domingo, 12 de maio de 2019

De Vale de Espinho a Santiago ... pelo Caminho das Estrelas (4)

Ourense é uma cidade maior do que pensava, apesar de já a conhecer. Mesmo depois de atravessar o Minho, levámos quase uma hora a sair da área urbana, subindo o Camiño Real de Cudeiro.
O Rio Minho em Ourense, 7.Maio.2019, 7h30
De Ourense a Santiago ... ao campus stellae...
Santiago de Compostela, 10 de Maio
O 13º dia de Caminho sabíamos que iria ser longo e duro, maioritariamente ascendente. A Natureza voltou a evidenciar-se em pleno, numa manhã a prenunciar chuva, que contudo não passou de pequenos borrifos. A magia dos bosques exuberava de cor e de vida!
Cudeiro, a norte de Ourense, 7.Maio.2019,
08h05 - Santiago espera-nos...
Igreja de San Pedro de Cudeiro, no Camiño Real
Envolvidos por antigos castanheiros e carvalhos, a caminho de Tamallancos
Com 13 km percorridos, o Bar "A Tua Taberna", em Tamallancos, foi a nossa primeira breve paragem. Uma zona rural, com muitos espigueiros ... e uma "família" a saudar os Peregrinos, em Bouzas.

Entre Tamallancos e Faramontaos: uma Natureza exoberante ... e já estávamos a menos de 100 km de Santiago!
Cruzámos o rio Barbantiño por uma ponte medieval, a que se segue uma aldeia abandonada ... tão abandonada que nem tem direito a nome no mapa. Em Biduedo fomos encontrar uma devoção a Nossa Senhora de Fátima ... e antes da uma da tarde estávamos em Cea, onde a maior parte dos Peregrinos faz final de etapa. No "Sol y Luna", o bar onde almoçámos, lá estava o Francesco com os amigos, um Peregrino italiano que já tínhamos encontrado várias vezes. Como não podia deixar de ser, quisemos almoçar com base no afamado pão de Cea,"posiblemente un dos mellores panes do mundo". Uma boa tosta, é um facto ... mas sinceramente não o achámos um manjar dos deuses por aí além.

Ponte medieval sobre o rio Barbantiño e a aldeia abandonada que se lhe segue
Devoção a Nossa Senhora de Fátima, em Biduedo
Através de mais uma de tantas Catedrais verdes, a caminho de Cea
Praça maior e Torre do Relógio de Cea, 12h30
A seguir a Cea o Caminho tem duas variantes: directamente para Castro Dozón, ou pelo Mosteiro de Santa María la Real de Oseira. São 5 km mais, mas a intenção era irmos dormir no recolhimento daquele Mosteiro medieval, de fundação beneditina, considerado por muitos o Escorial galego. Oseira mantém um Albergue de Peregrinos na antiga biblioteca monástica. Na comunidade dos monges que ainda ali vivem, imaginei que pudéssemos ser transportados para outro universo ... o divino, o intemporal. Mas ... o mais recente comentário no Gronze já levava a Paula algo assustada ... e a expressão da Dª Elma, dona do Bar Venezuela, em frente do Mosteiro, quando lhe dissemos que íamos lá dormir ... acabou com as dúvidas. Rapidamente deixámos Oseira para trás, rumo a Castro Dozón.
A caminho de Oseira, por entre milladoiros
e o matizado da urze e da carqueja
Mosteiro Cisterciense de Santa María La Real de Oseira
E assim descemos dos montes de Oseira, não sem ainda uma boa subida inicial, por trilhos com muita pedra ... e muita água e lama. Curiosamente, tinha chegado a Oseira quando de lá partimos uma família espanhola a fazer o Caminho de bicicleta: um casal e 3 filhos ... o mais pequeno com 3 anos, transportado num carrinho atrelado à bicicleta do pai! Havíamos de os encontrar mais vezes.
Descida dos montes de Oseira para Castro Dozón,
acompanhados por muita pedra, água e lama...
Chegámos ao Albergue de Castro Dozón quase às seis horas de uma tarde cinzenta, com 44 km nos pés. O Albergue tem serviço de refeições ... pelo que já nem de lá saímos. Este foi o dia em que, neste Caminho ... mais senti Santiago a guiar-nos, a mim e à Paula; a guiar-nos no Caminho, nas decisões ... e a guiar-nos entre os dois. Porquê? Não sei. No Caminho muita coisa não se explica ... sente-se. Talvez porque o Caminho não é o chão que pisas ... o Caminho somos nós... 🙏
Nos bosques entre Castro Dozón e A Eirexe e na Capela do Carme, em A Xesta, 8.Maio.2019, 09h20
E o Caminho levava-nos cada vez mais perto do campo das estrelas, onde contávamos chegar na 6ª feira, 10 de Maio. Dois dias antes, ficaríamos ou em A Laxe (o que seria uma etapa curta) ou em Silleda, onde tínhamos boas referências de um Albergue privado com bom preço e onde podíamos cozinhar. Resolvemos reservar duas camas ... e falámos nele ao já nosso amigo Carlos Duarte, que mais uma vez tinha estado connosco em Castro Dozón, na véspera, sem ter passado por Oseira.
No bar de A Eirexe ... com uns
Peregrinos muito especiais...
Com 16 km percorridos em três horas e meia, na nossa 14ª jornada fizemos uma primeira paragem num bar em A Eirexe. Um bar que até parecia fechado, mas no qual até estavam outros Peregrinos, entre os quais um casal espanhol, Amador e Lourdes. Que Caminho tínhamos feito, de onde tínhamos partido, palavra puxa palavra ... conheciam muito bem Vale de Espinho, os Fóios, o El Dorado dos meus amigos Quim e Ramitos, tudo! Como o Mundo é pequeno! Voltaríamos a encontrar-nos.
Seguiram-se belos bosques, ao longo de uma manhã ... em que foi preciso puxar das capas da chuva.

