sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

De Fregeneda à foz do Côa, pela linha do Douro (2)
Barca d'Alva - Côa

Depois de, em Barca d'Alva, nos termos despedido dos restantes 5 elementos com quem fizemos a "Ruta de los túneles", o autor destas linhas e o carola que cativei para esta "aventura" tínhamos o resto da linha desactivada do Douro para percorrer, de Barca d'Alva ao Pocinho. Para isso, como só tínhamos um carro, havia que optar por pernoitar em Barca d'Alva ou em Foz Côa, recorrendo ao autocarro ou a um táxi, para um dos trajectos. Achámos preferível ir ao encontro do carro em vez de nos afastarmos
Barca d'Alva, 20.02.2012, 09:45h
dele, pelo que naquele fim de tarde de domingo lá fomos para Foz Côa, esperando regressar a Barca d'Alva no dia seguinte de manhã.
Acontece que, em domingo de Carnaval e em vésperas da festa das amendoeiras ... ao entrar em Foz Côa parecia estarmos a entrar numa cidade fantasma. Estávamos a ver que não conseguíamos um restaurante aberto para jantar nem uma cama para dormir...! Valeu-nos uma senhora, cliente numa farmácia onde entrámos, que muito amavelmente nos foi indicar o Restaurante "Dallas" ... onde nós dois fomos os únicos clientes para jantar. E depois de duas albergarias encerradas e a própria Pousada de Juventude encerrada ... só arranjámos alojamento no Hotel "Vale do Côa"; esperávamos gastar menos, mas a relação qualidade/preço foi apesar de tudo muito boa.
Assim, 2ª feira de manhã, lá regressámos de táxi a Barca d'Alva, deixando o carro junto à estação do Pocinho, onde contávamos terminar. De táxi ... porque autocarro só ao meio dia! E pouco depois das 9 e meia da manhã estávamos no mesmo ponto onde na véspera tínhamos terminado a rota dos túneis.

Barca d'Alva, do início da ponte sobre a estrada
Vamos começar a acompanhar o Douro ...
... deixando as terras de Barca d'Alva para trás
O troço desactivado Barca d'Alva - Pocinho tem muito menos túneis e pontes, acompanhando sempre a margem esquerda do Douro. Em compensação, em vários troços a linha está coberta pela vegetação ou por desmoronamentos de rocha, obrigando por vezes a um ziguezaguear permanente entre os dois lados da linha e um ou outro carreiro. Do lado de lá do rio é terra transmontana.

Ao longo da linha ... e do Douro
Incipientes, mas algumas amendoeiras começam já a florir, como junto à Quinta de S. Cibrão, pouco depois da qual nos apareceu a primeira ponte do percurso.

Junto à Quinta de S. Cibrão,
as amendoeiras já dão cor à paisagem duriense
Já tínhamos saudades das pontes... J
A progressão é mais lenta do que desejávamos. Com duas horas de marcha, tínhamos percorrido apenas 7 km, quando encontramos o primeiro túnel, parcialmente obstruído, à entrada, por grande desabamento de rochas.

1º túnel no percurso
Barca d'Alva - Côa
Desmoronamentos sobre a linha
Estação de Almendra
Praia fluvial de Almendra
Mais algumas amendoeiras em flor ... e temos um "encontro imediato" com um simpático ofídeo, tão curioso como nós em estudar reacções mútuas. Deixámo-lo, evidentemente, seguir o seu caminho.

Amendoeiras
em flor
Um "encontro
imediato do 3º grau"... J
Vinhas do Douro
Já depois do almoço, surge-nos a foz da Ribeira de Aguiar, vinda das terras raianas de Figueira de Castelo Rodrigo. É um dos trechos mais bonitos deste percurso, com margens escarpadas e vinhedos.

Um dos trechos mais bonitos deste percurso, junto à foz da Ribeira de Aguiar
Ponte sobre a Ribeira de Aguiar
Apeadeiro de Castelo Melhor
Avançamos pela tarde e pela beleza da paisagem
Mais um túnel, mais vinhedos, amendoeiras, belas paisagens que se vão sucedendo. E são já quase quatro horas da tarde quando começamos a avistar a ponte sobre a foz do "meu" Côa.

