Ao encontro do Toubkal (4) جبل توبقال ... onde a Terra acaba e o céu começa...
Os dias 2 e 3 eram os dois dias grandes desta "expedição". Estávamos a 3200 metros; o dia 2 destinava-se precisamente à adaptação à altitude; o Toubkal estava quase mil metros acima de nós...
2 de Setembro, 7:45h - Neste "patamar" a 3200 metros de altitude, vamos partir para uma caminhada de aclimatação
A Lua vigiava-nos e
abençoava a nossa aventura
Dormidos uns melhor que outros, o dia começava cedo. Um pequeno almoço às 7 horas, relativamente frugal para o esforço feito e a fazer. Mas a manhã, essa acordava magnífica; contrariamente ao calor dos dias anteriores, o frio obrigava a vestir os equipamentos que não tinham vindo para passear nas malas e mochilas.
Rumo ao Sul ... que aqui é sempre para cima...
O objectivo é aquele Col (ou Tizi...), a quase 3800 metros de altitude
O trilho escolhido pela Outside para esta aclimatação levou-nos sempre para sul, rumo ao Tizi n'Ouagane, a quase 3800 metros de altitude. É o vértice onde o Atlas, neste ponto, se debruça para a encosta sul. 600 metros de desnível, pouco mais de 3 km ... mas precisámos de duas horas e meia. O corpo começava a pedir oxigénio, acusando qualquer movimento um pouco mais rápido. Um passo de cada vez, calmamente, e lá fomos subindo, apreciando a paisagem que deixávamos para trás.
O Sol vai "saltar" as montanhas...
Subimos e subimos ... e deixamos para trás um mar de rocha, alguma neve, algum verde
Quando chegamos ao Tizi n'Ouagane (3760m alt.) ... apetece mergulhar para a encosta sul. Estava batido o meu "record" de altitude. Lá ao fundo, para sudoeste, percebiam-se as últimas alturas do Atlas, antes da imensa cordilheira mergulhar no Atlântico. Por trás delas ... está o Saara.
Tizi n'Ouagane - chegámos aos 3760 metros ... e construímos uma pirâmide de bastões...
Belo grupo, marcando presença no Tizi n'Ouagane
O regresso ao Refúgio foi mais rápido. Além da habituação à altitude, serviu também de habituação às descidas íngremes e pedregosas. E, ao fundo do vale, víamos bem, na encosta ... o trilho vertiginoso que no dia seguinte nos levaria ao Toubkal.
Iniciámos a descida ...
Descida de regresso ao Refúgio
No dia seguinte ... seria por ali para o Toubkal ...
Regresso ao Refúgio de Les Mouflons ... seguindo as águas do Assif n'Isougouane
A jornada foi curta, o objectivo era precisamente que o organismo se habituasse à altitude. Pouco passava da uma e meia da tarde estávamos de regresso ao nosso "hotel" Les Mouflons. À tarde ainda houve quem dormisse uma soneca ... como foi o caso do autor destas linhas, contrariamente ao habitual. E, à noite ... já se viam fotografias deste e dos dias anteriores.
2 de Setembro, 21:10h ... e já se viam as fotografias...
E assim chegávamos ao grande dia. Para além da habituação à altitude, a maioria parecia que nos estávamos a adaptar também a dormir cada vez melhor. Mas o despertar no dia 3 foi cedinho. Sabíamos que a jornada ia ser dura ... o جبل توبقال observava-nos do alto, esperava por nós!
3 de Setembro ... hoje é o grande dia...! São 6:30h e o dia promete ser espectacular!
Começámos por cruzar o Assif n'Isougouane por baixo da cascata onde no final nos refrescaríamos; a seguir começamos a caminhada em direcção ao Sol, ao céu, pela cascalheira que parecia impossível de subir. O refúgio torna-se cada vez mais pequeno, cada passo escolhe cada rocha mais fixa. Ao olhar para trás parecia-nos estar a viver um filme, um sonho, algo de irreal ... mas as nossas presenças eram bem reais, a Lua, os paredões rochosos, tudo era bem real.
