CAMINHO PRIMITIVO: de Oviedo à Ruta de Los Hospitales
Berducedo, 14 de Maio
No
artigo anterior tentei descrever ... o indescritível. Com a Mana Paula, no dia 10 de Maio tinha chegado a
Oviedo, ao fim de 124 km de um duro percurso maioritariamente de montanha: o
Caminho de São Salvador. Em Oviedo, fomos ao encontro das relíquias sagradas do Cristianismo, mas também ao encontro do Mano Zé Manuel Messias, preparados os três para, no dia seguinte ... nos lançarmos a Caminho de Santiago, pelo
Caminho Primitivo.
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Oviedo, 11.05.2017, 6h50 |
No sec. IX, Afonso II, O Casto, Rei das Astúrias, terá sido o primeiro peregrino a deslocar-se a Compostela, para visitar e venerar a tumba recém descoberta do Apóstolo Santiago. Este facto, associado às relíquias guardadas em Oviedo, fazem do percurso a primeira rota de peregrinação jacobeia. Séculos depois, a tradição motiva igualmente que muitos peregrinos se desviem em León para Oviedo, para caminharem desde ali até Lugo, Palas de Rei e Melide, onde o Caminho Francês se une ao Primitivo. Tal como tantos outros antes de nós ... antes das sete da manhã estávamos assim a partir da Catedral de
Oviedo para o
Caminho Primitivo. Dos três, a Mana Paula era a única que já o havia percorrido, há dois anos, mas quis agora repeti-lo. Ao contrário do San Salvador, que decorre no sentido sul / norte, agora tomávamos definitivamente o rumo oeste ... seguindo as estrelas. As primeiras etapas atravessam as
cuencas dos rios
Nora e
Nalón; numa manhã húmida, as paisagens e as catedrais verdes tomavam vida e forma.
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Brumas e mistérios do Caminho, entre Oviedo e Grado |
E se no
Caminho de San Salvador tínhamos conhecido o Michael e os três espanhóis, o Caminho Primitivo começaria a ser, logo nas primeiras etapas, um Caminho marcado pelo convívio com gente de diversas nacionalidades, com pessoas com quem, algumas delas, viríamos gradualmente a construir uma Amizade. São exemplo disso a Anne e o Steve Ring, australianos, que estiveram connosco à partida de Oviedo ... e connosco estariam à chegada a Santiago!
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O "mendigo" e a "Pipi I" em
Gallegos, 11.05.2017, 9h15 |
Mas não só. Para além de amizades propriamente ditas ... também íamos "baptizando" alguns peregrinos e peregrinas que encontrávamos várias vezes, ao longo dos 12 dias. A um baptizámo-lo como "o mendigo", acompanhado por um cão que ora ia a pé ora ao colo ... e que ostentava ao peito a vieira de Santiago! Nunca chegámos a ter a certeza se o "mendigo" ficava nos albergues ou se bivacava à beira do Caminho. Também a "Heidi", a "Pipi I" e a "Pipi II", o "ligeirinho", e outros, passavam por nós ou nós por eles, particularmente nos primeiros dias, bem como o "Fórmula 1", quase sempre o primeiro a sair dos albergues e a "voar" Caminho fora; nas últimas etapas já estava no entanto mais calmo... 😊
E também nos "baptizámos" a nós próprios! Éramos, para todos os efeitos, a "
Tríade do Caminho". Se não vejamos: tínhamos um
Messias ... o Salvador! Um
Callixto ... "autor" do
Codex Calixtinus, primeiro guia dos Caminhos de Santiago! E uma Paula
Francisco ... como o Papa Francisco! Não poderia haver melhor equipa, nos Caminhos de uma peregrinação a Santiago!... 😃
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Molino de Picarín, Rio Andallón, pouco antes de Premoño |
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Panorâmica sobre Grado e os campos, do Albergue de San Juan de Villapañada, 11.05.2017, 17h05 |
30 km depois de Oviedo, a primeira etapa terminou em
San Juan de Villapañada. "
Hay un portugués", disse-nos o único peregrino que se encontrava à porta do Albergue. Entrámos ... e o português era o Manel, velho conhecido da Paula e que logo passou a ser também meu e do Zé Manel. A fazer o Primitivo a um ritmo mais lento, não nos voltámos a encontrar, mas passámos a trocar mensagens sobre o paradeiro uns dos outros. E, claro ... participou connosco no primeiro jantar confeccionado pelo Zé Manel!