Aproximação à foz do Côa
A sensação de atravessar a foz do Côa foi, para mim, uma sensação de um regresso a casa. Aquele era o "meu" rio, o "Rio Sagrado" do poema de Bernardino Henriques, o rio que queria ser gigante!
"E, hoje, sou eu que paro junto a ti,
penetro nesse templo sacrossanto do tempo que passou,
e contemplo esse andar tão lento de séculos e milénios
p’ra concluir que quase nada sou"
Bernardino Henriques, “Poemas da Terra”, 2009
Caminho sobre o "meu" Côa, o "meu "Rio Sagrado"
Os dois grandes rios, o Côa (à direita), desaguando no Douro (à esquerda)
Chegada à estação do Côa
Atravessada a ponte, estamos na velha e abandonada estação do Côa. Já nem telhado tem. Temos 19 km percorridos desde Barca d'Alva ... e mais 11 para percorrer até ao Pocinho. Dispomos de duas horas de luz ... e não sabemos se os 11 km em falta estarão igualmente cobertos de muito mato. Até ali, por vezes, já proliferavam as silvas. Ponderados todos estes itens, o bom senso ditou-nos a ambos que a jornada teria de terminar ali, deixando para outras "aventuras" o troço Côa - Pocinho.
Puxámos do cartão que preventivamente havíamos pedido ao serviço de táxis do Pocinho ... e cerca das 16:30h estávamos a ser "recolhidos" na estação do Côa para o términus da actual linha do Douro, onde o carro nos aguardava desde manhã. Antes, porém, ainda houve tempo para apreciar uma bonita cascata junto à estação, bem como as curiosas formações rochosas que o meu companheiro de jornada baptizou de "baralho de cartas".

Estação do Côa: mais memórias de um tempo que passou!
Cascata junto à estação do Côa
Um "baralho de cartas" petrificado
E na estação do Côa terminou esta fantástica jornada "ferroviária": sensivelmente 38 km, nos dois dias
Estes dois dias de caminhada "ferroviária" foram a minha estreia em linhas de comboio abandonadas. Sem dúvida dois dias excepcionais. Não sei nem quero falar em "mais bonito", "melhor", "pior", ou outros adjectivos qualificativos. Mas foi, isso sim e sem dúvida, uma caminhada diferente de tudo o resto que já fiz, em mais de 40 anos de "aventuras".
Aqui fica o registo desta segunda "etapa" e o álbum completo das fotos dos dois dias. E aqui fica também o meu sincero obrigado à "equipa" da primeira "etapa", na "ruta de los túneles", sem os quais a ideia não teria eventualmente surgido. Por último, um agradecimento muito especial ao meu amigo de longa data António Mousinho, que veio de Lisboa de propósito para Vale de Espinho para me acompanhar nesta fantástica "aventura".



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

De Fregeneda à foz do Côa, pela linha do Douro (1)
Ruta de los túneles

Notável obra de engenharia concluída em 1887, a linha ferroviária do Douro fazia parte da ligação internacional Porto - Paris. Desde 1985, contudo, o términus da circulação ferroviária na linha do Douro é
Fregeneda, 19.02.2012
Ruta de Los Túneles
a estação do Pocinho ... e o troço desactivado do Pocinho até Fregeneda, já em terras castelhanas, transformou-se num atractivo para os amantes do pedestrianismo. O percurso compreendido entre La Fregeneda e Barca d'Alva, numa extensão de 18km, é conhecido por "Ruta de los Túneles", compreendendo nada menos de vinte túneis e dez pontes!
Sites como "Rota dos Túneis" e outros, há muito que despertavam a minha curiosidade para aquela velha linha, esquecida e desgastada pela passagem do tempo. A oportunidade chegou via Facebook, através de um pequeno grupo com alguns elementos já batidos em linhas de comboio desactivadas. Afinal ... Barca d'Alva não é assim
Estação de La Fregeneda: é aqui que começa a "aventura"...
tão longe da "minha" Vale de Espinho, onde estava... J. E ainda desafiei um amigo de há muitas luas, companheiro também na minha "família" caminheira, para participar comigo nesta "aventura".
Assim, em domingo de Carnaval, saímos do meu "retiro raiano" antes das 6 da manhã, para ir ao encontro do grupo em Barca d'Alva, onde tinham dormido ... na velha e abandonada estação de comboio. No caminho, o carro tinha registado 6 graus negativos; embora ali não deva ter estado tão baixo ... alguns quase tinham congelado. E ainda ajudámos numa operação bem complicada, a de dobrar e arrumar uma daquelas tendas que se armam em 2 segundos ... e se dobram e arrumam em meia hora... J.
Este aviso não é para ler...J
O meu carro "descansou" em Barca d'Alva. Agora éramos 7, a bordo da carrinha em que tinham vindo, rumo a La Fregeneda, preparados para iniciar a caminhada. E que caminhada! Junto à estação, um painel da RENFE avisa os caminhantes sobre o mau estado das pontes ... mas não parece intimidar os aventureiros. Ainda meio adormecidos e "encolhidos" dentro de uma tenda, 3 ou 4 jovens deram-nos as boas vindas ao local ... mas nunca mais os vimos, não sei se concretizaram ou não a "ruta de los túneles".
E o primeiro túnel surge logo escassos 300 metros depois da estação. Comprimento deste primeiro túnel ... 2 km. Sensivelmente meia hora de escuridão, iluminados apenas pelos frontais e estimulados pela luz que se via sempre ao fundo do túnel,

