sábado, 28 de janeiro de 2017

Em terras de Envendos e do Ocreza

Novos Trilhos. Mais uma caminhada, a última de Janeiro. E que caminhada! Com início na aldeia de São José das Matas, na região de Envendos, concelho de Mação, a proposta era uma caminhada circular, a norte e a sul da A23, com passagem pelas gravuras rupestres encontradas no vale do Ocreza quando da construção daquela auto-estrada e que fazem parte do sistema mais vasto de gravuras submersas pela Barragem do Fratel.
28.01.2017, 9h50 - Mais uma caminhada Novos Trilhos,
à saída de S. José das Matas, Envendos
Pouco depois das 9 horas de uma manhã fria e enevoada, juntávamo-nos assim junto à Igreja de S. José das Matas quase 30 caminheiros ... e uma caminheira canina já frequente nas caminhadas Novos Trilhos. Por estradões de bom andamento, rumámos a norte, em direcção à serra de Envendos, passando por baixo da A23 no chamado viaduto do Vale Longo.
Às onze horas estávamos a subir a encosta sul do Penedo do Aivado, na linha de cumes que separam o norte e o sul da freguesia de Envendos. Começaram as subidas mais radicais ... bem à maneira dos Novos Trilhos. O objectivo era o cume de Castelo Velho, a 434m de altitude, com uma ampla panorâmica sobre a serrania e a Barragem da Pracana, no rio Ocreza.

Subida da encosta sul do Penedo do Aivado, serra de Envendos. Progressão nem sempre fácil...
Panorâmica para a encosta norte e aldeia de Zimbreira
Barragem da Pracana (rio Ocreza), vista do Castelo Velho
Do Castelo Velho descemos à bela cascata do Pego da Rainha, um autêntico paraíso na Ribeira da Zimbreira e próxima da aldeia do mesmo nome. A ribeira é afluente do Ocreza e ali se precipita entre paredes rochosas escolhidas para principal núcleo da escola de escalada de Mação.

Cascata do Pego da Rainha. A Kiara ... foi a única
a "provar" as delícias deste paraíso!
(Foto superior: Cris Madeira)
Do Pego da Rainha seguimos para a Barragem da Pracana e para o "Circuito Rupestre" ali assinalado. Poderia e deveria ser um belo trilho! A paisagem é soberba, acompanhando a margem direita de um Ocreza selvagem e ultrapassando diversas linhas de água por pontes de madeira, como as ribeiras de Aivado e de Alpalhão, que correm para o rio, enquanto nos aproximamos do altivo e imponente viaduto do Ocreza, na A23.

Descida ao vale do Ocreza, com o viaduto da A23 ao fundo
Passagem da Ribeira de Aivado
Rio Ocreza
Cascatas da Ribeira de Alpalhão
Passagem da Ribeira de Alpalhão e
descida às pinturas rupestres do Ocreza
Apesar das indicações iniciais e das pontes de madeira ... pouco depois da ribeira de Alpalhão o trilho torna-se complicado. Não só se encontra mal cuidado como desaparecem as indicações ou mesmo quaisquer painéis alusivos às pinturas rupestres. Junto delas, só os mais entendidos saberão que estão ali obras de arte com dez a quinze mil anos, tais como a Rocha do Cavalo e a Rocha dos Dois Veados. O próprio trilho desaparece, tornando-se pedregoso e, por vezes, carregado de vegetação.

Rocha do Cavalo ... esquecida
e abandonada à beira do Ocreza
Isto é trilho... 😕 (sob o viaduto da A23)
(Foto à direita: Helder Carvalho)
E já são horas de um almoço tardio... (Foto: Helder Carvalho)
Ocreza segue o seu rumo para o Tejo
Rocha do Peixe
Continuando a acompanhar o curso do Ocreza, a seguir às pinturas rupestres vimo-nos envolvidos por uma autêntica selva de mato e silvas, em permanente desbravar até à foz, no Tejo. O trilho já terá existido, nota-se a sua existência ... mas quase tão antigo como as gravuras... 😳. Três quartos de hora para percorrer um quilómetro ... evidencia bem as características daquele "trilho"...! A Câmara de Mação muito tem ali a fazer, essencialmente entre a Ribeira de Alpalhão e a foz do Ocreza, no sentido de valorizar um trilho que poderá ser espectacular e a importância das pinturas rupestres.

Ponte do Ocreza, Linha da Beira Baixa
Já passava das quatro da tarde quando saímos da "selva". O Ocreza verte as suas águas no Tejo e nós estávamos agora na linha da Beira Baixa. Do lado de lá do Tejo é Concelho de Nisa ... e lá estava nítido o que resta dos muros de sirga naquele troço do rio, fazendo parte actualmente do percurso pedestre Trilhos das Jans, que percorri há uns já longínquos 14 anos, com os Caminheiros Gaspar Correia. Um caminho de sirga é um caminho ao longo das margens de um rio ou canal e que tem como objectivo permitir a tracção de barcos por meio de animais ou pessoas. A sirga era o cabo de sisal utilizado para rebocar os barcos a partir da margem, solução frequentemente utilizada quando a navegação à vela era impossível, por exemplo devido à existência de correntes fortes.


