segunda-feira, 7 de março de 2022

De Ponferrada a Santiago, pelo Caminho de Inverno (2)

Do vale do Sil ao vale do Minho, pelo coração da Ribeira Sacra

No passado dia 4, ao escrever a crónica dos primeiros três dias do meu Caminho de Inverno, no Albergue de Vilamartín de Valdeorras, não fazia ideia de quando escreveria a crónica seguinte.
À entrada de A Rúa, 5.Mar.2022
Já faltavam menos de 200 km...
"Quando o Caminho me disser; até pode ser só quando chegar a casa...". E como o Caminho nunca é o chão que pisamos ... não voltei a escrever durante os dias intensos que se seguiram.
Saí de Vilamartín antes das oito da manhã do quarto dia de Caminho, rumo a A Rúa de Valdeorras. O Sil já me acompanhara quase sempre, mas agora entrava no coração da Ribeira Sacra, rica região vinícola do sudeste da Galiza, estendendo-se pelo norte da província de Ourense e sul da província de Lugo, delimitada pelos rios Sil e Minho ... e cantada pelos Luar na Lubre.
Igreja de Nossa Senhora de Fátima em A Rúa, 9h10
Um merecido pequeno almoço em A Rúa,
num bar com frases bem verdadeiras
A Rúa de Valdeorras, com o rio Sil em pano de fundo
Embora por estradas secundárias, a quarta etapa teve muito alcatrão ... pero tamén moitos recunchos fermosos 😊. O Caminho atravessa parte do geoparque das Montañas do Courel ... e a neve lá estava, nalguns cumes mais elevados. Foram-se sucedendo pequenas aldeias desertas, como Os Albaredos, Montefurado e O Ermidón, testemunhas de um Tempo varrido pelo tempo; mas ... até gnomos dos bosques surgem neste troço ... e cestas com fruta para os peregrinos! 🙂
Meandros do Sil a seguir a A Rúa
Geoparque das Montañas do Courel ... com neve nos cumes
Os Albaredos: não há gente ... mas há apoio para os peregrinos!
E em Os Albaredos ... do bosque surgem gnomos fantasmagóricos...
Descida de Os Albaredos para Montefurado
Montefurado, 11h50 ... mais uma aldeia perdida num Tempo sem tempo...
E continuo a descer de regresso ao vale do Sil, que neste troço corre para norte, entre Montefurado e Bendilló
O meu Caminho continuava completamente a solo. Outros peregrinos ... se os havia não os encontrava. Pouco depois de uma das aldeias desertas, creio que de O Ermidón, cruzei-me contudo com uma senhora, talvez mais idosa do que eu. "Bos días", claro que dissemos; e eu acrescentei, brincando, que Santiago era no sentido contrário ao dela. Respondeu-me sem qualquer hesitação: "Sei. Eu xa fun e estou de volta"...! Histórias do Caminho; àquela senhora não a desarmam... 😂
13h30 - Moinho de azeite de Bendilló
O Soldón, de novo nas margens do Sil ... e onde fui pastor por uns minutos...
Na primeira etapa que passava dos 30 km, a tarde ia começando. Um sítio para almoçar? "Neste pobo non hai nada", diziam-me as poucas almas que via. Felizmente ... ainda tinha cubos de marmelada 😄