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Jantar no Albergue de Villapañada ... onde
afinal fomos 4 portugueses! |
Para as histórias do Caminho ficou também o hospitaleiro do Albergue de Villapañada. Talvez vindo das antigas polícias políticas ... só lhe faltou despejar as mochilas e investigar o respectivo conteúdo... 😔. Para registar os cerca de 20 peregrinos ... levou o melhor de uma hora e meia! E só nos deixou ... quando já todos estavam deitadinhos nas suas camas...
No dia seguinte cruzámos o Rio
Narcea junto ao Mosteiro de
San Salvador de Cornellana, em cujo albergue a Paula tinha ficado no seu primeiro Caminho Primitivo. Por belos caminhos rurais, a jornada prosseguia rumo a
Salas, a "
puerta del occidente de Asturias", como é apelidada. Estávamos a escassos 35 km a norte de Belmonte de Miranda ... e a poucos mais de
Somiedo!
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Rio Narcea e Mosteiro de San Salvador |
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de Cornellana, 12.05.2017, 9h20 |
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Sucedem-se as Catedrais verdes, junto ao Rio Nonaya, pouco antes de Salas, 11h45 |
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Típico horreo (espigueiro asturiano) à entrada de Salas |
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Salas, 13h00 - Lindíssima e histórica capital de concelho, nas margens do Rio Nonaya |
Em
Salas, uma referência especial à simpatia e hospitalidade do Bar "
La Luciana" (toldo castanho, na primeira foto), onde fizemos uma pausa para repôr energias e hidratar... 😊; ao pedir uma cerveja, ou uma qualquer outra bebida ... os peregrinos têm direito a umas
tapas! Bem simpático!
O final desta segunda etapa estava inicialmente pensado para
La Espina ... mas algumas referências - e sobretudo os conselhos de quem por lá já havia passado - guiavam-nos para um albergue muito especial, menos de 2 km antes: o
Albergue de Bodenaya. E em muito boa hora ali decidimos ficar!
O
Albergue de Bodenaya representa completamente o que é, ou deveria ser, o espírito do Caminho. À semelhança de
Bendueños, no
Caminho de San Salvador, funciona em regime de donativo, gerido pelo fantástico
David Carricondo, um homem que se apaixonou pelos Caminhos de Santiago e se lançou na aventura de gerir um albergue que já era, antes dele, emblemático do Caminho Primitivo. A rádio "
Camino de Santiago" chama-lhe "
un ángel en el Camino"! Um caloroso e muito humano abraço é apenas a primeira de muitas surpresas, ao acolhermo-nos neste incomparável e imperdível albergue.
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há palavras que o descrevam... |
Até pelo seu misticismo, o
Albergue de Bodenaya marcou também o início do aprofundar do convívio com outros peregrinos. Para além da Anne e Steve, também o Paco, espanhol de gema, nos passou a acompanhar periodicamente. E ... ao
Albergue de Bodenaya chegaram 4 outros espanhóis, irmãos, "liderados" pelo mais velho, o Ángel. Em 2016 fizeram o Caminho do Salvador e o Primitivo até Bodenaya; este ano complementaram-no até Lugo ... e até Lugo os encontrámos diversas vezes.
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... o Paco tem técnica ... |
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e o Zé Manel também se ajeita! 😊 |
O jantar foi, naturalmente, comunitário. A roupa para lavar é colocada num cesto ... e na manhã seguinte está lavada, seca, dobrada e perfumada. Antes do jantar ... há uma reunião com todos os peregrinos. São-nos explicados os fundamentos do Caminho Primitivo, as variantes pela
Ruta de Los Hospitales ou por Pola de Allande, os cuidados a ter na montanha, as opções a tomar ... tudo! E, ao jantar ... é também combinada entre todos a hora comum do despertar ... porque iríamos despertar com música ... "
y con los olores a café recién hecho". E assim foi. No dia do Centenário das aparições de
Fátima, com o Papa Francisco em Portugal ... às 7 horas acordávamos ao som, em crescendo, da Ave Maria de Schubert...
