terça-feira, 27 de outubro de 2020

Rio Côa (5): Porto de Ovelha - Almeida - Pinhel

Na Grande Rota do vale do Côa (GR45)


 
Há 10 anos, muito antes de ter nascido a GR45Grande Rota do Vale do Côa - fiz a solo, em várias etapas, a descida pedestre do Rio Côa no concelho do Sabugal. Em Junho de 2011 deixei-o em Porto de Ovelha, onde ele entra em terras do concelho de Almeida ... e não mais peguei no projecto de o seguir até à foz, tendo embora colaborado, em 2013, no reconhecimento que levou à marcação daquela grande rota no meu concelho adoptivo.
Talvez porque em Agosto passado conheci o Parque Arqueológico do Côa ... talvez porque me estava a fazer falta a catarse proporcionada pelas caminhadas a solo ... a vontade de descer o Côa até à foz voltou. E a habitual estadia de finais de Outubro e início de Novembro nas minhas terras adoptivas de Vale de Espinho proporcionou-me dois dias de pura contemplação ... catarse ... introspecção. Partindo de Porto de Ovelha ... voltei assim a rumar a norte ... tal como o "Rio Sagrado"...
Porto de Ovelha, 26.Out.2020, 7h40
"No ventre das Mesas
 ouviu-se um gemido
 de um ser que quis nascer
 e correr serra abaixo.
 Eras tu, meu Rio Côa,
 que querias ser gigante
 e escolheste o teu caminho
 rasgando montes,
 dormindo em vales fundos...
">

(Bernardino Henriques, poeta Fojeiro,
"Poemas da Terra", 2009)
Ontem, bem cedo, estava junto ao velho pontão onde deixei o Côa em Junho de 2011. A manhã estava mágica, com o rio a respirar e o Sol a criar imagens e sonhos. Sozinho ... comecei a sonhar...
Pontão de Porto de Ovelha, a 76 km da nascente ... e a 124 km da foz

A GR45 segue o Côa pela margem esquerda, mas nesta parte inicial as marcações são deficientes ou inexistentes. Pouco antes de começar a subir a encosta para a aldeia de Jardo há mesmo um muro de pedra e arames ... a barrar o caminho!
Muros e arames ... barram
o percurso da GR45...

Côa, no seu curso para norte, entre Porto de Ovelha e a foz do Rio Noémi
Porto de S. Miguel, foz da Ribeira dos Cadelos
No Porto de S. Miguel, a GR45 cruza-se com a GR22 (Grande Rota das aldeias históricas), que aliás iria encontrar outras vezes. Entretanto as marcações tinham melhorado desde Jardo ... mas não poderia "cantar" por muito tempo. À vista de Castelo Bom, chegava a parte mais desgastante destes dois dias: alcatrão, EN 16, algum trânsito. O viaduto da A25 ficou para trás e saí finalmente da estrada junto ao Café e Camping Rio Côa ... a partir do qual passei a ser acompanhado por um patudo a que chamei ... Tareco. Várias vezes o mandei para casa ... mas ele seguia-me ou avançava; várias vezes quando estava à minha frente ... parava e olhava a ver se eu vinha 😊.
Ponte de S. Roque, sobre o Côa, próximo de
Castelo Bom e do Camping e Café Rio Côa
Durante 8 km a minha caminhada não foi a solo ... e até o "Tareco" admirava a paisagem...
As encostas do Côa a norte de Castelo Bom são bastante escarpadas, o que leva o traçado da Grande Rota a subir a margem esquerda, na direcção das aldeias de Mido e Senouras.
Próximo desta última, o meu fiel Locus Map mandava-me virar à esquerda, contornando o Cabeço da Atalaia, como se vê na imagem ao lado ... mas uma placa indicativa da GR mandava-me virar à direita, atravessando o cabeço. Tanto essa placa como algumas outras que se lhe seguiram eram recentes, levando-me a crer que se trataria de um novo traçado, mais recente que o indicado na carta do Locus. Puro engano! Do topo do cabeço, o trilho desceu para o Côa ... mas já na margem desapareceu por completo, entre enormes pedras e muito mato! Até o "Tareco" se viu aflito para passar ... e agora a navegação era pura e simplesmente tomar como rumo um pequeno caminho rural assinalado na carta. Qual não é o meu espanto quando nesse caminho ... reapareceram as marcações da GR ... como que se entre um ponto e outro se voasse sobre as pedras e mato.
... deixa de existir!
Onde um traçado marcado e assinalado
Mas ... a "aventura" ainda não tinha acabado: nova placa da GR manda-me virar à direita ... e 200 metros depois o trilho termina no rio, sem saída! Voltámos atrás, claro, eu e o meu companheiro patudo, para finalmente ir ao encontro do traçado indicado pelo Locus ... do qual não deveria ter saído. É inconcebível que a entidade gestora - a Associação "Territórios do Côa" - preste este péssimo serviço a quem quer percorrer a Grande Rota.
Finalmente no bom caminho, seguiu-se uma boa extensão acompanhando a margem esquerda do Côa. E foi aqui que o "meu" Tareco me deixou ... com medo de duas cadelas e um cão maiores do que ele, que ladravam para assinalarem que estavam ali a guardar um rebanho de cabras. Espero que tenha regressado a casa ... e espero que o tenha feito por melhores caminhos!...

