quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Outono em Vale de Espinho e nas terras da Raia (2)

Como disse no artigo anterior, continuamos nas nossas terras raianas até depois do Halloween e do Dia de Todos-os-Santos. Mas, desde o final de domingo ... estivemos acompanhados também pela minha panaymi canqui machupiccheña 😉
Areeiro, Vale de Espinho, 28.Out.2019, 14h15
Já nos conhecendo antes e desenvolvido uma bonita Amizade, a "aventura peruana" consolidou e cimentou fortemente essa Amizade. São as ligações mediadas pelo Universo, pela paixão pelos grandes espaços naturais ... pelo Viver, Sentir e deixar Fluir o Tempo e o Vento...
Fontes Lares ... com memórias
4 dias depois de lá ter estado a solo - como tantas e tantas vezes nas minhas peregrinações pelas terras raianas - voltei às "sagradas" Fontes Lares. Quis mostrar à Madalena o meu "santuário", mas a minha estrelita arraiana também foi ... e a mãe dela, que há alguns anos não ia lá. Ela, de entre nós, mais do que ninguém tem guardadas as vivências daquele lugar onde as pedras falam ... onde as memórias fazem com que o tempo pareça ter parado no Tempo...
Aproximamo-nos das Fontes Lares: já se vê o "barroco sagrado" ao fundo ... e o chão "sagrado" dá-nos alimento e sustento
Sim ... no "barroco sagrado" sente-se a energia da Terra, da brisa que corre ... a energia do Espaço e do Tempo!
Dentro destas paredes viveram-se vidas e amores...
Mas tínhamos de deixar as velhas pedras ... e o mato que um dia envolverá pedras e memórias...
Cores de Outono bem vincadas, à medida que descíamos rumo aos Nheres, de regresso a Vale de Espinho
Com mais um manjar dos deuses na mochila, regressámos ao nosso retiro. O Universo tinha sintonizado a panaymi que aceitou o meu convite para vir conhecer este cantinho do paraíso mais em privado e a "contadora de histórias" que as reviveu nas Fontes Lares. Com os seus 85 anos e a tanta energia que a caracteriza, a mãe da minha pequena arraiana diz contudo que a ida às Fontes Lares a cansou ... e que terá sido a última vez que viu aquelas terras, "de onde se contam velhas lendas, quase negras"
... como canta o Sebastião Antunes nos seus "Contos de fragas e pragas" ... inspiradores do título deste blog...
De Vale de Espinho à Lomba, Crelgo e Fonte Moira
No dia seguinte, terça feira ... o dia acordou a chamar-nos para uma peregrinação maior. Um céu azul e um Sol radioso a elevar-se convidava os dois "descobridores" de Machu Picchu a saírem à descoberta dos segredos e mistérios da Malcata. Pouco passava das 7h30 estava assim a levar a Madalena a descer à velha Ponte do Côa e a subir ao Nabo da Crasta e à Lomba. Uma hora depois estávamos na raia de Espanha, ali onde também se juntam terras do Sabugal e terras de Penamacor.

Pela velha Ponte do Côa (foto superior) ... vamos subindo rumo ao Sol que vai nascendo... (Foto inferior: Madalena Marques)
Ao longo da raia, subimos ao Cabeço do Clérigo (ou Crelgo, como é conhecido pelas gentes de Vale de Espinho). Havia nuvens baixas sobre o Piçarrão e as Mesas, mas a Madalena extasiou-se sobre o imenso vale das terras de Valverde; lá muito para sul, sobressaindo às vezes das nuvens, a Serra de S. Mamede; e a sudoeste, bem mais perto, os lendários cabeços da Marvana.