E começou a aventura ...
O silêncio começa a ser o som que escutamos. O grupo vai revelando as suas diferenças. Há um misto de formas físicas diferentes, idades diferentes, paixões, encantamentos. Pessoalmente, sinto-me menos cansado que na véspera; a medula trabalhou de noite, produzindo os glóbulos vermelhos e a hemoglobina que compensam a falta de oxigénio em altitude. Lá ao fundo, ainda muito ao fundo e acima, vemos os grupos que saíram ainda mais cedo do refúgio. Não vemos ainda o cume, mas vemos vultos na paisagem, na "rampa" que sobe até ao tecto da África do Norte.
Vindos das profundezas do vale, rumo ao Sol e ao جبل توبقال
Vultos na
paisagem
Apesar da altitude, o calor substitui o frio. O esforço da subida não é alheio à sensação. E chegamos ao col que há muito víamos desde baixo, o Tizi n' Toubkal, a 3950 metros de altitude. Nos últimos metros apetece correr, tomar balanço para um voo que nos lançasse na paisagem deslumbrante que se abre a sul.
Tizi n' Toubkal (3950m alt.). Estamos no céu...
A sul há pequenas aldeias berberes, verdadeiros oásis na imensidão da montanha. Virados para a varanda à nossa frente, à esquerda está o trilho que nos vai levar ao cume, os últimos 250 metros de desnível. E passamos os 4000!
I believe I can fly...
Bordeando a crista debruçada a sul, a uma curva do caminho vemos, lá em cima, uma estrutura em forma de pirâmide. É o cume do Toubkal, é o nosso objectivo, o fim do caminho que nos propusemos trilhar, desafiando os nossos limites, os receios e as dúvidas do mais íntimo de nós mesmos.
Éramos pequenos pontos na imensa montanha que nos observava do alto, mas rapidamente nos juntámos todos naquela pirâmide ... onde a Terra acaba e o céu começa.
Cume do
Toubkal à vista
Estamos lá. São só mais uns passos, é só mais um esforço...
Os onze heróis no cume do Toubkal (4167m alt.). Onde o céu foi o limite!
O mais velho e o mais novo "conquistadores" do Toubkal ...
... e os três mais velhos
360° à volta, o norte de África era nosso. Vales imensos e profundos, picos a quererem desafiar o domínio das alturas, aldeias lá no fundo. Era o Atlas puro e duro. E, de repente, vinda dos céus, uma gralha de bico amarelo pousa junto de nós, na base da pirâmide, como que dando-nos as boas vindas, como que trazendo-nos alguma mensagem, ou levando os nossos pensamentos e desejos. Nem todos deram por ela. Talvez aquela gralha não fosse gralha, talvez aquela gralha fosse a minha Mãe, o meu sogro, o meu Tio Carlos, a darem-me um beijo, um abraço quente e orgulhoso.
Pyrrhocorax graculus ... a gralha de bico amarelo que nos veio dar as boas vindas no Toubkal. Seria mesmo uma gralha?...
Um almoço a 4167 metros de altitude ...
... com uma panorâmica 360º à nossa volta
Àquela altitude, o frio era bastante menor do que esperávamos. Mas havia que regressar. Um almoço frugal e iniciámos o autêntico mergulho a dar até ao vale. E já antevíamos o cascalho solto, o desnível a vencer. O Zé Manel, operado a um joelho há coisa de um ano, receava por qualquer movimento em falso, qualquer derrapagem ou pequena queda. O Nuno, incansável, acompanhava-o quase pedra a pedra, passo a passo. Tal como na véspera, na aclimatação à altitude, havia-me confiado um rádio pelo qual íamos sabendo da progressão de uns e outros.
13:05h - Vamos começar a descida ... ou um mergulho para o vale!