Acompanhando o Côa, de novo a solo. Pontão Manuel José Martins, próximo da aldeia de Junça
Com 27 km nos pés, eram duas e meia da tarde quando atravessei o Côa pelo moderno pontão Manuel José Martins, que substituiu um longo e velho pontão de poldras que ali existia, quando as águas do Côa eram mais baixas, devido à posterior construção de represas. Agora pela margem direita, ainda continuei a seguir o "Rio Sagrado" durante mais uns quilómetros, até rumar a Almeida.
Já na margem direita do Côa, atravessado no pontão Manuel José Martins
O Caminho faz parte de nós...
Cerca de 4 km antes de Almeida voltei a entrar na GR22, mas mais do que isso ... entrava também no Caminho de Torres, embora em sentido contrário. Ainda o ano passado o percorri, entre Trancoso e Lamego! E pouco depois das quatro da tarde entrava na histórica vila de Almeida, com 35 km percorridos em sensivelmente 8 horas e meia.
Em Almeida, optei pela "Casa Morgado" para pernoitar. Uma excelente relação qualidade/preço, com pequeno almoço incluído, em tempos de covid sob a forma de um kit preparado de véspera e portanto para ser tomado no quarto à hora que se quiser. Sem dúvida recomendável, principalmente para quem esteja a fazer a GR22, a GR45 ou o Caminho de Torres.
Fortaleza de Almeida, 27.Out.2020, 6h50
Hoje ... saí da "Casa Morgado" com o nascer do Sol ... ou melhor ... com as nuvens que impediam ver o astro rei. O dia acordou cinzento mas menos frio, embora mais tarde o Sol aparecesse durante a maior parte do trajecto. Em Almeida, a Igreja Matriz de Nossa Senhora das Candeias fez questão de me recordar ... que estava no Caminho de Santiago!
Igreja Matriz de Nª Srª das Candeias
 ... no Caminho de Santiago
Ruas de Almeida ao amanhecer
GR45 sai de Almeida rumo a noroeste, de regresso ao vale do Côa. O pequeno almoço começado ainda no quarto
... completei-o num recanto paradisíaco, à beira das águas límpidas e correntes que descem a encosta. Pouco depois, a Natureza brindava-me com um curioso tafoni. Tafoni são cavidades profundas ou ocas, produzidas pela meteorização cavernosa nas zonas laterais de afloramentos rochosos, incluindo as faces interiores.
Caos granítico debruçado sobre a margem direita do Côa
Tifoni na encosta do Côa. Geoformas como esta desde sempre suscitaram no Homem intriga, ou superstição
Já quase na margem do Côa, o complexo termal da Fonte Santa lembrou-me as Sabugalenses Termas do Cró; a mesma arquitectura, num mesmo tipo de modernização das instalações termais ... além de uma bela panorâmica para o vale do Côa. Mas o escarpado das encostas não permite ainda acompanhar o rio. Aliás, embora com uma altimetria acumulada ligeiramente inferior à da etapa anterior, este troço da grande rota pode-se dizer que é um permanente desce e sobe ... e ali havia que de novo subir rumo à aldeia de Cinco Vilas ... para logo descer, então sim, até à beira rio.

Termas da Fonte Santa e panorâmica sobre o vale do Côa
Ribeiro do Caldeira,
na subida para Cinco Vilas
Descida de Cinco Vilas para o Côa. A paisagem começa a ter características durienses...
Às dez e meia da manhã estava junto às águas do Côa, junto à foz da Ribeira de Fonte da Pedra. Iria agora acompanhar de novo o curso do rio ... com grifos a sobrevoar as encostas. Há uns já largos 13 anos, tinha descido a encosta contrária, numa actividade do Clube Ar Livre, desde a aldeia de Pereiro.