A terceira etapa era a etapa de aproximação à montanha. Entre León e Oviedo, eu e a Paula tínhamos atravessado a Cordilheira Cantábrica no sentido sul / norte ... agora havia que a atravessar no sentido nordeste / sudoeste ... e bem que a avistávamos já ao fundo. Povoações importantes, apenas
Tineo ... mas este foi também o dia em que, ao fundo, para norte ... vimos o
Mar Cantábrico!
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Com a Cordilheira Cantábrica ao fundo, a sudoeste - Entre La Espina e Tineo, 13.05.2017, 8h50 |
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Por túneis de verde intenso chegamos a Tineo, 11h20 |
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Tineo, Praça |
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central, 11h30 |
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E por túneis de verde intenso saímos de Tineo, 12h25 |
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Entre Tineo e Oubona, 13h25 - Quando ao fundo, a norte ... surge o Mar Cantábrico! |
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Continuamos a caminhar pelo Paraíso ... e descobrimos o Mosteiro de Santa María La Real de Oubona |
A etapa terminou em
Campiello ... no dia em que Fátima comemorou o Centenário das aparições ... e no dia em que pela primeira vez Portugal venceu o Festival da Eurovisão. Mas o dia seguinte era o dia da decisão mais importante do nosso Caminho: avançar pela
Ruta de Los Hospitales, atravessando a montanha pela rota primitiva,
seguida pelos peregrinos desde o séc. XII; ou fazer a variante por
Pola de Allande e pelos vales. Tudo dependeria da meteorologia ... que tinha estado relativamente incerta. Em montanha, sabe-se que as condições mudam por vezes rapidamente ... e são conhecidas histórias de
peregrinos desorientados e perdidos naquele percurso. Mas o dia 14 de Maio acordou limpo e soalheiro!
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Borres, 14.05.2017, 7h50 - Pouco depois ... iniciaríamos a Ruta de Los Hospitales |
O cruzamento
Hospitales /
Pola de Allande situa-se pouco depois de
Borres, a 720 metros de altitude. Por Pola de Allande são 19 km até ao
Puerto del Palo, pela capital do concelho e várias outras pequenas povoações; pelos Hospitales são 16,5 km de montanha, sem qualquer povoação ou abrigo, mais de metade dos quais acima dos 1100 metros de altitude. A designação -
Ruta de Los Hospitales - respeita a terem existido neste percurso quatro hospitais de peregrinos, hoje em ruínas.
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A partir de Borres, começamos a subida de Los Hospitales |
A travessia de
Los Hospitales é uma travessia mágica e mística! Não sendo uma travessia extraordinariamente exigente (menos de metade dos acumulados do terceiro dia do Salvador), requer contudo algum esforço físico. Felizmente que a Mana Paula já estava recuperada da dureza do Caminho de San Salvador. Sendo também bastante mais baixa - não chegamos aos 1300 metros de altitude - empolga contudo pelas impressionantes panorâmicas que se abrem essencialmente para sul e sudoeste, a perder de vista. E empolga também ... pelo peso da História, como rota de peregrinação.
Pouco acima dos mil metros de altitude, surge o primeiro hospital:
Paradiella. Por ali só pastam hoje as vacas ... e uma perdiz certamente ferida ou doente, dada a docilidade com que deixou aproximarmo-nos.
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Ruínas do Hospital de Paradiella ... |
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onde uma perdiz se acolhia dócil |
Depois ... depois veio um dos momentos mais altos, para mim, do Caminho Primitivo. Tinha à frente o
Pico La Chana, por trás do qual sabia estarem as ruínas do hospital de
Fonfaraón. O pequeno troço até
La Chana, de pouco mais de 700 metros, é um dos mais inclinados do percurso, vencendo cerca de 140 metros de desnível. Como que electrizado por forças ocultas ... subi aquele tramo pedregoso em menos de 10 minutos, rumo a um dos diversos marcos que assinalam o Caminho, numa pequena plataforma sob a copa de um pinheiro ... e de onde se domina o "mundo" aos nossos pés. Cheguei ali portanto sozinho, os meus Manos estavam bem abaixo. Tirei a mochila, que encostei ao marco do Caminho ... e ajoelhei-me...
