sexta-feira, 4 de março de 2022

De Ponferrada a Santiago, pelo Caminho de Inverno (1)

Das terras templárias de El Bierzo às primeiras terras galegas

El milagro del Camino está en que convierte en mágicas las cosas normales

Qual é o milagre do Caminho? Qual a magia? O que é que faz com que, passados quase 8 anos sobre o meu 1º Caminho ... eu sinta cada partida como a primeira ... cada Caminho com a mesma sensação de coisa nova, de descoberta, de maravilha permanente ... de milagres Vividos.
Ponferrada, 2.Mar.2022, 14h10
Comecei ... onde acabei o Camino Olvidado
Estou apenas no terceiro dia deste Caminho de Inverno ... mas sinto-me nele como se estivesse há anos ... como se não existisse Tempo nem Espaço ... como se todos os Caminhos que já percorri fossem um só, prólogos e epílogos de si mesmos. Nestes três dias ... já houve histórias e estórias ... episódios a contar ... Vivências. Aliás ... o simples facto de estar a escrever no Caminho já é, só por si ... uma história do Caminho. Habitualmente, no que aos Caminhos de Santiago diz respeito, só tenho escrito estas minhas crónicas a posteriori, após o regresso. Desta vez, contudo, aqui estou a escrever ... no Albergue de Vilamartín de Valdeorras, em terras galegas desde quase logo que saí, hoje, da leonesa Puente de Domingo Flórez.
Cheguei a Ponferrada à uma da tarde de quarta feira, de autocarro, como disse no Prólogo. Almocei no terminal e rapidamente me dirigi para o Castelo Templário. Foi ali que acabei em 4 de Agosto passado ... era ali que teria de começar. E para começar bem ... primeira história do Caminho: ao dirigir-me à Oficina de Turismo, para selar a Credencial ... a funcionária estava a fechar a porta. Claro que, vendo que se tratava de um peregrino, a voltou logo a abrir e, toda solícita, afixou o carimbo na mesma Credencial do ano passado. Por segundos teria perdido essa possibilidade ... e pouco depois das duas começava o meu Caminho.

Descendo o curso do Sil, Ponferrada ia ficando para trás...
E dir-se-ia que estava, afinal
... num Caminho de Primavera...
Estaria realmente num Caminho de Primavera? Bem, havia algumas nuvens ameaçadoras ... e a previsão meteorológica dava chuva e frio. "Venha ela", pensei para os meus botões ... e a chuva veio mesmo, primeiro tímida, depois já mais a sério. O meu destino era Villavieja, uma pequena aldeia próxima do Castelo de Cornatel, passando antes por várias povoações. Pois ... já vos conto... 😂
Toral de Merayo, 15h30 ... pois ... era lá que eu
devia ter procurado comprar mantimentos... 😄
Mas Toral de Merayo ficou para trás, eu sabia que havia mais povoações...
E haver havia ... mas e lojas onde comprar alguma coisa? Também sabia que em Villavieja não encontraria nada, mas pelo menos em Priaranza del Bierzo, sede de concelho ... esperaria encontrar.
Ao fundo são os montes do Cebreiro ... e vêem-se lá vestígios de neve
Priaranza del Bierzo ... onde, como sede de concelho ... esperava poder comprar o meu jantar... 😏
Santalla del Bierzo, 17h00 ... e mais um pueblo sem tiendas...
Passada Santalla ... perdi a esperança. Preocupado? Eu não! Na mochila tinha muitos cubos de marmelada, carinhosamente doada pelos meus "Manos velhos" mais antigos 💕; rapidamente a ementa do meu jantar e pequeno almoço ficou traçada ... e ainda não sabia eu que seria também a ementa do almoço do dia seguinte... 😜😂. Histórias e estórias do Caminho!...

Subida para Villavieja e para o Castelo de Cornatel (lá em cima, à direita)

E há velhos guerreiros petrificados nestas paragens berzianas
Villavieja del Bierzo, final da primeira etapa, excepcionalmente terminada pelas 18h00
A última hora e meia de caminho foi debaixo de chuva. E no Albergue de Villavieja já sabia que havia outro peregrino; a encarregada disse-me, quando telefonei a avisar da minha chegada. E lá estava ele, o Claudio, um italiano que ... já foi a Jerusalém a pé! Tínhamos as excelentes instalações do albergue municipal só para os dois ... mas ontem e hoje tive e tenho os albergues só para mim; por um lado estamos completamente à vontade, por outro lado perde-se a vivência e troca de experiências.
Castelo de Cornatel, 3.Março.2022, 8h55 - Tinha começado a 2ª etapa do Caminho de Inverno
E tinha começado a 2ª etapa ... num verdadeiro dia de inverno! Dormi bem ... mas o Claudio, que dormiu junto a uma janela, disse-me que tinha chovido toda a noite ... e saímos do albergue a chover. Prometemo-nos mutuamente caminhar cada um ao seu ritmo, porque se estamos a fazer o Caminho a solo ... é a solo mesmo. Voltámo-nos a encontrar em Puente de Domingo Flórez.