Os grifos sobrevoam as águas do Côa,
no lugar da Veiga, entre terras de
Cinco Vilas e de Vale de Madeira
O traçado da GR45 atravessa o Côa sobre o pontão e açude da ponte velha, entre terras de Cinco Vilas, na margem direita, e de Vale de Madeira, na margem esquerda. Um pouco antes, vi que havia obras do lado de Vale de Madeira, mas a sinalização da GR continuava a mandar seguir para o pontão. Da Ponte Velha ... sabia que só restam ruínas ... mas o pontão ... bem ... o pontão as águas do Côa sobrepunham-no com boa corrente! Ainda experimentei ... mas a força da corrente era muita!...

Ponte Velha e pontão de Vale de Madeira. Pontão ... praticamente submerso e o Côa com grande corrente...
Que fazer? Bem ... voltei atrás, ao sítio onde tinha visto as obras ... mas, para cortar caminho ... meti-me por terrenos que não foram fáceis de passar. Depois, no local das obras ... constatei que a única hipótese de passar o Côa ... era a vau! E foi uma "aventura" 😜. Mas alternativa ... não existia. Equilibrando-me nos bastões e com água a entrar nas botas ... lá fui atravessando os vários troços entre a margem direita e a esquerda, no local de uma pequena ilha onde precisamente estavam a decorrer obras, que vim depois a saber tratar-se da futura praia fluvial de Vale de Madeira. Depois da travessia e encharcado ... até me custava acreditar ao olhar para a paisagem atravessada...

Pois ... no meio não deu para tirar fotografias ... estava ocupado com o equilíbrio na travessia...
Já do lado de Vale de Madeira ... os trabalhadores das obras e dois polícias pareciam que estavam a ver um fantasma. Meti conversa com eles; "pois, estou a fazer a grande rota do Côa e deparei-me com esta aventura de atravessar o rio". Já mais acima, na margem esquerda, os polícias voltaram a passar por mim ... quando eu estava a espremer as meias e a despejar a água das botas. Sorriram... 😛

Olivais e paisagem da encosta poente do Côa, a norte da aldeia de Vale de Madeira
Entretanto, nas manobras da travessia do Côa, tinha perdido bastante tempo. Com os pés encharcados, a hipótese que inicialmente tinha posto de terminar a etapa na ponte da Chinchela (vulgo "Ponte da Excomungada"), na estrada Pinhel - Castelo Rodrigo ... pu-la de parte. Estava a pouco mais de três quilómetros de Pinhel ... e o troço de Pinhel à Excomungada poderei fazê-lo numa próxima etapa da descida pedestre do Côa. Assim ... rumei a Pinhel ... o que me permitiu belas panorâmicas da cidade e das vinhas que a bordejam a sul, na descida para a Ribeira das Cabras.

Rumo a Pinhel, que sobressai sobre as vinhas dos bons vinhos da região ... passada a Ribeira das Cabras
E assim ... ainda não eram duas horas estava a entrar em Pinhel. Uma boa opção para fim de etapa ... e para fim destes dois belos dias a solo na Grande Rota do Côa. Para a foz, fiquei agora a menos de 80 km; um dia farei o resto em três etapas ... qualquer dia!

Pinhel, 27.Out.2020, 13h50 ... e a descida pedestre do Côa ficou a três etapas da Foz!
Em menos de uma hora, a Rocha Táxis pôs-me em Porto de Ovelha, onde o meu "bólide" tinha ficado a descansar ... à guarda do cemitério da aldeia. E também em menos de uma hora ... de lá regressei ao meu "retiro" de Vale de Espinho ... onde a minha estrela raiana me esperava 😊. Foram dois dias de catarse ... de entrega à Natureza mas também a mim próprio. Como tantas vezes digo, caminhar sozinho não é melhor nem pior ... é diferente; é uma caminhada também ... dentro de nós próprios!
(Clique para ver o álbum completo de fotos)

3 comentários:

Raul Fernando Gomes Branco disse...

Callixto, li toda a reportagem, fiquei maravilhado, não só pela reportagem em si desta tua grande aventura, como pelas fabulosas e maravilhosas imagens que registaste! Bem hajas e um abraço.

José Carlos Callixto disse...

Obrigado pelas tuas palavras, Raul. Sabe sempre bem o teu feedback. Um abraço.

Vítor disse...

A propósito do traçado "Nunca ande pelo caminho traçado, pois ele conduz somente até onde os outros já foram." -Alexander Graham Bell.
Obrigado pela viagem.