"Meti a direito pelos fraguedos, e foi até o corpo dizer basta"(Miguel Torga, Diário VIII)
Não sendo homem de ambições competitivas, ou recordistas, as "aventuras" dos últimos anos têm-me criado contudo uma crescente vontade de testar, de certo modo, os meus limites e capacidades. Até onde seriam as minhas pernas capazes de me levar? O máximo que alguma vez tinha feito num dia tinham sido 46 km, quando em Agosto de 2008 "peregrinei" de Vale de Espinho à Senhora da Póvoa e regressei quase até ao Sabugal. Nessa e nas muitas outras deambulações pela minha Malcata, a Gardunha fecha sempre o horizonte, a sudoeste, para lá da grande Cova da Beira. Gardunha por onde também já deambulei várias vezes, sozinho, com amigos, ou com a minha "família" Caminheira. Portanto ... porque não uni-las? Porque não tentar uma grande travessia, da "minha" Vale de Espinho à Alpedrinha dos amigos que tantas vezes lá me levaram?
Análise aprofundada das cartas, estudo de trajectos mais aconselháveis ... e o projecto foi fermentando no meu imaginário. Tratava-se de uma "aventura" um pouco audaciosa: o percurso rondaria os 60 km ... pelo menos mais 14 do que o meu anterior "record" ... mas ainda em Julho de 2011, às 11h da manhã, eu tinha quase 28 km percorridos, de Vale de Espinho ao Terreiro das Bruxas.
Com todas estas ideias em mente ... 5ª feira fui sozinho para Vale de Espinho, preparado para, no dia seguinte, testar a minha resistência. O velho campanário da aldeia abençoaria o sonho...J. O estado do tempo nos últimos dias deixou-me na dúvida até à partida ... mas cheguei a Alpedrinha com 54 km percorridos em 13 horas e 20 minutos. Cansado, evidentemente ... mas feliz! O desafio a que me propus estava ganho, a "missão" estava cumprida.
Depois de uma tarde e noite de chuva, saí de casa, em Vale de Espinho, às 6:25h, quase meia hora mais tarde do que tinha previsto. Caía uma chuva miudinha...! Rapidamente o Côa e o Cabeço da Pelada ficaram para trás, chegando à Lomba entre o Cabeço da Moura e o Barroco Branco, de onde me despedi da Beira Alta e me embrenhei na Malcata pura e dura. As nuvens abundavam, a chuvinha continuava, mas nada de muito ameaçador. O panorama era muito melhor do que nos dias anteriores ... confirmando mais uma vez o meu velho pacto com S. Pedro... J.
A primeira "etapa" era nos Carvalhos Basteiros, onde o planning que havia feito me mandava estar às 8:15h ... e onde cheguei às 8:40h, com os primeiros 11,5 km percorridos em pouco mais de duas horas.
Seguiu-se a Malhada Medronheira e os dois geodésicos dos Concelhos ... e a vertiginosa descida para o Monte do Salgueirinho, pelo trajecto seguido em Junho de 2007, numa "TransMalcata" com a minha "família" caminheira. Às 10:50h via pela primeira vez alcatrão, junto à carreira de tiro da Meimoa, na velha estrada Penamacor - Meimão. O OziExplorer marcava 22,3 km ... pouco mais de 1/3 do percurso.
5 km de estrada e estou nas imediações de Penamacor. Abandono o alcatrão para acompanhar a Ribeira de Ceife, passando próximo das antigas Minas do Palão. Apesar de abandonadas, a paisagem parecia quase lunar, ou vulcânica. Por momentos, pareceu-me estar na ilha do Faial, pisando as terras do vulcão dos Capelinhos. Mas o destino era agora a Ermida de Nossa Senhora do Incenso, ao cruzar da estrada Penamacor - Fundão. Trata-se de uma pequena capela com fachada do séc. XVII, cuja romaria se realiza na 2ª feira a seguir à Páscoa. No espaço que rodeia a ermida, o povo continua a viver as tradições e o folclore, o mistério da vida e da morte, envolvendo-se no manto da Natureza, rezando e cantando, suplicando a protecção de Deus e dos Santos para o tempo da eternidade. O sagrado vive na oração e nas promessas; o profano, na feira, no convívio, nas merendas. Os campos da Senhora do Incenso foram aliás precisamente o meu local do rápido descanso e almoço J. Eram 13:15h e tinha agora pouco mais de metade do percurso feito.
Entretanto as nuvens tinham-se afastado, entreabrindo várias zonas de céu azul e perspectivando uma tarde agradável. Seguiram-se 10 km de uma extensa e plana campina, cruzada aqui e ali por ténues linhas de água e algumas represas, a maior das quais entre as quintas de Monte do Conde e de Vale Freixo. Esta vasta planura marca verdadeiramente a separação entre as cordilheiras das serras da Malcata e da Gardunha.
Uma vez cruzada a Ribeira de Taveiró, entrava no concelho do Fundão e chegava a Quintas da Torre, pequena aldeia também conhecida por Torre dos Namorados, à qual se liga uma lenda que remonta ao tempo dos reis e rainhas, associada a manifestações sentimentais e do foro amoroso. Nesta "aventura", Quintas da Torre teve a particularidade de ser ... a única povoação atravessada!
