Em
Huayllabamba, a primeira noite de campo terminou seriam umas quatro da manhã. Os galos, no minúsculo povoado, acordam ainda noite escura ... e não foi preciso despertador. Fomo-nos deixando ficar até surgirem os primeiros alvores. Um dos carregadores colocou-nos à porta da tenda dois alguidares com água quente e duas canecas de chá de coca. Os sanitários não eram longe; rudimentares ... mas nos acampamentos seguintes consideraríamos estes um luxo...
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O despertar dos mágicos! Huayllabamba, 8.Setembro.2019, 5h40, 3000 metros de altitude |
O segundo dia de Caminho sabíamos ser o mais desafiante. Estávamos a 3 mil metros de altitude ... e íamos subir ao
Warmiwañusqa, também conhecido como o "
Dead Woman's Pass". É o ponto mais elevado do Caminho Inca (4215 metros), onde a montanha parece ter a configuração de uma mulher (
warmi, em quíchua) deitada (
wañuy-
sqa, morta). Um revigorante pequeno almoço (pãezinhos tipo scones, doces, chá, café ou chocolate quente), nougats, bolachas e caramelos de coca à mão ... e antes das seis e meia estávamos a começar a subir. Cerca de 7 km para subir 1200 metros de desnível; a ancestral calçada inca, por vezes com altivos degraus de pedra, iria surgir neste e nos dias seguintes, num crescendo de esforço e de admiração pela imponente obra de engenharia com mais de 5 séculos.
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Preocupação permanente com o meio ambiente: |
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não ao lixo, não aos drones, não ao ruído |
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À medida que subimos, as nuvens também sobem as montanhas, numa manhã mágica (7h12, 3220m alt.) |
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Sempre para cima, pelas calçadas e escadas incas, vamo-nos embrenhando na montanha, mas também na selva tropical |
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Alpacas e lamas pastam nos lameiros |
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e pastos de altitude (3880m alt.) |
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A caminho dos céus, já se vê o passo de Warmiwuañusca. A warmi está, supostamente, deitada em posição quase fetal, com a cabeça à esquerda, os seios à direita da passagem e o tronco e pernas à direita. Mas é precisa muita imaginação... |
À medida que subia, a Madalena lembrava-se que era domingo ... dia das finais do
US Open. Será que não ia poder saber se o seu querido Nadal ganhava? O Washi dizia-lhe que
Wi-Fi ou mesmo rede telefónica ... na melhor das hipóteses só no dia seguinte. Mas fosse por acreditar tanto na vitória do Nadal e na derrota da Serena Williams, ou por o temido
soroche que a tinha molestado no
Winikunka já estar controlado pelos caramelos de coca e pelas
sorojchi pills ... o que é facto é que a Madalena foi uma heroína de resistência, chegando inteirinha e bem aos 4215 metros de
Warmiwañusqa.
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Últimos lances da vertiginosa subida de Huayllabamba ao Warmiwañuska |
Pouco antes do meio dia estávamos no
Warmiwañusqa, o "
Dead Woman's Pass", a 4215 metros de altitude, com vistas soberbas para as montanhas em redor. A sul, o vale do Huayllabamba, de onde tínhamos vindo, e, por trás dele, a Cordilheira de
Vilcabamba, com vários
nevados e glaciares a altitudes bem acima dos 5000 metros. Um pouco mais a poente, embora não se veja, situa-se o seu ponto mais alto e um dos mais altos dos
Andes, o pico de
Salkantay, que se eleva a 6271 metros.
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Paso de Warmiwañusca (4215m alt.), no ponto mais alto da Qhapaq Ñan, o Caminho Inca clássico |
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Do paso de Warmiwañusca para sul, a cordilheira de Vilcabamba em todo o seu esplendor |
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E do paso de Warmiwañusca para norte, admirando o espectacular vale cénico do rio Pakaymayu |
Depois da grande subida, esperava-nos a descida para o vale do
Pakaymayu, afluente do Urubamba. Em distância percorrida, o segundo dia era o mais curto, apenas 10 km, mas o de maiores desníveis acumulados (1470m D+ / 860m D-). Para o local de acampamento faltavam apenas cerca de 2,5 km.
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Um guia carregador ... por algum tempo... 😉
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A nossa equipa de carregadores e cozinheiro claro que já nos tinham ultrapassado há muito, mas hoje íamos almoçar no mesmo local de pernoita, o campo de
Runkurakay, a 3610 metros de altitude. Tínhamos portanto grande parte da tarde para descansar ... e visitar as imediações. Na descida, o nosso guia Washi quis transportar a mochila de um dos carregadores, que levou a dele, bem mais pequena. No final ... queixava-se das costas...