Castelo e aldeia de Os Novais, num troço bem bonito desta etapa entre Vilamartín e Quiroga
E às 15h55, numa volta do Caminho, tinha Quiroga à vista
16h20 - Entrada em Quiroga, com 33 km percorridos desde Vilamartín de Valdeorras
O excelente Albergue Municipal de Quiroga
Quase às quatro e meia da tarde, estava a entrar em Quiroga, maior do que eu supunha. A etapa tinha sido a maior até então, 33 km percorridos, com muito alcatrão e bastante desnível, mas também com recantos paradisíacos. Central, o Albergue Municipal foi um paraíso, com quarto privativo e WC privativo ... por 12 €! E outro paraíso foi o restaurante e bar Chapakuña, quase nas traseiras do albergue ... onde fiz a segunda refeição normal nos primeiros quatro dias de Caminho.
Embora na altura não o soubéssemos, o Albergue de Quiroga foi um ponto chave do meu Caminho ... e no de mais alguém. Estava eu a acabar de me registar, quando chegou uma peregrina brasileira. O(a) segundo(a) peregrino(a) em 4 dias de Caminho. Na altura apenas ficámos a saber que estávamos ambos a percorrer o Caminho de Inverno e que tínhamos saído de Ponferrada no mesmo dia ... mas nem o nome um do outro soubemos. Mais tarde viríamos a concluir que ambos fomos jantar ao Chapakuña, mas não nos encontrámos mais nesse dia, nem no dia seguinte.
O Despertar dos Mágicos, próximo de Nocedo, na margem direita do Sil, 6.Março.2022, 8h25
E o dia seguinte era suposto ser, no meu planning, a maior etapa do meu Caminho de Inverno: 37 km, de Quiroga a Monforte de Lemos, capital da Ribeira Sacra. A meteorologia, exceptuando o segundo dia, estava-me a dar um clima mais primaveril do que invernal. E esta era também a etapa em que começava a transição do vale do Sil para o vale do Minho, ou seja da Ribeira Sacra Ourensana para a Ribeira Sacra Lucense, mais a norte, começando pela subida à singela Capela dos Remédios, pouco antes de O Carballo de Lor. A poente, percebia-se o vale do Lor, afluente do Sil.
Capela dos Remédios, nos Montes de Lor ... onde encontrei
o testemunho peregrino do Claudio, o italiano da primeira etapa
Ponte medieval de A Barxa do Lor, um recanto paradisíaco num dia ... primaveril
No vale do Lor, na zona de A Barxa, o Caminho de Inverno faz uma ampla curva para noroeste, ligando aquele aos vales dos rios Saa e Cabe, rumo a Monforte de Lemos. A extensão da etapa e o permanente desnível eram amenizados pela beleza da paisagem ... e pela luz ... ou A Luz...
     A Barxa do Lor ... será a luz ... ou A Luz?...
     Seja ela qual for ... senti-me ali iluminado ... inspirado ... motivado...
A Pobra do Brollón, nas margens do rio Saa
Monforte de Lemos, 16h30 - Estava a terminar a quinta e maior etapa do meu Caminho de Inverno
Na capital da Ribeira Sacra, fiquei alojado na Pensión Miño, já que o albergue só abre em Abril. Uma boa unidade, a preço peregrino. Mas algo aberto para jantar ... só tarde e caro; e por isso a solução foi umas compras no supermercado ... para o jantar no quarto e o pequeno almoço do dia seguinte.
O Claudio, italiano conhecido logo na primeira etapa, sabia que fazia jornadas longas e já estava em Chantada. Da peregrina brasileira conhecida por breves minutos em Quiroga, nenhuma notícia; a partir do dia seguinte, contudo ... tudo seria bem diferente... 😃
Monforte de Lemos, 7.Março.2022, 7h35 - Ponte sobre o rio Cabe
Menor do que a anterior, na 5ª etapa saí apesar de tudo antes do nascer do Sol, já que Monforte de Lemos é relativamente grande e a previsão era de bom tempo. E assim, iniciei a travessia da Ribeira Sacra Lucense, rumo às terras do nosso rio Miño; o Sil já ficara para trás, desagua no Miño bem mais a sudoeste. E a manhã desta segunda feira acordou bem fresca, com os campos geados.
Despertar dos Mágicos próximo de Moredacom os campos bem geados
Pequeno almoço campestre, através dos tapetes
mágicos de uma Galicia máxica
Em subida gradual, próximo da aldeia com o curioso nome de O Camiño Grande começo a perceber o vale do Minho à minha esquerda. E a indicação de um miradouro com o apelativo título de O Cabo do Mundo alimentou-me o desejo de vir mostrar partes deste meu Caminho à minha estrelita raiana, como tenho feito em relação a pelo menos alguns dos Caminhos anteriores.
De novo através de uma zona eminentemente rural, as poucas e pequenas aldeias estavam despovoadas, mas em Montecelo um simpático ancião, além dos "Bos días", meteu alguma conversa comigo, acabando por me dizer que há coisa de meia hora passara também uma peregrina. "É capaz de ser a brasileira de Quiroga", pensei logo, já que não tinha encontrado mais quaisquer peregrinos. Sabia que esta era a etapa com uma descida e uma subida mais radicais ... mas acelerei o passo; era o Universo a dizer-me ... que o Caminho ia deixar de ser a solo...
Próximo de Fión e do Miradoiro do Cabo do Mundo, percebendo-se já o vale do Rio Miño (Minho)
Descida para Belesar e para o Rio Minho ...
mas as fotos não ilustram a dificuldade da descida
Em Belesar cruzei o Minho ... e vi alguém a iniciar a subida da margem direita, de mochila às costas. Só podia ser a peregrina que o ancião de Montecelo tinha visto passar. Comecei a subir a bom ritmo, numa das curvas do Caminho ela apercebeu-se também de que havia um peregrino a "persegui-la", esperou ... e podemos dizer que aquele momento marcou o início de unha conexión máxica, naquel recuncho máxico ... dunha Galicia máxica... 💖. Obrigado, Universo!
O encontro de dois peregrinos a solo ...
para um Caminho que passou a ser a dois 💖
Logo ali nos apresentámos, logo ali houve magia ... a começar pelo próprio nome: Stella ... estrela ... no Caminho das Estrelas. Tínhamo-nos visto apenas por minutos em Quiroga, mas o nosso Caminho a solo ... passou a ser a dois. Encontros mediados pelo Caminho ... a caminho do Campus Stellae 🙏
Ainda o vale do Rio Miño (o "nosso" Minho). Dir-se-ia que estávamos no Douro ... mas é a Ribeira Sacra Lucense
Polos camiños máxicos dunha Galicia máxica...
Chantada, 15h10 - Contrariamente ao habitual, a Igreja
estava aberta e entrámos ... talvez em agradecimento🙏
Chegámos a Chantada pouco depois das três da tarde. A Stella já havia reservado dormida e eu iria alojar-me no Albergue "A Pousa do Asma" ... mas o albergue pareceu-me mais um bunker ... e para bunker já chegam as trágicas notícias da guerra na Ucrânia.
O rio Asma à entrada de Chantada
(Clique para ver o álbum completo de fotos)

E aliás, por 18 € no bunker, preferi pagar 20 € no Hostal Gamallo, modesto mas onde fiquei bem instalado. Mas ... claro que combinámos encontrar-nos, os dois peregrinos. Entre duas cervejas, durante a tarde ... a Stella disse-me que eu lhe tinha dado uma lição de Caminhos ... e de Vida 😊. Escrevi nesse dia no facebook: "Se amanhã estaremos juntos ... o Caminho o dirá!" ... e o Caminho disse-nos que estaríamos juntos até ao final ... e muito para além do final, se o Universo assim o quiser. Ultreïa!

 
(Escrito e publicado em casa, em 16.03.2022)

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