Nas Médulas de Carrucedo ... mas eu diria também no reino dos líquenes ... com muita chuva 😊
Se a primeira etapa tinha sido bonita, a segunda não lhe ficou atrás ... mesmo marcada pela muita chuva que caiu ao longo de quase todos os seus 20 km, atravessando a zona mineira (desde os romanos) das Médulas de Carrucedo, que em versão turística tinha visitado com a minha estrelita e amigos em Setembro de 2020 ... quando os marcos e as setas amarelas me disseram que um dia havia de ali passar no Caminho! E esse dia chegou ... foi ontem ... no Inverno!
Eu não tinha pedido chuva? Pois tive-a quase toda a jornada! Ou bem que é inverno ou bem que não é...
Puente de Domingo Flórez à vista. Última povoação leonesa ... e fim da minha 2ª etapa.
Em Puente de Domingo Flórez tinha reservado uma cama no Albergue "Casa Rosa". Um albergue de donativo é sempre apelativo ... e o Agris surgiu positivamente do céu, quando passei à porta à procura. "Es José Carlos? Pues Casa Rosa es aquí, bienvenido" ... esta é música celestial para qualquer peregrino! E lá dentro ... estava o Claudio, o italiano que já foi a Jerusalém! O Agris e a Rosa são um casal de letões, que fizeram o Caminho com os filhos (actualmente com 14 e 18 anos) ... e ficaram, gerindo este Albergue em Puente de Domingo Flórez.
Albergue "Casa Rosa", em Puente de Domingo Flórez ... uma recomendação imperdível
O Agris e o Claudio logo me ofereceram una cerveza ... e logo brindámos à Paz neste Mundo conturbado, à saúde, à amizade ... à Vida. Tudo no Agris me fez lembrar Bodenaya e o David Carricondo, no Caminho Primitivo. Só faltaria ... uma ceia comunitária ... até porque eu continuava a cubos de marmelada... 😂. Também nas Médulas tinha encontrado tudo fechado, talvez pelo dia de chuva. Bem, o Claudio deu-me umas fatias de queijo ... mas para comprar pão só às cinco da tarde. Sem problema ... para jantar o Agris já me tinha dado a indicação de onde comer bem e em conta ... e o jantar foi mais que divinal, no restaurante "La Torre", com um excelente menu a preço peregrino; finalmente uma refeição que se chame refeição 😀
Peregrino precisa de comer... 😍 (Menu Peregrino, 12 € tudo isto)
Depois deste opíparo e merecido jantar ... dormi como um anjo. E hoje às 7h30 da manhã, tal como combinado, tinha um lauto pequeno almoço preparado pelo Agris, no albergue, incluído no preço. No preço? Não ... no donativo! Ontem quando lhe perguntara quanto é a dormida e pequeno almoço, respondeu-me: "lo que dice tu corazón". E assim fiz!

Magia em estado puro. O Despertar dos Mágicos, próximo de Quereño, 4.Março.2022, 8h20
E se o dia de ontem foi um dia de chuva de inverno ... o dia de hoje foi um dia de Sol de inverno! Não há palavras para descrever tanta sensação junta; as únicas palavras são de agradecimento à Vida, a Santiago, ao Universo! Atravessei o Sil logo no começo desta terceira etapa e entrei na Galiza. Hoje, à medida que caminhava, vieram-me à memória os versos da "Caixinha de Música" do Sebastião Antunes ... mas não senti felizmente nenhuma "brisa estranha com sabor a fim" ... nem tive "uma visão tão estranha"; pelo contrário, graças à Inteligência do Universo ... o Sol nasceu e iluminou e deu cor à paisagem que ia passando diante dos meus olhos, enquanto os pássaros cantavam em meu redor, contentes com a água que ontem o Universo lhes deu e com o Sol que hoje os aquecia. Este planeta não pode morrer! Os senhores da guerra ... esses podem morrer...

E de repente, próximo de As Nogueiras, surge-me a Virgem Maria
"Bienvenido a tu casa" ... mas não consegui saber o porquê deste
"Santuário". As ruínas, segundo uma placa, seriam de um forno.

Também sem saber o porquê ... espontaneamente rezei uma Ave Maria
E o Sil (Ribeira Sacra) corre esplendoroso. Ao fundo, Sobradelo
Ponte de Éntoma, sobre o rio do mesmo nome, afluente do Sil
Junto a esta ponte ... mais uma história do Caminho. Estava-me a preparar para a foto acima quando passaram duas senhoras, mãe e filha. Demo-nos os "bos días", claro, e tinham já passado a ponte quando oiço a mais nova gritar "ayuda, ayuda". A mãe tinha caído! Lá ajudei a levantar a senhora, cuja filha me disse ter 90 anos. Felizmente não se magoou; seguiram caminho, certamente para casa.
Uma jornada através do Paraíso...
O Sil à passagem por O Barco de Valdeorras. Que dia ... que imagens ... que maravilhas!

Pazo de Arnado
, do Séc. XIX, nos
terrenos de um antigo priorado da Ordem de Santiago
Já próximo do final desta 3ª etapa, o Sil chega a Vilamartín de Valdeorras
Antes das três da tarde, estava a chegar a Vilamartín de Valdeorras e ao respectivo Albergue Municipal, com 27 km percorridos. Mais um excelente albergue, quase à beira do Sil ... e mais uma vez sozinho no albergue. A encarregada veio abri-lo, após contacto telefónico ... e cá estou ... com cozinha e máquina de lavar e secar roupa, lençóis mesmo lençóis, cobertores, aquecimento ... por 8 €. É assim o Caminho. Amanhã é outro dia ... e o Caminho ... como a Vida ... Vive-se um dia de cada vez.
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Quando vou escrever a próxima crónica? Não sei. Quando o Caminho me disser. Até pode ser só quando chegar a casa... 💖

Bom Caminho!

(Escrito e publicado em Vilamartín de Valdeorras, 04.03.2022)

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1 comentário:

Raul Fernando Gomes Branco disse...

Um hino à vida! E o sonho comanda a vida e, que bom que é quando a vida não é um sonho, mas uma realidade! Uma reportagem admirável a todos os títulos! Vou ler o resto. Um abraço.