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Campo de Runkurakay (3610m), 08.Set., 14h, no vale do |
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Pakaymayu: almoço, jantar e segunda noite de campo |
Claro que já ambos sabíamos, eu e a Madalena, que não teríamos água quente durante o Caminho Inca. Aliás ... cheguei a supor que nem instalações sanitárias propriamente ditas tivéssemos.Essas há ... e neste segundo acampamento até havia duche, que luxo! Mas, claro que de água gélida ... e directa de um cano que saía da parede. A deficiente limpeza nos sanitários (neste caso constituídos pelo "velho" buraco no chão) obrigava a sessões de ginástica e contorcionismo para não sujar as calças ou a restante roupa. Abençoámos os toalhetes e/ou
papel higiénico húmido que leváramos ... e decidimos de comum acordo que só tomaríamos banho em
Aguas Calientes, no final da aventura... 😉
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Campo de Runkurakay, 09.Setembro.2019, 5h18 - Despertávamos para o 3º dia de "aventura". Temperatura: 4ºC |
Esta foi a noite mais fria das três; era, também, a que estávamos a maior altitude. Apesar do bom saco cama ... a Madalena não se apercebeu de que eu dormi com dois pares de meias. Do que não se esquecia era de que nem sabia se o Nadal tinha ganho e a Serena perdido... 😜
Os alguidares com água quente e as canecas de chá de coca lá surgiram de novo à porta da tenda; pelo menos ... podíamos lavar os olhos e a ponta do nariz com água quente! Pouco depois das seis e meia e de mais um opíparo pequeno-almoço ... recomeçámos a marcha. As nuvens, os raios de Sol e as cores da montanha iam marcar as primeiras horas, de suave subida de regresso aos 4000 metros.
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Serão precisas palavras para descrever as sensações vividas nesta Natureza, onde os deuses pareciam espreitar-nos?... |
A meio caminho do
paso de
Runkurakay (4000m alt.), passamos pelas ruínas da Fortaleza do mesmo nome, de estrutura semicircular, dominando o vale. Continuamos a subir a velha calçada inca; com pouco mais de duas horas de marcha, chegamos ao segundo colo do Caminho para Machu Picchu.
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Fortaleza de Runkurakay, no regresso aos 4000 metros de altitude e ao paso do mesmo nome |
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Os falcões dominam as |
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pequenas lagoas de Runkurakay |
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Runkurakay (4000m), 8h30 - Como se de um Caminho de |
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Santiago se tratasse, também deixamos pedras nos cumes |
O terceiro dia seria o mais longo em distância, cerca de 15 km, mas a partir do
paso de
Runkurakay praticamente não havia mais subidas. Só que ... já não sabíamos se preferíamos subir ou descer. Tantas e tantas vezes me lembrei do meu "mano" Zé Messias e dos seus joelhos; abençoadas
rodillas, as minhas ... que não se queixaram daquela utilização intensiva.
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Olá! Estou aqui a ver-vos ... |
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parecia dizer, tão curioso e estático como nós |
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Descida das alturas, até às imponentes ruínas incas de Sayacmarca |
Tal como Machu Picchu, o complexo de
Sayacmarca foi descoberto em 1915 por Hyram Bingham, em novas expedições na área. A cidadela divide-se em duas zonas, residencial e cerimonial, além de um sistema de irrigação por meio de canais que abasteciam as casas.
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Nas ruínas do imponente complexo de Sayacmarca - 3600m alt., 10h00 |
A seguir a
Sayacmarca, abaixo já dos 3500 metros de altitude, a descida levou-nos a entrar numa zona de selva tropical húmida. Se já antes tinha sido necessário, o repelente de mosquitos voltou a entrar em acção ... excepto para a Madalena, que parecia imune às investidas daqueles. "
Hoje já talvez haja possibilidade de termos Wi-Fi ", disse-lhe o Washi ... e até pareceu que a notícia lhe deu novas forças às pernas e asas aos olhos...😇🤩. E o almoço hoje foi cedo, no campo de
Chakicocha.
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Estávamos bem dentro de uma floresta tropical húmida de montanha... |
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O local do almoço, em Chakicocha, 11h30 ... |
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... onde os "meus" melros também parecem querer vir |
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comer comigo... |
O próximo objectivo eram os terraços e as ruínas de
Phuyupatamarca, a 3660 metros de altitude ... o que significa que até lá tínhamos nova subida ... um túnel inca ... muita selva ... mas um clima ameno, nem calor nem frio. Aliás,
Phuyupatamarca signfica em
quíchua "
la ciudad entre la niebla".