No Crelgo (Cabeço do Clérigo), a 1011 metros de altitude, com a Serra da Marvana ao fundo, a sudoeste
Claro que lhe falei à minha convidada nos velhos tesouros da Marvana, escondidos pelos mouros nas galerias da serra ... e nos amores de Fernando e Beatriz ... e na tragédia do Padre Pedro Picado, pároco de Valverde del Fresno, assassinado depois de ter casado, em segredo, aqueles dois jovens enamorados. Um dia, Madalena ... levar-te-ei também às terras da Marvana, onde tantas vezes já deambulei a solo, onde, de outras vezes, já levei grupos de apaixonados pelas jornadas pedestres, incluindo as "manas" e "manos" que o Universo me deu nos últimos 5 a 7 anos. Um dia...
Nas densas matas sobre as fontes
da Lomba e da Castanheira
A sul do Crelgo voltámos a rumar a norte, afastando-nos agora da fronteira. Uma pequena inflexão no extremo nordeste da Beira Baixa, para dar à Madalena uma ideia das matas e dos cabeços ondulantes da "minha" Malcata, ali sobre os vales pronunciados onde correm as linhas de água que alimentam o Bazágueda. Subimos aos cumes do Coxino e do Passil ... e a ideia era agora descer a Fonte Moira e o Vale da Maria que ainda três dias antes eu tinha subido ... um dos pedaços de paraíso deste meu paraíso raiano. Mais tarde, a Madalena escreveria sobre esta caminhada ... "19 km de poesia..."
Do alto do Passil, admirando o vale da Fonte Moira. Lá ao fundo ... Vale de Espinho (Foto: Madalena Marques)
As águas da Fonte Moira e do Vale da
Maria correm límpidas e saciam a sede
Três dias antes, a solo, tinha apanhado dois ou três tortulhos na Fonte Moira. Mas, fosse pelo misto de humidade/Sol de mais três dias passados ou fosse pela presença da Madalena tornada maga ... dos lameiros entre a Fonte Moira e o Vale da Maria tinham brotado mais daquelas formas apelativas. Foi a maior das colheitas destes dias nas terras raianas, à medida que íamos descendo para o Côa... 😋.

Descendo o paraíso ao longo dos lameiros do Vale da Maria ... onde em 3 dias tinham brotado novos tortulhos
(As duas fotos superiores: Madalena Marques)
Lameiros do Côa, junto à foz da ribeira do Vale da Maria

Antes das 12h30 estávamos a cruzar o Côa e pouco depois em casa, com 19 km nos pés ... os tais "19 km de poesia", nas palavras da Madalena. Como se o Universo soubesse que tínhamos que ter aproveitado aquela manhã de Sol, a tarde de terça feira já foi mais cinzenta ... e quarta feira a panaymi que um dia acompanhou o meu sonho de percorrer o Caminho inca tinha de regressar à sua base ... não sem que antes tivesse ainda uma pequena "visita guiada" à aldeia que um dia me adoptou e que adoptei. Não faltou, claro, a Igreja Matriz de Vale de Espinho ... ou não fosse o orago ... o de Santa Maria Madalena 😊
São da Madalena estes "olhares" de Vale de Espinho, na pequena "visita guiada" a que a levei na manhã de ontem. Já antes da peregrinação na "minha" Malcata ela havia escrito ...
Ver o álbum completo

Perguntei ao vento
De onde veio esta amizade
Que entrou por mim adentro
Com tamanha facilidade...
Humanidade ... fraternidade
Singularidade ... liberdade
Empatia ... universalidade
Com a mais pura naturalidade...

O que te respondeu o vento?... O "adeus" simbolizado pela estrada molhada na última foto do mosaico acima ... não será certamente um "adeus" ... é só um "até breve"...

Quanto ao autor destas linhas e à minha companheira da aventura da Vida ... continuaremos nas terras raianas até depois do Dia de Todos-os-Santos. Mais instantâneos de uma vida ao ar livre? Cada dia é um novo dia ... e hoje é o dia ... da noite de halloween... 😊

domingo, 27 de outubro de 2019

Outono em Vale de Espinho e nas terras da Raia (1)