Lentamente, íamos descendo o que havíamos subido
Agora iluminadas pela luz do Sol que de manhã ainda lá não tinha chegado, as águas precipitavam-se também em cascatas cintilantes. Já a cerca de 3600 metros de altitude, cruzam-se connosco dois garotos marroquinos que desaconselhámos de subirem ainda ao Toubkal. Que promessa teriam feito? Que missão teriam? Quiseram fotografar-nos e serem fotografados ... e lá desceram como cabras.
Águas cintilantes precipitam-se das alturas
O grupo passou momentaneamente a 13 elementos, com dois garotos marroquinos que queriam ir ao Toubkal
Meditação, contemplação,
êxtase, a entrega à montanha
Pouco depois das quatro da tarde tínhamos o refúgio à vista, 150 metros abaixo ainda dos nossos pés. A tarde tornara-se quente ... ou o calor da verdadeira aventura que estávamos a viver dava-nos essa sensação. A cascata do Assif n'Isougouane, já próxima de "casa", foi o saboroso ponto onde o grupo se reuniu ... onde o mais íntimo de cada um de nós levou aos abraços da celebração. Da celebração do desafio superado, da conquista do cume mítico, da ligação da Terra e do céu, das amizades cimentadas pelas vivências partilhadas em conjunto. Para o meu "irmão" Zé Manel e para todos nós por ele, o sabor era duplamente especial: pela primeira vez, com ele, chegou ao fim de uma grande aventura vivida com a "mana" Cristina e comigo. Há dois anos, viu-se obrigado a desistir no primeiro dos 4 dias do Monte Perdido Extrem; em 2014, viu-se impedido de sequer partir no "Caminho da Aventura". Parabéns, Zé Manel!
Junto à cascata do Assif n'Isougouane. Alegria e felicidade nos rostos.
17:10h - Dez horas depois da partida, estávamos de regresso ao Refúgio, recebidos pelo seu muito simpático "guardião"
Da simpatia do pessoal do Les Mouflons - como aliás em geral - destaca-se a extrema amizade do seu porventura mais antigo "guardião". Recebeu-nos de braços abertos no final da nossa aventura. Curiosamente, falava connosco mais em inglês do que em francês; aprendeu com muitos turistas ingleses, dizia. Aproveitei para lhe perguntar se seria possível fazer um bolo de aniversário, para comemorarmos não só o nosso feito, como também os aniversários de 3 de nós, cumpridos dias antes. Que sim senhor, pois com certeza que sim, respondeu. Quando lhe perguntei quem o faria ... responde-nos que ele próprio, mas quando volta da cozinha com o cozinheiro e este se apercebe do nosso pedido, este transmite-nos a impossibilidade de nos realizar esse desejo. O velho guardião que fala mais inglês que francês ... não tinha percebido nada...! Comemorámos com chá de menta ... e pipocas, essas sim acabadas de fazer.
Chá de menta e pipocas ... onde até colocámos uma vela para comemorar três aniversários...
Com o sabor do desafio vencido a correr nas veias ... esperava-nos mais tarde o sabor de um merecido jantar. Hoje não era tagine; esperava-nos um prato mais ocidental: um apetecido esparguete à bolonhesa. Quando chegou, encantou-nos desde logo o aspecto apetecível do "banquete" ... mas ficámos a saber que o esparguete à bolonhesa à moda marroquina - ou pelo menos à moda do Les Mouflons - ... não tem carne. A quantidade e a confecção, essa sim muito boa, fizeram-nos contudo esquecer a falta de proteína ... ou seria a fome?
O último jantar no "Les Mouflons": o esparguete à bolonhesa aqui tem esparguete, tem molho de tomate, tem queijo gratinado ... mas não tem carne!
E a hora de dormir chegou. O amanhã seria outro dia, outra etapa. A última etapa pedestre, o regresso à base. A nossa "aventura no Atlas" aproximava-se do fim, num mundo em que o relógio continua parado, onde sentimos que apenas podemos viver intensamente cada segundo que vivemos. Os olhos fecharam-se ... e dizemos boa noite.
Começado a escrever em Marrakesh a 5 de Setembro, terminado em Lisboa a 7 de Setembro
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