Primeiro túnel ... de uma série de 20!
Este tem ... 2 km de comprimento
já que é completamente rectilíneo. Houve quem dissesse que era bom que se visse também uma luz ao fundo do túnel ... para o destino de Portugal...

É preciso ver o chão...
E meia hora depois ... fez-se luz...
... sobre o espectacular vale da ribeira de Morgáez
Ao sair do túnel, passamos a acompanhar o vale da Ribeira de Morgáez, afluente do Águeda. As panorâmicas começam a ser deslumbrantes.

Ainda ao longo do vale da ribeira de Morgáez
Segundo túnel, este bastante curto
O terceiro túnel é todo ele em curva. A linha faz um ângulo de sensivelmente 90º, passando do sentido NE / SW para SE / NW. Este túnel é habitado por uma extensa colónia de morcegos, cujos excrementos são bem visíveis no solo, atapetando carris e travessas, transformando o solo num tapete fofo que ameniza o sucessivo pisar das pedras. Nesta altura do ano, contudo, não fomos agraciados pelo voo e pelo cheiro daqueles quirópteros, já que se encontram na altura da prolongada hibernação.
À entrada do túnel dos morcegos,
cujos vestígios são bem visíveis

Colónia de morcegos, em forma de T no tecto do túnel
Também não vimos passar o comboio fantasma que, segundo se conta, ainda por lá passa. Aliás, essa enigmática composição de mercadorias espera neste túnel, enquanto as criaturas do submundo alimentam a sua caldeira com o fogo do inferno, até prosseguir a sua viagem, nas noites mais escuras, sem maquinista que o conduza (de "La Ruta de Los Túneles").

Vale do Águeda, à saída do túnel dos morcegos; do outro lado é Portugal
Ao sair do túnel dos morcegos, desembocamos directamente na primeira ponte, a Puente Morgados, que cruza pequenas linhas de água que correm para o Águeda. O Águeda é o rio "gémeo" do Côa, nascidos ambos do ventre da Serra das Mesas, a menos de 1 km um do outro, de lados diferentes da raia e correndo ambos para o Douro. No seu troço final, o Águeda faz fronteira entre os dois países, e é o seu longo e apertado vale que a velha linha de combóio acompanha, a meia cota das escarpadas encostas da margem direita, ao longo de paisagens de cortar a respiração.
De cortar a respiração é também a sensação de atravessar estas velhas e abandonadas pontes. O estado de deterioração das estruturas é grande, principalmente as de madeira, só sendo relativamente segura a passagem através de uma estreita viga metálica com 40 cm de largura. Decididamente ... esta não é de todo uma caminhada aconselhável a quem sofra de vertigens.

Primeira ponte, Puente Morgados
Como eu gostava de voar assim...
Única parte segura da maioria das pontes...
E lá se vai atravessando a Puente Morgados ...
O quarto túnel é curto e desemboca directamente na ponte de Pollo Rubio. É talvez a mais espectacular, tanto pela altura da ponte como pela espectacularidade das panorâmicas sobre o vale do Águeda. Sempre presente estava também o sabermos que esta linha foi construída nos finais do século XIX!