Fins de Outubro e primeiros dias de Novembro ... é tradicionalmente altura de virmos até às nossas terras da Raia ... à nossa Vale de Espinho. Além da "Festum Omnium Sanctorum",
a festa do dia de Todos-os-Santos, também são as cores do Outono a chamarem-nos ao nosso pequeno retiro ... a casinha da Branca de Neve e dos Sete Anões, como lhe chamamos.
Quarta feira, 23 de Outubro, foi dia de muita chuva. Abençoada chuva! O Côa, os campos e lameiros, toda a Natureza anseia por chuva, que tarda a vir na quantidade a que ainda poucos dias antes tínhamos assistido mais a norte, em terras de Arcos de Valdevez. Depois, no dia seguinte, 5ª feira, o Sol iluminou de novo os céus e a terra ... e este eterno peregrino "dos montes que medem o céu " logo correu às "frias serras onde primeiro o Sol nasceu ... e onde os rios ainda são apenas fontes ".
Às Fontes Lares a corta mato...
Fontes Lares ... o meu "santuário". Perdi a conta a quantas vezes ali fui ... a quantas vezes me deitei no velho barroco "sagrado", como que absorvendo a energia telúrica que dele emana ... a energia das memórias tantas vezes transmitidas ... das memórias que não vivi, que não eram minhas ... mas que sinto como minhas. Ali ... sinto tantas vezes a presença do pai da minha estrela arraiana, do meu saudoso Zé Malhadinhas. Talvez num outro Universo, numa outra dimensão ... ele saiba e sinta a minha Paixão por aquele local e por estas terras. Desta vez, contudo ... optei por chegar lá quase sempre sem trilhos, bordejando a Coba Grande e as Guizias.
Vale de Espinho ... por entre os castanheiros
Sem trilhos ... bordejando a
Coba Grande e as Guizias
E chego às Fontes Lares, à vista do "barroco sagrado"
A mochila, desta vez ... era para trazer tortulhos, ou tartulhos, como aqui são chamados. A pouca chuva ainda não os fez contudo despertar em quantidade e exuberância, ao contrário do Outono de há 4 anos. No entanto, a magia das Fontes Lares deu-me alguns ... um deles mesmo à porta da velha casa em ruínas ... onde continuam as minhas velhas botas, a descansar num sono eterno.
Um dia ... qualquer dia ... a velha casa das Fontes Lares terá sido engolida pela vegetação. Restarão as memórias...
"Minhas botas, velhas, cardadas, palmilhando léguas sem fim ... quanto mais velhinhas e estragadas ...
... quanto mais vigor sinto em mim
"...
Deixando as Fontes Lares, pela igualmente velha casa do t'Zé Tomé
No regresso, ainda rumei ao Lameirão, opção que rendeu mais um tartulho. Num misto de corta mato e velhos trilhos, rumei às Cortes e aos Nheres ... e antes das seis da tarde estava em casa.
Por velhos caminhos, outrora cheios de vida e de gente ... hoje esquecidos e cheios de mato...
Vale de Espinho à vista, rumo à Barreira
As iguarias colhidas passaram na sábia inspecção da mãe da minha estrela ... que pelo sim pelo não entendeu ser a primeira a prová-las... 😋. Pena foi que não houvesse mais...
Pelo Vale da Maria, Fonte Moira e Barroco Branco
Dois dias depois, também a seguir ao almoço ... parti em busca de mais tartulhos para os lados da ribeira do Vale da Maria ... mas também em busca de mais cores, reflexos, sons, cheiros ... sensações.
A caminho do Côa ...
... junto ao Moinho da Nozeira: reflexos, cores e sons do Côa ... que anseia por mais água
Atravessei o Côa quase em frente ao velho Moinho da Nogueira (ou Nozeira) ... o que revela a pouca água que leva. E comecei a subir o curso da ribeira do Vale da Maria ... lembrando-me do percurso seguido há poucos meses, quando cantei às minhas netas a melodia de dormirmos os três na serra. Mas agora, a solo, acompanhei o curso da ribeira, com mais água do que o caudal do Côa faria prever.

