domingo, 23 de maio de 2021

De Valença do Minho a Santiago … no Caminho do meu renascer (3)

De Padrón a Santiago ... e o regresso renascido
Bobadela, 23 de Maio
Para penúltima etapa, optámos por apontar a Milladoiro, subúrbio já da capital da Galiza, a escassos 7 km da mítica e mágica Praça do Obradoiro. Tinha dito à minha pequena peregrina que esta era uma etapa fácil ... mas esqueci-me que eram 19 km praticamente sempre a subir. Se na etapa anterior ela tinha precisado de força e ânimo ... esta foi verdadeiramente uma prova de superação, particularmente nos quilómetros finais; os 100 km já percorridos, o cansaço acumulado ... faziam-se sentir.

           Igreja de Iria Flavia, primeira Catedral galega
As setas amarelas guiam-nos no Caminho das Estrelas...
Saímos de Padrón às oito e meia da manhã. Rapidamente atingimos Iria Flavia, a cujas imediações terá chegado a barca de pedra com o corpo decapitado de Santiago. Entre o Sar, a linha do comboio e a N-550, o Caminho era sempre para norte, atravessando pequenas aldeias rurais e marcado por diversas grandes Igrejas, como a de Iria Flavia, o Santuário da Excravitude ou a Igreja de Santa María, mas marcado também pelos belos bosques até ao lugar de O Faramello.
Igrejas da Excravitude (acima) e de Santa María, entre Iria Flavia e Angueira de Suso
Imagens de uma Galiza rural e campestre, a caminho de O Faramello
Igreja de S. Martinho, já no município de Teo
Estávamos cada vez mais perto...
A etapa estava a ser durinha para a minha pequena/grande peregrina, por efeito cumulativo do perfil quase sempre ascendente, da alternância frio/calor ... e, claro ... dos mais de 100 km que já levava nos pés. Mas ... nem uma bolha, nem um músculo "avariado", nada; apenas cansaço, perfeitamente natural. Quanto orgulho nesta minha PE (Peregrina Especial) 💞
Os últimos 6 km foram os mais penosos, com subidas mais acentuadas ... e já com alguma fome. Finalmente, lá nos aproximávamos de Milladoiro; numa recta interminável ao longo da estrada, pareceu-nos ver um polícia ... mas afinal era um "sinaleiro" a cativar peregrinos para o snack "O Camiño", ligeiramente desviado da estrada, à entrada da povoação. Nem pensámos duas vezes ... e a paragem deu para almoço e recuperação de forças...
A recarregar energias na tapería "O Camiño", Milladoiro
E em repouso, no excelente "Albergue Milladoiro
Estávamos a 7 km do campus stellae. No dia seguinte bem cedo deixámos Milladoiro, para chegar bem cedo. O pequeno almoço foi já em Santiago ... e a apoteose da chegada tomava conta de mim ... de nós dois. Pela sétima vez a pé ... cheguei a Santiago de Compostela.
22.Maio.2021, 9h15 - Passo a passo ... pedra a pedra ... entrávamos em Santiago de Compostela
São 9h20 ... avançamos pela Rúa do Franco ... rumo à Catedral ... rumo ao Campo das Estrelas!
Foi a minha 7ª vez ... mas este Caminho ... este foi o 1º de uma "nova era"; a minha pequena/grande peregrina estava ali comigo, com superação e, principalmente, com Amor. E todos os que Amamos estavam também ali connosco, nos nossos corações, naquela apoteose da chegada às estrelas ⭐ Mas desta vez o que mais me impressionou foi o quase total vazio e silêncio das ruas e da Praça, tão diferente do bulício habitual; por isso ... gritei a plenos pulmões ... SANTIAAAAGOOOO!
SANTIAAAAGOOOO ! OBRADOOOOIROOOO !
128 km depois ... chegava ao campus stellae com a estrela que acompanha o Caminho da minha Vida!
O Universo permitiu esta foto monumental: apesar dos poucos peregrinos, um peregrino checo que tínhamos visto apenas uma ou duas vezes ofereceu-se para imortalizar a nossa chegada.
A chuva ligeira com que tínhamos entrado na cidade parou ... mas a chuva em Santiago é Arte! Até pouco antes ... tínhamos vindo a ouvir os "Luar na Lubre" ... "O son do ar" e ... "Chove en Santiago". Jamais esquecerei a sensação desta minha sétima chegada ao Obradoiro; a primeira com a companheira da minha Vida ... mas também a primeira em Ano Xacobeo, ou Ano Santo.
Fila para a Oficina do Peregrino
O Ano Santo é celebrado desde a Idade Média, por disposição papal, quando o dia do apóstolo Santiago (25 de Julho) coincide com um domingo; o último celebrou-se em 2010 ... os próximos serão em 2027, 2032 e 2038.
Não é permitido entrar na Catedral com as mochilas, pelo que fomos primeiro à Oficina do Peregrino mostrar as nossas Credenciais e pedir as Compostelas. Como quis mudar tudo, para alojamento em Santiago reservara desta vez um lugar desconhecido, a Pensión Airiños Aires ...
e foi uma óptima escolha, muito perto da Catedral e da Oficina do Peregrino. Largámos as mochilas ... e então sim fomos à Catedral, à Missa do Peregrino, ao meio dia. Claro que entrámos pela Porta Santa, ou Porta do Perdão, porta que é apenas aberta nos Anos Santos e através da qual o Peregrino ganha o Jubileu, a indulgência plenária, ou perdão dos pecados. A abertura da Porta Santa tem lugar na tarde do dia 31 de Dezembro do ano anterior, segundo um complexo e antigo cerimonial (a que assisti em 31 de Dezembro passado pela TVE). Quando está fechada, a Porta está tapada por um muro de pequenas pedras soltas, que simbolizam a dura peregrinação. No momento da abertura, a procissão aproxima-se desse muro pela Praça da Quintana, o arcebispo golpeia-o três vezes com um martelo de prata e ordena que se abra a Porta. Os operários derrubam o muro pelo lado de dentro, recolhem o cascalho, limpam o chão com ramos de loureiro e a procissão entra na Igreja.