O Tejo entre a foz do Ocreza e a Barca da Amieira. Do lado de lá está o Trilho das Jans, sobre o muro de sirga
Antes das cinco estávamos na Estação CP da Barca da Amieira, outrora um importante interface de ligação entre as duas margens do rio. Os passageiros provenientes ou destinados à margem sul  - por exemplo à Amieira do Tejo - passavam o rio na barca que deu o nome ao local e à estação.

Estação da Barca da Amieira / Envendos
Junto ao Tejo, a uns escassos 75 metros de altitude, restava-nos subir quase 200 metros de desnível, de regresso a S. José das Matas. Fizemo-lo em pouco mais de meia hora, pelo que pelas 17h15 estávamos no ponto onde oito horas antes nos havíamos encontrado, com quase 24 km percorridos, de uma caminhada dura nalguns troços ... mas fabulosa! Obrigado Novos Trilhos!
Subida do Tejo de regresso a S. José das Matas e ao ponto de partida
Ver o álbum completo

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Margem do Tejo ... ou uma caminhada literária...

Apesar de maioritariamente já percorrido, um desafio para uma Grande Rota na margem do Tejo é sempre tentador. Dinamizado por um "mano" e na companhia de outro ... é duplamente tentador.
Bobadela, 25.01.2017 ... 6h58
O ponto de encontro era na praia dos pescadores da Póvoa de Santa Iria, para dali seguir o mais possível junto ao Tejo. Mas, à semelhança da "aventura insana" de Novembro de 2015 - quando fiz da Bobadela a Santarém em menos de 14 horas - resolvi partir ... da porta de casa 😊
Apesar da manhã bastante fria e de um denso nevoeiro ... às sete horas já estava a avançar rumo a S. João da Talha, Pirescoxe, Santa Iria...

No Aqueduto do Alviela, junto a Pirescoxe
Há universos numa gota de água... (junto à Solvay, Póvoa de Santa Iria)
Apenas um curto troço de EN 10 junto a Santa Iria, e depois junto à linha do comboio, pelo viaduto de acesso à Solvay, a Rua da República e a Estação CP da Póvoa. E antes das oito e meia, com quase 8 km percorridos, estava no início do Trilho do Tejo, junto à antiga aldeia dos Avieiros da Póvoa e da respectiva Associação. Pouco mais à frente, na antiga praia dos pescadores ... restava-me aguardar pelos "manos" e pelos restantes participantes, que chegaram por volta da hora marcada. O objectivo inicial era seguirmos até ao Carregado, mas o "chefe" indicou logo que esta era uma jornada ao sabor da respectiva evolução, a acompanhar o Tejo ... e as memórias dos "Avieiros".


Desde sempre o rio Tejo atraiu pescadores vindos de longe. Com a chegada do século XX, Vieira de Leiria tornou-se protagonista de uma das mais singulares migrações internas que Portugal conheceu: a dos "Avieiros". Durante décadas, esta gente dividia a sua vida entre o Verão em Vieira e o Inverno no Tejo, mas chegou o dia em que deixaram de regressar durante o Verão, ficando para sempre ligados à história do rio. Alves Redol retratou a vida quotidiana daqueles nómadas de um rio-vida, ao qual estavam sujeitos de forma irremediável, no infortúnio ou na bem-aventurança.

Aldeia avieira da Póvoa: memórias perdidas no tempo, que o Tempo não deixa esquecer
Mas, na esteira dos Avieiros do Tejo ... nós estávamos também no Caminho de Fátima / Santiago. Quando, em Julho de 2013 conheci o Parque Ribeirinho da Póvoa, então recém inaugurado, estava ainda longe de saber que, apenas um ano depois ... os Caminhos de Santiago iam entrar no Caminho da minha Vida.
No Caminho... (Foto: J. M. Messias)
Os caminhos do Parque da Póvoa fazem parte do Caminho do Tejo, proveniente de Lisboa e da várzea do Trancão.

Pouco depois das 11 horas estávamos no Museu do Ar, em Alverca
Pouco depois de Alverca, uma ruralidade em contraste com as indústrias envolventes
Após uma breve pausa em Alverca, continuámos na senda das setas azuis e amarelas, até próximo da Quinta do Cochão, uma quinta setecentista infelizmente degradada, que pertenceu à Casa do Cadaval. Ali, o Caminho de Fátima / Santiago ruma à EN 10, devido à dificuldade de transposição de algumas valas e à existência de algumas fábricas abandonadas.