A ponte velha de Taboada,
sobre o rio Deza
Imagens de um conto de fadas? Não ... são imagens do Caminho Real e dos bosques a caminho de Silleda
Mais uns pitéus culinários da Paula,
no Albergue de Silleda 😋
Pouco depois da uma estávamos no Albergue Turístico de Silleda. Boas instalações, cama feita, toalhas, possibilidade de cozinhar ... por 10 € cada um não se pode pedir mais. E portanto, banho, roupa a lavar ... e fomos ao supermercado mais próximo comprar mantimentos para o almoço, lanche, jantar e pequeno almoço!
De barriga cheia, fomos dar uma volta pelo centro ... até porque a Igreja de Silleda é a Igreja de Santa Eulália. Fechada, como quase todas. Mas numa rua próxima detivemo-nos a ler um original painel de palavras galegas e de poemas galegos de poetas e músicos ... da pátria galega.
Igreja de Santa Eulalia de Silleda
e painel da língua galega: palabras, poemas e poetas...
Neste passeio, quem encontramos? O Amador e a Lourdes, o casal espanhol que conhêramos de manhã e que conhecem Vale de Espinho e os Fóios. Hospedados num hostal, mas claro que brindámos com eles no bar ao lado do "nosso" Albergue. E, no Albergue ... o Carlos, o "nosso" português! O que tínhamos comprado chegava seguramente para os três ... e ainda sobrou!
No dia dos afectos ... mais uma refeição made by Paula ... mais convívio ... mais amizade
No dia seguinte ... queríamos ficar o mais perto possível de Santiago. Reservámos, nós e o Carlos, três camas no Albergue "Reina Lupa", no lugar de Deseiro-Sergude ... a 11 km do Obradoiro. O Carlos sairia mais tarde, mas lá chegaria ao destino. Nós dois ... pouco depois das sete estávamos a deixar Silleda, rumo a Bandeira e ao vale do Rio Ulla ... numa manhã em que a chuva de vez em quando molhava...
Formas numa manhã cinzenta, entre
Bandeira e Castro, 9.Maio.2019, 9h20
Igreja de San Martiño de Dornelas, 9h45
Viaduto ferroviário e vale do Rio Ulla, com o Pico Sacro ao fundo
Este era (e foi) um dia de emoções fortes. Em Ponte Ulla, eu ia ao encontro do percurso do "Caminho da Aventura" ... o meu primeiro Caminho de Santiago. A descida para Ponte Ulla foi contudo complicada, dado o piso muito escorregadio. Eu ... ia caindo por duas vezes; a Paula ... caiu mesmo; num grupo de Peregrinos franceses ... houve igualmente uma queda. Felizmente sem consequências de maior, às onze e meia estávamos em Ponte Ulla. A partir dali estava em terreno conhecido ... e a minha "velha amiga" do Churrasco de Juanito ajudou a Paula na recuperação da queda.
Ponte Ulla, 9.Maio.2019 (à direita) ... 12.Jul.2014 (em cima à esq.), no "Caminho da Aventura"...
... e 9.Maio.2015 (em baixo, à esq.), num Caminho feito em família.
Ponte Ulla, no Churrasco de Juanito,
com a Dª Júlia, proprietária ... que é portuguesa, "tripeira"...
De Ponte Ulla seguimos para a Capela e Fonte do Santiaguinho, próximo do Albergue do Outeiro ... e do Pico Sacro. Mas este foi, como disse, um dia de emoções fortes. As emoções nunca são as mesmas, mesmo que num mesmo local. Não há dois momentos iguais...!
Capela e Fonte do Santiaguiño
O Pico Sacro, que foi o ponto alto do meu "Caminho da Aventura", onde levei o Caminho feito em família ... o Pico Sacro que ficou marcado em mim de múltiplas formas ... não estava destinado nos desígnios do Universo para ser Vivido desta vez, neste Caminho. Com a meteorologia adversa como estava ... nem deveríamos ter subido.
Com o Carlos e a dona do
Albergue Reina Lupa e do Bar Rosende
Debaixo de chuva e encharcados até aos ossos, às duas e meia estávamos no Albergue "Reina Lupa", um excelente Albergue com menos de um ano, ao lado do Bar Rosende, no lugar de Deseiro-Sergude. Umas horas depois chegaria o nosso amigo Carlos Duarte, além das duas eslovenas e de mais Peregrinos. Jantámos excelentemente no bar, com a amabilidade da simpática Carmiña. Estávamos na véspera da nossa chegada a Santiago!...

