Desde que há 30 anos descobri o paraíso do
Parque Nacional de Ordesa e Monte Perdido (quando tinha 30 anos...), voltei às terras pirenaicas mais uma
meia dúzia de vezes. Aquela primeira incursão deixaria aliás marcas profundas
na minha contínua "adesão" à montanha, na formação do que sou hoje.
Já conhecia bem quase toda a envolvente do mítico
Monte Perdido. Estive
várias vezes em
Ordesa, em
Pineta, em
Gavarnie, umas
vezes em família, outras vezes com alunos e amigos, a última vez há 4 anos com
os "meus" Caminheiros Gaspar Correia. De todas essas vezes, no canto dos meus
sonhos fermentou sempre a vontade de um dia ligar o vale de Pineta ao de
Gavarnie e ao de Ordesa, em atravessar a mítica
Brecha de Rolando (brecha aberta na montanha pela espada Durandarte, do
lendário Rolando, esse mesmo, o da "
Chanson de Roland") … e em subir ao
mítico
Monte Perdido! Quando em 2009 levei os Caminheiros aos
Pirenéus, escrevi nestas linhas: "
Talvez um dia ... talvez se ainda um dia subir mesmo ao Monte Perdido...". Ora, quase a completar 60 anos ... era chegada a hora de o fazer!
Parafraseando Mário de Andrade, "
Olhei para mim … e descobri que tenho muito mais passado que futuro…" ... e por isso os sonhos são para viver enquanto o futuro é presente...!
E assim um dia, entre sexta e segunda feira passada ... vivi esse sonho! E
foi, sem dúvida alguma, a maior "aventura" da minha vida. Vivi-o no seio de
uma "equipa" de amigos e amantes da montanha, que naturalmente já conhecia,
mas que uma vivência desta intensidade e desta dimensão em muito fortalece e
engrandece a união. Para além de encher a alma nas fabulosas paisagens por
onde decorreu a "aventura", para além do amor pela montanha, pela Natureza,
pelos grandes espaços, naqueles 4 dias e nos que os antecederam e sucederam
vivemos também sem dúvida alguma verdadeiro Amor e partilha entre todos! A
montanha prende e une os seus amantes, torna-os parte integrante de um todo,
revela íntimos, evidencia paixões e fraquezas, receios e emoções.
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O vale de Ordesa, o Monte Perdido e o Soum de Ramond, vistos da Faja
de Pelay,
6.08.2009
... os sonhos são para viver enquanto o futuro é presente ...
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Por razões que à frente se verão, não cheguei a subir ao cume do
Monte Perdido. Mas, 30 anos depois de conhecer Ordesa, completei com
três outros membros desta "equipa" todo o percurso do
Monte Perdido Extrem, uma travessia circular à volta do maciço calcário mais alto da Europa, de
Pineta a
Gavarnie, à
Brecha de Rolando, aos Canyons de
Ordesa e de
Añisclo e de novo ao vale de Pineta.
A "aventura" foi-se desenhando há meses, com o convite a amigos que pudessem e
quisessem acompanhar-me, a inscrição junto da organização, o estudo das cartas
e dos percursos propostos, a criteriosa selecção do que levar para 4 dias de
alta montanha, com 3 noites em refúgios sem energia eléctrica nem água
quente.
A meteorologia claro que era outro factor permanentemente em estudo. Com
apreensão, nos meses e semanas anteriores fomos acompanhando a evolução de um
inverno e de uma primavera das mais rigorosas de sempre ... que deixaram neste
início de Julho a maior quantidade de neve dos últimos 40 anos na região!
Ansiosos de nos embrenharmos no paraíso, partimos de Lisboa na noite do
passado dia 2 para 3, numa viagem non-stop até
Bielsa, onde em 2009
tinha feito a primeira "base" com os Caminheiros "Gaspar Correia". A minha
companheira de "aventuras" e uma nossa amiga de longa data, também ela
caminheira, também vieram ... mas para percursos mais modestos. Noutro carro,
três outros membros da equipa que havíamos formado; dois outros ... já andavam
em terras de
Ordesa há uns dias. Entre a equipa de candidatos ao
Monte Perdido Extrem
e respectivos acompanhantes, oito portugueses estavam assim lançados à
"conquista" dos Pirenéus.