Vamos para o 4º túnel ...
... que sai directamente para a ponte de Pollo Rubio
Ponte de Pollo Rubio ...
Panorâmicas para o vale do Águeda
Este "caminheiro"
acabou aqui os seus dias...
Aspectos do vale do Águeda ... e o grupo dos "7 magníficos"... J
Mais dois túneis e chegamos à ponte de Pollo Valente. Esta ponte apresenta a característica rara de ter o seu traçado em curva. Devido a um incêndio, a passadeira lateral já não existe e as travessas da via encontram-se queimadas. Mais do que em qualquer outra, há que efectuar o percurso usando a estreita passadeira metálica que ladeia os carris.

Diversos aspectos da ponte de Pollo Valente, em curva e parcialmente destruída por um incêndio
Sucedem-se os carris, pontes, túneis, carris, pontes, túneis ...
Os pica-paus
trabalham bem!
Após o décimo segundo túnel ergue-se a ponte sobre o Arroyo del Lugar, que corre para o Águeda. Com os seus 300 metros de comprimento, é a maior ponte da nossa caminhada.

Ponte sobre o Arroyo del Lugar: 300 metros de comprimento, 60 metros sobre o barranco
O único apeadeiro em todo o percurso Fregeneda - Barca d'Alva
A pausa para o almoço já tinha ficado para trás. Ao fundo, já se percebe o vale do Douro. Ao único apeadeiro do percurso, segue-se a ponte de Los Pollos, esta em razoável estado.

Puente de Los Pollos
Já faltou mais...
Vale do Águeda
Estamos nos últimos quilómetros
Passavam uns minutos das três da tarde quando chegámos à ponte de Las Almas, a última em território espanhol. Esta zona foi cenário do maior acidente de que há registo neste troço da linha: em 2 de Outubro de 1899, um comboio de mercadorias descarrilou na curva anterior à ponte de Las Almas. Um comboio que nunca devia ter saído da estação de Fregeneda, já que ... o maquinista não era maquinista, o condutor não era condutor e os guarda-freios não eram guarda-freios. A velocidade era tal que chegou a ultrapassar os 140 km/h nalgumas partes do trajecto. Chegou de Fregeneda à ponte de Las Almas, lugar do acidente, em apenas sete minutos! (de "Historia de la Línea").
Pouco depois da ponte de Las Almas surge-nos um número "mágico": túnel número 20 ... o último!

Puente de Las Almas
O túnel nº 20 ... e último
Do túnel 20 ... saímos para a ponte internacional sobre o Rio Águeda
Da ponte sobre o Águeda avista-se a foz, no Douro, bem como o ancoradouro de Vega de Terrón, do lado espanhol, conhecido por ser o ponto terminal da maioria dos cruzeiros no Douro. A meio da ponte, uma placa completamente ferrugenta assinala a fronteira ... e chegamos à estação de Barca d'Alva!

Foz do Águeda e Cais de Vega de Terrón
Dois dos sete "heróis" desta "aventura"... J
A estação de Barca d'Alva dá-nos a mesma sensação que a de Fregeneda e tantas outras, a sensação de nostalgia e de viagem no tempo, transportados talvez para Eça de Queiroz, n'"A Cidade e as Serras".

Estação de Barca d'Alva: uma viagem às memórias perdidas no tempo
E por fim ... Barca d'Alva, a vila, o café, o merecido descanso. Ainda houve que ir buscar a carrinha que tinha ficado em Fregeneda, claro, e o grupo dos "sete magníficos" despediu-se ali. O autor destas linhas e o carola que consegui cativar para esta "aventura", íamos prosseguir, no dia seguinte, continuando a linha desactivada do Douro, até ao Pocinho. Os restantes 5 iam fazer a linha do Tua, dado já conhecerem este troço do Douro.

Despedida do grupo, em Barca d'Alva

Abraços, recomendações, desejos de nos reencontrarmos em mais "aventuras" ... e um adeus que é sempre um até breve. Fica o percurso desta primeira "etapa" da descida da linha desactivada do Douro e o vídeo desta fantástica "aventura".





No segundo artigo descreverei a segunda parte desta "aventura", de Barca d'Alva à foz do Côa.