Pouco depois de Quintas da Torre, começava a subida da Serra da Canaveira, guarda avançada da Gardunha. Passei próximo do lugar da "Covilhã Velha", topónico igualmente associado a uma outra lenda e onde existe um pequeno castro. Embora não havendo certezas em relação à sua história, este castro terá sido a cidade lusitana de Cingínia, referida por Valério Máximo; terá sido destruído algures entre 138 ou 136 a. C., pelas tropas romanas comandadas por Décimo Júnio Bruto.
Próximo da "Covilhã Velha" ... estava batido o meu anterior record de distância: tinha ultrapassado os 46 km! Mas, como naturalmente já previa, a subida da Serra da Canaveira foi a parte mais penosa desta "aventura", já que tinha de voltar a subir a bom subir. Principalmente depois de cruzada a estrada Mata da Rainha - Enxames (550m) ... a subida foi dura! Os cerca de 20 minutos de atraso que levava, relativamente ao meu planning, transformaram-se nesta subida ... em quase uma hora. Um desnível de 200 metros quando já se têm quase 50 km nos pés ... não é fácil. Ainda por cima ... recomeçou a chover. Havia que tomar opções: gostaria de ter continuado a cumeada, até ao geodésico da Cortiçada e à velha estrada Alpedrinha - Fundão, mas face à chuva - não iria ver nada da Cortiçada - e aos mais 150 metros de desnível que ainda teria de subir, optei por descer a Monte Leal e Vale de Prazeres. Mas ao fundo, já lá muito ao fundo, para nordeste ... lá estava a minha Malcata, de onde já quase me parecia milagre que eu tinha partido de manhã. Para o lado oposto, a Gardunha destacava-se, próxima e imponente, mas envolta nas nuvens, dando-lhe um ar de mistério e de magia.
E assim, às 19:35h, com o dia a começar a declinar e com 54 km nos pés, chegava a Quinta do Monte Leal, próximo de Vale de Prazeres, onde uns minutos antes tinha combinado a minha "recolha" pela "equipa de apoio". É certo que faria sem problema os 6 km que faltavam para Alpedrinha, mas que eram forçosamente por estrada, chegando já de noite. Não se justificava. Quase 500 metros andados ... e aí vinha o Passat da equipa de recolha! Estava completada a "aventura" de ligar a Malcata à Gardunha!
Objectivo à vista: a missão estava cumprida |
Quinta de Monte Leal, 19:35h, 54 km percorridos |
"Recepção" em Alpedrinha: fim de jornada |
Os números desta "aventura":
Distância percorrida: 54,4 km
Tempo total: 13 horas e 20 minutos
Tempo total: 13 horas e 20 minutos
Paragens (4): 1 hora e 34 minutos
Tempo de marcha: 11 horas e 46 minutos
Média global: 4,1 km/h
Média de marcha: 4,6 km/h
Altitude à partida: 870m
Tempo de marcha: 11 horas e 46 minutos
Média global: 4,1 km/h
Média de marcha: 4,6 km/h
Altitude à partida: 870m
Altitude máxima: 1077m (Cabeço da Moura)
Altitude mínima: 375m (Ribeira de Taveiró)
Altitude à chegada: 572m
Desnível acumulado de subida: 1.792m
Desnível acumulado de descida: 2.157m O percurso da Malcata à Gardunha:
A todos aqueles que me apoiaram e incentivaram (e muitos foram), antes e durante esta travessia, via Facebook, por telefone ou por mail, aqui fica o meu agradecimento e reconhecimento. Parafraseando o meu grande amigo António Mousinho, nestas "aventuras" a solo eu sinto-me o "monge dos espaços abertos", em isolamento integral, pelos claustros das serras e dos vales.
"Quem disse que o encontro, com o Deus que existe em cada um de nós, tinha de ser na clausura das paredes espessas de um mosteiro?! Afinal, esse encontro pode acontecer, em qualquer lugar, onde possamos escutar o silêncio e os murmúrios vindos das profundezas da nossa consciência!" (António Mousinho)
Como tantas outras, esta travessia Malcata - Gardunha dedico-a ao meu saudoso sogro. Embora a data não tenha sido escolhida propositadamente … esta caminhada pelos claustros da Malcata à Gardunha foi feita na véspera de se passarem 9 anos sobre a sua partida, para uma viagem eterna, sem regresso e desconhecida de todos nós. Não tenho dúvidas de que também ele me guiou, nesta "peregrinação". E como me soube bem "senti-lo" na brisa da serra, "vê-lo" além de cada colina, por trás de cada nuvem escura … ou sorrindo sob a forma do Sol que também por vezes me iluminou o caminho e a paisagem raiana!
5 comentários:
Excelente
Este teu percurso foi como uma peregrinação: esforço físico e espiritual. É um exemplo a desafiar os limites físicos e morais do ser humano. É um convite pedagógico para a anti-depressão:para lá do planing projetado ainda existe lugar para ser mais além de mim.
Só um verdadeiro caminheiro consegue fazer tal proeza... Excelente... Abr
Fiquei tão emocionada depois de tudo o que li, vi e senti, que neste momento não sou capaz de dizer-te mais do que:
Se te sentes feliz, te sentes bem e foste capaz de encontrar o Deus dentro de ti... então, amigo, repete muitas vezes...
Excelente descrição e travessia já para poucos caminheiros. No Verão, faço de carro, Monte dos Carvalhos, Castelo Novo, Barragem do Meimão e os meus netos já protestam com a distância. Um abraço
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