Dada a dimensão desta "aventura", vou descrevê-la e ilustrá-la por partes; o
presente
post corresponde ao primeiro dia, de
Pineta ao Refúgio
de
Espuguettes, quase mil metros acima do vale de
Gavarnie.
Etapa 1 (6ª feira 5 de Julho):
Pineta - Espuguettes (17km)
Duração: 14,5 horas
Altitude mín.: 1240m (Refúgio de Pineta)
/ Desnível positivo: 2.019m
Altitude máx.: 2666m (brecha de Tucarroya) / Desnível negativo:
1.280m
Às seis e meia de uma manhã esplendorosa, os 5 membros da "equipa de montanha"
estavam a iniciar a "aventura" junto ao
Refúgio de Pineta
e ao
Rio Cinca. 25 anos antes ... tinha ali acampado com alunos, quando
com eles igualmente
subi ao Balcón de Pineta e ao Lago de Marboré, numa vertiginosa ascensão que agora foi, igualmente, a primeira parte desta
jornada pirenaica.
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A equipa está preparada para o início da subida ...
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... e o vale de Pineta começa a abrir-se aos nossos pés
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Descrever as sensações à medida que íamos ganhando altitude, ao som das
impetuosas águas do
Cinca, à medida que o vale de
Pineta começava a ficar aos nossos pés? É indescritível...! É uma
mistura de sentimentos, de êxtase, de entrega, de uma autêntica viagem a um
paraíso perdido! As imagens dizem mais que mil palavras ... mas mais do que as
imagens fica o que se sente, o pequeno que somos ante a imponência da
montanha, a autêntica "levitação", a catarse ... o sonho!
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Cascatas do Cinca
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Sem palavras... |
Aos 1300 metros de altitude ... já havia neve! Mil metros mais acima, a
extensão, a consistência e a inclinação levou-nos a tirar os crampons da
mochila, como já prevíamos. Um dos elementos da equipa, contudo, embora com
grande pena dele e nossa, teve a coragem de desistir na hora certa, no momento
certo. O cansaço da ascensão, um joelho queixoso, o psicológico a medir as
dificuldades que se avizinhavam, ditaram o regresso a Pineta e o
acompanhamento da equipa que havia ficado em Bielsa. Zé Manuel, fica aqui a
minha sentida homenagem à coragem necessária para a tua difícil decisão.
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Há que calçar |
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"ferraduras"... |
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Travessia do Embudo
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Reduzidos a quatro e em neve, a progressão tornou-se mais lenta ...
principalmente para o autor destas linhas. Inexperiente no uso de crampons,
tinha adquirido uns meses antes uns crampons que se vieram a revelar
praticamente inúteis, particularmente na progressão em zonas de forte
pendente. Aqui fica a nossa autocrítica também pela falta de
piolets,
que não levámos, e que se teriam revelado fundamentais em muitos dos muitos
troços de neve. Por duas vezes deslizei na neve, para grande susto e suspense
dos meus três companheiros. Valeu-me o jogo de calcanhares, bem como o facto
de não entrar normalmente em pânico ... ou teria eventualmente sido
"devolvido" muito rapidamente a Pineta ou às águas geladas do Lago de
Marboré.
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O Vale de Pineta, do Balcón de Pineta (2530m alt.)
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O que subimos na neve...
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No
Lago de Marboré terminava a parte que eu conhecia desta primeira
etapa. Estávamos em frente da face norte do
Monte Perdido; ligeiramente
a noroeste, os Picos de Astazou e o cimo da parede de onde se precipita a
cascata de Gavarnie. Do lago pouco se via, já que as águas permaneciam
congeladas ou debaixo de espesso manto de gelo. Quando em 1988 ali cheguei com
alunos, tínhamos de regressar a Pineta ... mas agora eu ia continuar para
França, ia ligar Pineta a Gavarnie!
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Lago gelado de Marboré
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Lago de Marboré e Brecha de Tucarroya (fronteira francesa)
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A ligação a terras de França, a partir do lago de Marboré, faz-se através da
Brecha de Tucarroya, a 2666 metros de altitude, espectacular abertura
onde se localiza o Refúgio do mesmo nome, de utilização livre. Na base da
subida para Tucarroya ... uma placa eterniza a morte de um montanhista em
2003...