Entrada na Catedral pela Porta Santa ...
a Porta do Perdão, ou da indulgência plenária
Quando saímos da Missa do Peregrino, já havia um pouco mais de movimento ... e já se ouvia a gaita no Arco do Pazo, entre a Acibecheria e o Obradoiro 🎶🎵...
Mas para já eram horas de alimentar os estômagos. E também a esse nível fomos a um sítio novo para mim, o "Bocalino Cafe Bar", na Travesa do Franco, onde comemos um esplêndido pulpo a feira ... e uma tarte de Santiago.
Largo e esplanadas junto à Pensión "Airiños Aires", uma óptima opção de alojamento em Santiago a preços peregrinos
E um belo almoço na
"Cafetería Bocalino"
Depois ... depois foi a única vez que nos separámos neste Caminho. A minha peregrina especial optou pelas compras ... eu optei por deambular pelo Parque da Alameda e seus miradouros, pelas velhas ruas e ruelas ... a Viver e Sentir Santiago ... cidade mágica ... o campus stellae ...a chegada de peregrinos de todos os "estilos" ... sentindo o que eles sentem ... embora ninguém sinta o mesmo que ninguém ... nem sequer o mesmo que nós próprios, noutro "lugar" do espaço/tempo.
Miradouro da Catedral, a partir do Parque da Alameda
Viver e Sentir Santiago ... cidade mágica, na tarde de 22 de Maio de 2021
Aproximava-se a hora da despedida ... mas o fim de um Caminho é só o início de outro. "Não é um adeus, irmãos ... é só um até breve ". No dia seguinte, domingo, seria o regresso a casa ... e até o regresso foi diferente: depois de cinco anos a regressar de autocarro da ALSA, viemos para casa com a FlixBus ... a partir da novíssima Estação Intermodal de Santiago ... inaugurada na véspera!
23.Maio.2021, 9h00 - Partida da novíssima Estação Intermodal de Santiago
Não é um adeus, irmãos ... é só um até breve!