Subindo o vale ... rumo ao Sol que vai descendo
Os lameiros do Vale da Maria são pastagem habitual de ovelhas e cabras...
Estas ovelhas pastavam tranquilamente no lameiro ... mas esta caminhada teve uma história: a certa altura, já entre o Vale da Maria e a Fonte Moira, vejo aproximar-se um cão, guardador das ovelhas que estavam mais abaixo, como que em minha perseguição. A "cara" dele não era ameaçadora, mas não ladrava … o que normalmente não é muito bom sinal. Nunca tive até hoje problemas com cães … mas não sei porquê peguei num pau … que felizmente não precisei de usar. Ele aproximou-se … eu falei-lhe "ao ouvido" … disse-lhe que estava ali em paz e que não tinha feito mal às suas ovelhinhas; ele estacou a um metro de mim, a ouvir-me … só depois então ladrou … no preciso momento em que voltou para o seu terreno e para as suas ovelhas. E eu, como não havia ali tartulhos ... continuei serra acima...
Fonte Moira:
a água desce, enquanto eu subo, rumo
ao Sol ... e aos tartulhos 😊
Acima já da Fonte Moira, a caminho do Cabeço do Passil e da Lomba
Fura mato, serra acima...
Quando saí de casa apenas pensava ir à cata dos tartulhos no Vale da Maria. Como não os havia fui subindo, encontrei-os na Fonte Moira. Lá em cima, na Lomba que separa as terras do Sabugal das terras de Penamacor, o Sol ia descendo ... e eu fui subindo atrás dele. Há já algum tempo que não subia ao limite das Beiras. Quase furando o mato e sempre com a Barroca da Fonte Moira por guia ... vinte minutos antes das cinco da tarde estava acima dos mil metros de altitude. Para sul ... abriam-se-me as colinas ondulantes da "minha" Malcata, a perder de vista. Eu e o Universo! Sinto-me fazer parte da paisagem ... sinto a paixão que me liga a estes campos, a estas serras, a estes sons, a estes cheiros ... que tão bem conheço e me conhecem. Extasio-me num olhar contemplativo...
Próximo do Cabeço do Passil, 16h45: da Lomba ... extasio-me ante as colinas ondulantes da "minha" Malcata
E agora? Estava na Lomba, tinha mais cerca de duas horas de luz. Podia descer pela Pelada ... mas apeteceu-me continuar ao longo da crista, pelo menos até ao Barroco Branco, o afloramento quartzítico que se assoma passado o Cabeço da Moura para poente ... para onde o Sol descia, para se recolher atrás das colinas da Malcata, ali por entre, ao fundo, as alturas da Gardunha e da Estrela.
Cabeço da Moura, 17h20 (1076m alt.)
E sigo ao longo da Lomba. O ambiente começa a ganhar as cores do fim da tarde.
Barroco Branco, afloramento quartzítico entre o Cabeço da Moura e o Espigal
No cimo do Barroco Branco ... lá em
baixo, projectado no solo, estava alguém..
Do Barroco Branco ... havia que "mergulhar" rumo ao Alcambar e ao Côa, para regressar a Vale de Espinho. Sabia ... que não havia trilhos. Sabia que seria descer quase que a direito, ao longo do curso da Barroca Direita, pelo meio ... do que aparecesse. Já por ali andara há uns anos ... mas o mato nunca está igual, a Natureza é dinâmica. E assim, ora pelo meio das ramagens e das cores fabulosas do Outono ... ora pelo meio de um emaranhado de giestas e de silvas ... à hora do pôr do Sol estava no caminho que desce do Alcambar para os Pradinhos e para o Moinho do Rato.
Pela magia outonal, a corta mato, a caminho do Alcambar
 
Com o dia a declinar, cruzei o Côa no sempre belo Moinho do Rato. Trazia praticamente 15 km nos pés quando o sino de Vale de Espinho (infelizmente electrónico) tocou as 19h00. Se fosse hoje ... seria já noite cerrada ... entrámos na hora de inverno ... os dias são mais curtos ... a noite foi mais longa uma hora.
Por cantos e recantos já sobejamente palmilhados ao longo de quase meio século ... estas duas caminhadas vivi-as contudo intensamente. Souberam-me a Vida, a cor ... a "música". Porquê? Não sei. Talvez pelo improviso. Afinal, em ambas ... eu saí de casa apenas para ir aos tartulhos, sem rumo, sem destino, sem percurso definido ... aonde o improviso me levasse.
Moinho do Rato, 18h45: o Sol já se tinha posto ... mais uns 20 minutos e caía a noite nas terras de Vale de Espinho
Continuaremos nas terras raianas até depois do Halloween e da "Festum Omnium Sanctorum" ... mas estas duas caminhadas mereciam desde já ... mais uma crónica de uma vida ao ar livre.
Os percursos das duas caminhadas descritas
nesta "crónica" ... (clicar nos mapas para ampliar)
... e o link para o álbum completo de fotos (clicar na foto)