Ermida de Santa Luzia, Camiño
Real de Piñeiro, 10.Maio.2019, 8h10
Apesar de estarmos apenas a 11 km da Praza do Obradoiro, às sete horas estávamos a deixar o "Reina Lupa". Queríamos Viver Santiago ... tanto mais que a minha Mana Paula tinha-me prometido uma surpresa para a nossa chegada! E como o Universo tem destas coisas ... ia chegar no mesmo dia em que, quatro anos antes ... fiz esta mesma etapa com o meu "ninho" familiar. Tal como nesse dia e em 2014, no "Caminho da Aventura" ... a emoção tomou-nos, na fatídica curva de Angrois...
Na fatídica curva de Angrois, 9h00: local
da tragédia de 24 de Julho de 2013
Rua do Sar e ponte sobre o Rio Sar, 9h25 ... e já víamos as torres da Catedral
Vinte minutos antes das dez da manhã, estávamos a entrar no casco histórico de Santiago! Já tínhamos tirado as capas da chuva. Tinham caído apenas uns borrifos e, apesar dos reduzidos 12º ... não tínhamos frio! De mãos dadas e eufóricos, entrámos na mágica e mítica Praza do Obradoiro; vindo de muito fundo dentro de mim, soltei um grito bem alto:       SANTIAGO !!!