Ria de Vigo, 10h15 - Ao fundo as Ilhas Cíes
Porto e o rio Douro, 12h35
Serra de Montejunto, 15h15 ... estávamos quase em casa...
Este foi o Caminho do meu renascer ... o expurgar dos meus fantasmas ... o arrumar das fragas e pragas que me atiraram ao Caminho, que tinha que ultrapassar ... que ultrapassei 🌿🕊️
Em tempos ainda de pandemia, claro que também a esse nível este Caminho foi diferente, muito para além da necessidade do uso da máscara. Senti a falta, essencialmente ... das ceias comunitárias, do maior convívio e troca de experiências e vivências com outros peregrinos de nacionalidades as mais diversas, como era habitual na "era pré-covid". Mas, apesar de tudo, o Caminho vai retomando a sua imagem; encontrei mais peregrinos do que imaginava, nesta fase ... e o amanhã será seguramente melhor! Dos vários peregrinos que conhecemos, destaco essencialmente o grupo de 4 portugueses que mais vezes nos encontrámos e com quem vivemos, entre outros, os momentos da "Mesa de Pedra". Ana, Joana, Dário e Mammy Maria Luísa ... Bom Caminho ... Bons Caminhos!
Não sei quando nem com quem será o meu próximo Caminho ... contigo ... sozinho ... com quem o destino quiser. Mas a ti, que fizeste deste o teu primeiro Caminho de Santiago ... dizer obrigado é pouco, muito pouco! Foste e és uma pequena/grande Peregrina, que, além deste, me acompanha no maior e principal Caminho: o da Vida! Ultreïa! 🙏💞
(Escrito e composto em casa, a 29 de Maio)
(Clique na faixa Franciscana, à esquerda, para ver o álbum completo de Fotos)
Clique para ver o percurso no Wikiloc 
 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

De Valença do Minho a Santiago … no Caminho do meu renascer (2)

De Pontevedra a Padrón
Padrón, 20 de Maio
19 de Maio, 4ª feira: de Pontevedra a Caldas de Reis, era a maior etapa do nosso Caminho, 23 km. Por isso e porque a previsão era de um esplêndido dia de Sol ... saímos do Albergue uns minutos antes do nascer do astro-rei, que logo proporcionou belas imagens na travessia do Río Lérez, pela medieval Ponte do Burgo. Poucos quilómetros depois é a bifurcação do Caminho Central pelo percurso mais antigo ou pela Variante Espiritual, que segui em 2018; implicando maior distância e mais montanha, com a minha estreante peregrina optámos pelo percurso tradicional, por Caldas de Reis, o que quis dizer também, portanto, que a maior parte desta etapa e da seguinte eram novas para mim.

Pontevedra, 19.Maio.2021, 7h20: cruzando o Río Lérez pela Ponte do Burgo, ao nascer do Sol
Desde a bifurcação da variante espiritual, o Caminho segue o eixo da linha de comboio, com belos troços de bosque e zonas rurais, sem atravessar praticamente aglomerados urbanos. E embora ligeiramente fora do Caminho, um dos atractivos do dia era o Parque Natural do Rio Barosa, para o qual se desvia ao km 15,3 desde Pontevedra. Esperávamos encontrar ali umas belas cascatas, mas a imponência da água, da vegetação e da pedra ultrapassou largamente as nossas expectativas.