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Túnel inca, escavado na rocha há séculos, para a passagem do Caminho |
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Prosseguimos através da selva de montanha ... |
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... e, de repente ... voltamos a ver o vale do rio Urubamba! |
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Neste local, disse à Madalena para fechar os olhos e conduzi-a até à vista do vale. Quando os abriu ... soltou-se-lhe um profundo e sentido "Aaaahh"... |
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Continuamos a pisar calçada inca, até que se abrem abaixo de nós ... |
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... os terraços de Phuyupatamarca ... a cidade das nuvens (3660m alt.), 13h40 |
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Campo de Phuyupatamarca ... a cidade das nuvens. Era aqui que o Washi tinha dito que talvez houvesse Wi-Fi... |
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A Madalena bem tenta ... o Washi dá-lhe
pode comemorar a ambicionada vitória de Rafael Nadal e a |
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uma ajuda ... e finalmente a Madalena
derrota de Serena Williams no Open dos Estados Unidos 😊 |
A paisagem bastaria, o nosso Sonho também, mas, para a Madalena ... o êxito de Rafael Nadal e da canadiana Bianca Andreescu, de apenas 19 anos, nas finais do
Open dos Estados Unidos ... deram-lhe mesmo "
forças às pernas e asas aos olhos" ... segundo as suas próprias palavras ...😇🤩
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Descida dos terraços de Phuyupatamarca |
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E agora sim, descíamos a sério, embrenhando-nos cada vez mais na selva tropical.
E lá ao fundo, por trás daquele morro ao centro ... está a cidadela de Machu Picchu! |
A tarde avançava, nesta terceira e mais longa jornada. Qual não é o nosso espanto quando vemos um carregador de outro grupo a descer, de estatura ainda mais pequena do que a média, transportando uma "mochila" gigantesca às costas. Quanto pesa a mochila, perguntei; 50 kg, foi a resposta! E quanto pesas tu? 50 Kg, foi igualmente a resposta! Parece inacreditável ... mas testemunhámos ... e ele e nós lá continuámos, rumo aos terraços de
Intipata e ao nosso destino, o acampamento de
Winay Wayna.
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50 kg de gente que transportam 50 kg de carga. Como é possível?... |
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Através da selva, com bambus à mistura, vamos descendo de regresso ao vale do rio Urubamba |
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Nos terraços de Intipata. Já estamos apenas a 2900 metros de altitude ... |
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... com o rio Urubamba cada vez mais perto |
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As escadarias intermináveis de Intipata ... onde mais do que nunca os joelhos são postos à prova... |
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Pouco antes das cinco da tarde, na maior jornada do Caminho Inca, chegamos ao acampamento de Winay Wayna |
No dia seguinte chegaríamos a Machu Picchu. Tendo esta terceira jornada sido a maior, quando chegámos ao acampamento a tarde começava já a declinar. Em frente de nós, tínhamos o vale do
Urubamba e a montanha de
Machu Picchu ... com as cores do Sol pôr. Se
Wynay Wayna fizer jus ao seu significado em
quíchua ... ficaremos eternamente jovens, por termos vivido tamanha beleza!
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Wynay Wayna, 17h45 - Do nosso miradouro privativo víamos a montanha de Machu Pichu e a cordilheira do Urubamba, destacando-se o Nevado Veronica entre as cores do pôr do Sol (5893m alt.) |
Este seria o nosso último jantar e a nossa despedida da equipa de carregadores e cozinheiro. O dia seguinte começaria às quatro da manhã, nós para chegarmos à
Intipunku - a Porta do Sol - ao nascer do Sol; os carregadores e cozinheiro para nos fornecerem um pequeno almoço volante, desmontarem o acampamento ... e reiniciarem o trabalho com novo grupo! Claro que houve, portanto, uma singela cerimónia de despedida ... com a surpresa de inclusivamente termos um bolo especial para este último jantar.
Cada membro da equipa falou um pouco sobre si, idade, há quanto tempo nesta vida, etc.. Dirigimos igualmente as nossas palavras de apreço ao trabalho, preocupação e simpatia daqueles homens simples, de idades variadas, e quisemos igualmente recompensá-los com uma
propina, de acordo com o valor que o Washi nos aconselhara ser usual. Para além do esforço físico - que nos parece sobre-humano - destes homens, é de louvar o cuidado e a preocupação com a higiene em condições tão difíceis. A todas as refeições, por exemplo, tínhamos um produto à base de álcool para desinfectar e lavar as mãos. Os nomes do jovem Martín, cozinheiro, e do um pouco menos jovem Damian, chefe dos carregadores, ficar-nos-ão nas memórias. O Washi, o nosso guia, esse ainda continuaria connosco para a quarta e última jornada deste fabuloso Caminho Inca.
1 comentário:
Obrigado Callixto, por este belo momento...! Adorei!
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