da purificação dos corpos e almas, mas que reduzia a torresmos os condenados. Mas Bandarra era um homem de sorte! Mais coisa menos coisa, negou ser judeu, o que deve ter sido conferido pela Inquisição. Obrigaram-no a renegar heresias e apostasias. Outros que tais, porventura com menos matéria de facto, tinham sido submetidos à fogueira purificadora. Soubessem os zelosos e doutos inquisidores o alvoroço que as trovas do sapateiro continuariam a dar anos adiante, mesmo após a morte do autor, e a sentença teria sido bem mais severa. As profecias do Bandarra foram aproveitadas para servirem o mito nebuloso do regresso de D. Sebastião, a causa dos revoltosos e restauradores de 1640, a derrota de Napoleão em terras lusas e o mito do Quinto Império, incendiado pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa.
Grande profeta ou não, numa das suas coplas o Bandarra parece confirmar a continuidade do pretérito português:
                Sou sapateiro, mas nobre
                Com bem pouco cabedal:
                E tu, triste Portugal,
                Quanto mais rico, mais pobre.
Igreja de S. Pedro, Trancoso, e,
à esquerda, o Túmulo do Bandarra
Outra figura para sempre ligada à história de Trancoso é a do Padre Francisco da Costa, Prior de Trancoso no século XV ... e que terá gerado 299 filhos em 53 mulheres, muitas delas familiares directas, incluindo irmãs e a própria mãe! O prior terá sido julgado em 1487, aos 62 anos; a sentença proferia que seria "degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos". No entanto, El-Rei D. João II perdoou-o e mandou-o pôr em liberdade ... com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, ao tempo tão despovoada!

A visita guiada a Trancoso incluiu também o Centro de Interpretação da Cultura Judaica. No interior existe uma Sinagoga - Beit Mayim Hayim ou Casa das Águas vivas. São aliás vários os testemunhos da presença judaica em muitas casas trancosanas. Seguiu-se o Castelo, do alto de cuja torre de menagem se contempla uma paisagem soberba. Para leste e sudeste, percebe-se o vale do "meu" Côa...

no bairro judeu de Trancoso
Castelo de Trancoso e panorâmica para sudeste
De referir que Trancoso ... é etapa dos Caminhos de Santiago, mais concretamente do Caminho de Torres, que, proveniente de Salamanca, atravessa Portugal por Trancoso, Sernancelhe e Lamego, seguindo a peregrinação de D. Diego de Torres Villaroel em 1737. Infelizmente, nada na cidade assinala este Caminho, apesar de a cidade ser final de etapa (Pinhel - Trancoso).
Mas as actividades de domingo não terminariam sem um complemento do PR1-TCS, entre a aldeia de Porcas e a cidade de Trancoso. Situada a nordeste, Porcas também se chama Aldeia de Santo Inácio ... um nome um pouco mais apelativo, convenhamos. Dali partimos, quase ao meio dia, para um percurso de pouco mais de 3 km mas lindíssimo, num meio muito rural e com fabulosas panorâmicas a perder de vista ... de novo com o Castelo de Trancoso como destino.

Com o Castelo de Trancoso como destino ...
... através de um lindíssimo meio rural e cruzando o vale da Ribeira do Alcaide
Estávamos no fim de um fim de semana de muita diversão e amizade, como é apanágio dos Caminheiros Gaspar Correia. Faltava-nos apenas um saboroso almoço no Restaurante "O Museu", nas muralhas ... e o regresso a casa. Como quase sempre ... S. Pedro esteve do nosso lado!
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