Quinta do Cochão, Alverca
Junto à Quinta do Cochão deixámos provisoriamente o Caminho. O nosso "guia" conhecia por onde passar ... até porque rumávamos agora à Praia das Maçãs, uma antiga praia fluvial, no Tejo, também conhecida por Praia dos Tesos, entre Alverca e o Sobralinho. Frequentada ainda nos anos 50 e 60 do século passado por operários e agricultores que não tinham posses para se deslocarem para outras praias mais "célebres" - daí o topónimo "dos tesos" - nela chegaram a ser montadas barracas de praia e havia até quem vendesse tremoços. Presentemente, fala-se na sua eventual recuperação ("O Mirante", 2009), o que seria não só uma mais valia para as populações como também um impulso para que o Caminho do Tejo pudesse finalmente unir a Póvoa a Vila Franca de Xira.

A caminho e na Praia das Maçãs (Praia dos Tesos). Já passava do meio dia, mas o nevoeiro persistia.
À Praia das Maçãs seguiram-se as ruínas das velhas fábricas de aproveitamento de madeiras e de moagens. As valas que conduzem pequenas linhas de água para o Tejo foram ultrapassadas por pontões improvisados ... e nem sempre muito estáveis. Mas à uma hora estávamos em terreno seguro.

Transpondo valas à beira-Tejo, entre a Praia dos Tesos e o Sobralinho
Paredes que viram passar vidas, famílias, labuta
A partir do Sobralinho, o objectivo seguinte era a histórica Coluna de Hércules, sobranceira a Alhandra. Meio a corta mato, a subida não foi propriamente fácil, mas à uma e meia estávamos a almoçar, sob a protecção da clássica figura grega e com a bela panorâmica sobre Alhandra e o Tejo. Datada do final do século XIX, o monumento comemora a vitória das tropas anglo-lusas sobre os exércitos napoleónicos. Hércules simboliza a resistência dos exércitos aliados face ao invasor.


Subida à Serra de S. Lourenço e à Coluna de Hércules


Panorâmica sobre Alhandra e o Tejo, com
a Ponte de Vila Franca ao fundo

Uma vez almoçados, descemos a Alhandra, que atravessámos, e de novo à margem do Tejo. para percorrer a sempre bela zona ribeirinha entre aquela vila e Vila Franca de Xira.


Memória do Dr. Sousa Martins, natural de Alhandra
e respectiva Casa Museu, na zona ribeirinha
x
Percorrer estas margens é recordar José Tomás de Sousa Martins, natural de Alhandra, mas também Alves Redol, mais uma vez ... e Soeiro Pereira Gomes e os seus "Esteiros" ... "minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga".

Alhandra: monumento a Soeiro Pereira Gomes e a todos os “filhos dos homens que nunca foram meninos
Por trás, ao fundo, a Igreja de S. João Baptista
Uma garça viaja à boleia de um banco de jacintos
Passava já das três e meia quando iniciámos o passeio ribeirinho de Alhandra a Vila Franca. Um passeio onde todos os bancos são ilustrados por belos grafítis ... mas onde um tem um significado muito especial...

(Foto: João Brito)
Dedico esta foto a todos os peregrinos. Mas dedico-a especialmente e
dedico o que sinto cada vez que aqui passo aos que comigo já
partilharam as sensações e as emoções de um Caminho de Santiago!
Já à entrada de Vila Franca, Álvaro Guerra recorda-nos que "ao futuro entregarei sempre o melhor do meu passado" ... e no Cais da Jorna revivemos a vida dos trabalhadores rurais das lezírias que, ao longo da primeira metade do sec. XX, ali se juntavam às segundas feiras a fim de contratarem trabalho por uma semana - os "jornaleiros" - junto dos proprietários rurais ou seus capatazes - os "manajeiros". Outros tempos ... outras lutas ... outras gentes...

Vila Franca de Xira: monumento de homenagem ao Cais da Jorna
Às quatro e meia da tarde estávamos no Jardim Constantino Palha, entre o rio e a linha férrea. Era cedo, mas era tarde para prosseguir; havia que regressar. Pelo lado do autor destas linhas, com a "etapa" matinal até à Póvoa, tinha palmilhado quase 28 km ... os restantes seis elementos cerca de 20.


Um adeus a Vila Franca ... com os
olhos em Alves Redol e nos Avieiros...
"Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Mas os homens amam e apaixonam-se. Por belas coisas, às vezes; por coisas mesquinhas, outras tantas."
(Alves Redol, "Avieiros")
Estação CP de Vila Franca de Xira, 16h50
E o regresso foi de comboio. Em menos de meia hora ... seis "intérpretes" desta caminhada literária saíram na estação da Póvoa. Outro ... saiu na Bobadela. E todos trazíamos mais umas belas memórias para guardar; as memórias da margem do Tejo, das suas gentes, da sua história, da sua luta. Mas também da paixão que o nosso "guia" transmitia a cada esquina do caminho ... ou do Caminho!
Ver o álbum completo