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O meu "altar", na travessia dos Hospitales, onde |
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forças ocultas me fizeram momentaneamente "voar"... |
O que me chamou, naquele local? O que me fez "correr" para aquele marco, aquele pinheiro, aquela plataforma? Não sei. Só sei o que senti e que procurei transmitir à Paula e ao Zé quando chegaram. Pedi-lhes que tirássemos ali uma foto os três ... contemplando a Criação...
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Três Bons Amigos, três Irmãos do Coração, contemplam os Mistérios do Caminho ... os Mistérios da Terra e do Céu... |
Quando o inexplicável êxtase mo permitiu, recomeçámos o percurso. Pouco mais acima, fotografei aquele
plateau que tão misteriosamente me seduziu ... e hoje, ao escrever estas linhas ... verifico que a foto que, em Setembro passado, fui buscar à
net para ilustrar o "convite" para o meu Caminho (e que nem sabia onde era exactamente) ... é naquele local enigmático, entre as ruínas do hospital de
Paradiella e o de
Fonfaraón. É como se algo me chamasse àquele local ... é como se já o conhecesse antes...
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Subida para Fonfaraón, sobre o plateau do meu êxtase, 14.05.2017, 10h50 ... |
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... e a foto recolhida na net em Setembro de 2016, casualmente ... sem saber a que local do Primitivo dizia respeito...
Ângulos ligeiramente diferentes, época do ano e cores diferentes ... mas o mesmo local. |
Com o peso do que senti naquela "corrida" e naquele local, às onze da manhã estávamos nas ruínas do hospital de
Fonfaraón, o único que ainda possibilita algum abrigo, numa eventual situação de emergência naqueles ermos perdidos, a 1200 metros de altitude. Mais à frente tínhamos o hospital de
Valparaíso, completamente em ruínas, a partir do qual se começa a descer para o
Alto del Palo, a 1146 metros de altitude e cruzando a estrada
Pola de Allande -
Grandas de Salime.
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Ruínas do Hospital de Fonfaraón, 14.05.2017, 11h05 |
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E a Ruta de Los Hospitales prossegue até ao Puerto del Palo, 13h25, 1146m alt. |
Abaixo já dos mil metros, chegamos à aldeia de
Montefurado. Um único habitante ... que não vimos. Almoçámos junto à sua
Capela de Santiago ... juntamente com algumas galinhas.
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O profundo vale abaixo do Puerto del Palo, com a aldeia de Montefurado à direita |
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Montefurado ... uma aldeia de um único habitante |
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Almoço e descanso, junto à Capela de Santiago |
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Por entre o silêncio das pedras... |
E a jornada iria terminar em
Berducedo, povoação que conta com diversos albergues. Um conselho: não fiquem no Albergue "
Camín Antiguo" ... foi só um dos mais caros do Caminho ... e de longe o pior! O preço incluiria pequeno almoço; hmm ... restos de umas bolachas. Água no chão da cozinha? Resolve-se já ... a hospitaleira espalha jornais pelo chão. É pena que haja albergues assim, em flagrante contraste com a maioria e, especialmente, com albergues como os de Bendueños e de Bodenaya.
No dia seguinte prosseguiríamos o nosso Caminho das Estrelas.
(
Continua)
(Escrito em casa, após os Caminhos de San Salvador, Primitivo e Fisterra, em 31.05.2017)
2 comentários:
Maravilhosa descrição do caminho primitivo, ao ler as suas linhas e ver as fantásticas fotos, senti saudades do caminho Primitivo, que fiz em Setembro de 2014, em especial de Bodenaya, na altura o hospedeiro era o Alex, mas, o espirito é o mesmo, pois o David (que na altura estava em Bodenaya para negociar a passagem do albergue) segue o mesmo espirito jacobeo.
Bom caminho.
Esta etapa foi muito especial, pois a partir do Albergue do David partimos com um espírito diferente, aqui muita coisa ficou marcada. Aqui encontra-se o espírito da união e da partilha. Fiquei a conhecer a parte dos Hospitais que não conhecia, e que maravilha de etapa
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