Com sensivelmente 500 km percorridos, pelo 4º ano
consecutivo os nossos pés chegavam juntos a Santiago!
Chegar a Santiago a pé, entrar na mágica Praza do Obradoiro, é uma sensação que não se consegue descrever. Sente-se, Vive-se, exterioriza-se ali toda a carga que pusemos no Caminho percorrido, partilham-se emoções com os outros Peregrinos que também lá estão, uns que acabaram de chegar, outros que assistimos à chegada. É todo um Mundo, toda uma Dimensão! É como se o Tempo parasse, como se estivéssemos num outro Universo, um Universo de um Tempo sem tempo nem espaço.
Praza do Obradoiro, Santiago ... um Mundo de emoções ... num Universo que só se Vive e só se compreende n'O Caminho
Em plena Praza do Obradoiro, passadas as primeiras emoções da chegada, a Paula revelou-me a surpresa de que me falara desde antes da partida ... e sobre a qual eu lhe prometera não lhe dizer nada, não lhe perguntar nada. Como escrevi no preâmbulo a este nosso Caminho,
Certificado alusivo ao nosso Caminho, exibindo orgulhosamente
que o mesmo teve início ... na "minha" Vale de Espinho
era minha e nossa intenção inicial complementá-lo nos Camiños da fín da terra, à semelhança de todos os Caminhos que tínhamos feito juntos, nos anos anteriores. Um pedacinho de terra beirã, da terra de Vale de Espinho ... iria misturar-se com as águas que lavam os rochedos mágicos da Virgem da Barca, em Muxía. Mas, à separação da minha estrela e do meu ninho inerente aos Caminhos que temos Vivido, voltar a Fisterra e a Muxía significaria mais 4 dias num Caminho que repetiríamos pelo quarto ano consecutivo. Então, em pleno Obradoiro, a Paula revelou-me que a surpresa era ... regressarmos a casa no dia seguinte! Foi ela própria a dar a novidade, quando já estávamos na Oficina do Peregrino, à pequena estrela arraiana que, a 500 km de nós ... ia desmaiando de comoção. Haverá maior exemplo de abnegação, de dádiva ... de Amor?
Pouco antes da Missa do Peregrino, na Igreja do Convento de S. Francisco, 11h55
Tal como nos dois anos anteriores, a nossa "casa" em Santiago foi no Albergue Blanco, a dois passos do Obradoiro. Largadas as mochilas e após o tradicional e "obrigatório" abraço ao Apóstolo, na Catedral, assistimos à Missa do Peregrino, que actualmente se celebra na Igreja de S. Francisco, dadas as obras no interior da Catedral; o exterior, a fachada da Catedral ... foi a primeira vez desde há muitos anos que a vimos limpa, sem andaimes! E durante a tarde, a terra de Vale de Espinho, que viajou quase 500 km na minha mochila, ficou a fortalecer a terra de Santiago ... ali, entre o Obradoiro e a Igreja de S. Francisco. Depois, o resto da tarde e noite ... foram para Viver Santiago ... e com o Carlos, que entretanto chegara também, ao seu passo ... no seu Caminho!
Vale de Espinho - Santiago: terras
diferentes ... uma mesma terra...
Um brinde à Vida (no "Gato Negro", 20h20)
Esconxurando todos os males (no "Fuco Lois", 23h00)
De regresso ... ou num portal entre dois mundos...
Em casa, 12 de Maio
Sábado, 11 de Maio, seria o dia em que partiríamos de Santiago para as terras "do fim do mundo". Mas, face à surpresa que a Paula nos reservara ... sábado era o dia do regresso. Sensação estranha, depois de 3 anos consecutivos, a de não sair, com o Sol a nascer, para os Caminhos de Fisterra.
Santiago de Compostela ... num portal entre dois mundos...
11.Maio.2019, 10h50
Uma manhã em Santiago, um segundo abraço ao Apóstolo, o sentir no rosto dos Peregrinos que chegavam as emoções que tão bem conhecíamos ... que tão bem Amamos.
Ao meio dia ... o autocarro da ALSA saía de Santiago. Tínhamos partido dois para este Caminho ... mas regressávamos três; "alguém nos vai acompanhar amanhã" ... dizia-me a Paula na véspera, nos preâmbulos da revelação da surpresa. Nos Caminhos de Santiago, tínhamos feito mais um bom amigo.
Pontevedra, Vigo, Valença ... tudo passava agora rapidamente. Às duas horas portuguesas estávamos no Porto, onde como habitualmente almoçámos. Aproximava-se a hora de regressar ao ninho, de abraçar mulher, filhos, netos ... mas aproximava-se também a hora da despedida. Santiago e aquele autocarro ... são um autêntico portal entre dois mundos, entre dois Universos.
Porto, 11.Maio.2019, 14h35, no fim de mais um Caminho ... ou no princípio do próximo...
Antes das sete horas a Paula saiu em Fátima ... onde também tantos Caminhos já nos conduziram ... onde outros nos hão-de conduzir. Foi e será sempre um privilégio ter percorrido mais este Caminho com esta minha Irmã, que o Universo trouxe ao meu Caminho ... um Caminho que foi difícil, física e psicologicamente, mas que vencemos, com a força com que Santiago nos preenche o corpo e a Alma. Obrigado, minha Irmã!
De regresso ao Amor que sempre me agarda ... de regresso ao ninho
12.Maio.2019, 15h00
São infinitos paralelos que se cruzam,
são experiências intemporais,
um turbilhão de histórias perdidas
na crescente sintonia dos afectos...
                                     (Anabela Pacheco)
Obrigado também ao Amor que sempre me agarda no fim dos meus Caminhos, à estrela nascida um dia na nossa Vale de Espinho ... onde um dia Sonhei começar este Caminho ... porque entre o Sonho e a realidade acontece a Vida ... porque em cada Sonho há um Caminho!
Obrigado Universo! Obrigado Vida!

Entre emoções, sentimentos, sensações ... a Vida é um eterno descobrir...
                                     (Anabela Pacheco)
(Escrito em casa, depois do Caminho, ao longo dos dias 19 e 20 de Maio)                        FIM
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