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Cascalheira na subida para o Refúgio de Tucarroya
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Se as panorâmicas do lado espanhol eram sublimes ... ao abeirarmo-nos da face
francesa de Tucarroya temos de suster a respiração! E suster a respiração por
duas razões: aos nossos pés estendia-se a vertente do
Cirque d'Estaubé,
pintada de verde e branco, fechada a poente pela crista de
Pimené e da
Hourquette d'Alans, para onde nos íamos dirigir. Mas suster a
respiração também ... ao olhar para a pendente de 50% de inclinação que
tínhamos que descer, com neve!
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Uma boa pausa ... antes da muito grande aventura de descer para o lado
francês...
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E este ... era o "abismo" que tínhamos de descer!
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Cirque de Estaubé, com o Lac des Gloriettes ao fundo
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A nossa experiente "corredora de montanha" desceu a pendente sem problemas;
parabéns, Anabela! A benjamim do grupo, receosa mas com bons crampons,
seguiu-a bem mais lentamente, mas segura; parabéns também para ti, Cristina. O
nosso "profissional" dos Himalaias e não só ... especializou-se na construção
de autênticos degraus na neve, onde a minha "imitação" de crampons me fixassem
um pouco melhor; obrigado e parabéns pela arte, Ramiro! Nesta aventura (aqui
sim sem aspas...) de descer Tucarroya ... levámos o melhor de 2 horas para
progredir cerca de 600 metros...!
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Como ela |
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anda bem ... e sem crampons...!
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Próximo objectivo:
Hourquette d'Alans, a 2433 metros de altitude.
Troços de neve intervalavam com rocha ... rocha que eu e a Cristina
abençoávamos ao começar a pisar! Estávamos a contornar o
Cirque d'Estaubé
a poente, com uma panorâmica sublime. Uma camurça atravessou rapidamente um
dos troços de neve ... e sem crampons...! E são ... nove horas de um fim
de tarde sublime!
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A caminho da Hourquette d'Alans
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Hourquette d'Alans (2438m alt.)
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Era suposto chegarmos ao refúgio o mais tardar às 19:00h...! Avisada a
organização do nosso atraso, começamos a descer para o vale de
Gavarnie! Algum nevoeiro emprestava agora à paisagem uma magia
especial. Não fora ele e ao fundo, lá onde o Sol se põe, o
Vignemale contemplaria-nos, a nós e à imensa mole montanhosa que separa
a Ibéria do resto da Europa. Como um pontinho perdido nas montanhas, o nosso
destino já se distingue: o
Refúgio de Espuguettes, a pouco mais de 2000m, dominando de nordeste o
Cirque de Gavarnie.
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Às 21:00h, com mais de 14 horas de jornada ... esta era a visão que
mais queríamos ter...!
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Marmotas e cavalos brincavam alegremente no paraíso perdido a que chegámos,
àquela hora já tardia. Cansados mas felizes, lá jantámos ... mais de duas
horas depois da hora estipulada. E dado que não havia muita ocupação no
refúgio ... tivemos o grato prazer de ficarmos os quatro num "quarto
privativo"...! Tínhamos que dormir ... que no dia seguinte haveria mais
"aventuras".
Escrito em Tours, França, 11.07.2013
5 comentários:
Aqui tratou-se de uma autêntica aventura com riscos alguns previstos outros não. Parabéns José Carlos e aos teus companheiros!
O primeiro capítulo desta aventura pelos Pirenéus, é de tal modo pormenorizado e apaixonado, que o leitor fica contagiado pelo entusiasmo, ainda fervente, do seu autor!
Venham de lá os próximos episódios e mais fotografias deslumbrantes...
Hola, me gustaria saber cuales son las canciones que suenan entre el minuto 14 y el 19??, son las dos muy buenas, creo del mismo grupo
Muchas gracias, yo tambien he hecho el tour monte perdido extreme, tengo un canal en youtube llamado lacagamosluis
saludos y gracias
Hola. Los créditos están al final del vídeo. Las canciones a que te refieres son música popular occitana, de los grupos Los de l'Ouzoum y Nadau. Disfrútalas.
Saludos
As fotos estão excelentes. Autênticos postais. Interrogo-me como foram editadas...qual o software...
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