Ao longo dos belos bosques a norte de Pontevedra, entre a linha do comboio e a N-550
As espectaculares Cascatas do Rio Barosa, pouco mais de um quilómetro a nascente do Caminho
Propositadamente, tínhamos levado almoço volante para as cascatas. O dia estava quente, mas mesmo assim a minha pequena peregrina preferiu o Sol, junto à água. Eu, sempre "com molas" que me impedem de estar parado ... fui dar a volta ao alto das cascatas, ao longo dos sinuosos trilhos que levam ao que resta de velhos moinhos de água.
Era uma da tarde quando deixámos aquele paraíso ... mas estávamos a pouco mais de seis quilómetros de Caldas de Reis, atravessando alguns vinhedos.
19.Maio.2021, 14h30 - Através de belos vinhedos, chegamos ao Rio Umia e a Caldas de Reis
O principal atractivo de Caldas de Reis são as suas nascentes termais, as Burgas. Depois de nos instalarmos, os pés agradeceram os 50ºC das águas termais ... que a minha parceira dificilmente conseguia manter "de molho". Para alojamento, tínhamos optado pela Pensión Augas Quentes ... uma bela opção, a preço de albergue privado, no centro da cidade, perto de tudo.

As Burgas, nascentes de águas
termais em Caldas de Reis
Mas em Caldas de Reis ... um Rey tinha-me aconselhado a não perder uma certa taberna. Obrigado, Zé Rey! À beira do Umia, a Taberna "O Muiño" é realmente um lugar muito aprazível e típico, onde jantámos uma bela grelhada de carnes. Por lá estavam vários peregrinos que já conhecíamos ... e connosco veio beber um copo o amigo Ales Vazquez, da também Taberna "Mesa de Pedra", que eu conhecera no Caminho de 2018 e onde no dia seguinte iríamos almoçar, em Pontecesures.
Taberna "O Muiño", Caldas de Reis.
Obrigado, Zé Rey!
Caldas de Reis, 20.Maio.2021, 8h05 - Ponte romana sobre o Rio Bermaña, afluente do Umia
Gradualmente, ao passo da minha peregrina especial ... o Sonho continuava. Ao sexto dia de Caminho, saímos de Caldas de Reis pelas oito horas, cruzando o Bermaña. E se as etapas anteriores foram marcadas pela água, pelo Sol, pela chuva, pelo verde ... esta sexta etapa, não sendo paisagisticamente a mais bonita ... senti-a como a "etapa rainha" deste meu Caminho de "renascimento".

Nos bosques que acompanham o vale do Río Bermaña, com a luz que nos enche a Vida
Porquê a "etapa rainha"? Não sei ... o Caminho não se explica ... sente-se! "O Caminho não é o chão que pisas". Algum cansaço acumulado da minha pequena/grande peregrina ... o procurar transmitir-lhe força e ânimo ... o senti-la receber e procurar por ela essa força e esse ânimo ... o ter sido a etapa em que convivemos com mais peregrinos ... tudo isto e muito mais fez com que, mais do que nas anteriores ... eu me tenha sentido ... no Caminho. Obrigado Universo! Ultreïa! 🙏
Uma das histórias deste Caminho, vivemo-la quando estávamos a tirar a última foto acima. Passou o grupo de portugueses que já conhecíamos, ofereceram-se para nos tirar uma foto aos dois ... e nisto aproxima-se uma outra peregrina, sozinha. "Olá Callixto! Lembra-se de mim?". Pois ... não me lembrava ... mas era a Tânia ... que até já saltou comigo e com o meu filho em Skydive! Mistérios do Caminho...
No mesmo local da última foto ... agora com a Tânia ... que pareceu caída dos céus. Não a voltámos a encontrar...
Igreja de Santa
Mariña de Carracedo
Passo a passo ... por entre o silêncio das pedras ... vamo-nos aproximando de Santiago...
Etapa predominantemente rural, a poente percebia-se já o vale do Ulla. Aproximávamo-nos de Pontecesures e de Padrón, e portanto também da junção da variante espiritual com o Caminho principal. Uns metros antes da "Mesa de Pedra", voltava a ser Caminho já percorrido, para mim.
À porta da "Mesa de Pedra", em Pontecesures, 20.Maio.2021, 13h20
À semelhança de 2018, em Pontecesures "apareceu uma casa com uns muros muito altos .... No cimo dos muros, como se de um castelo moderno se tratasse, diversas bandeiras ondulavam ao vento - estandartes com a Cruz de Cristo e Templária desenrolavam-se lentamente, criando uma atmosfera única.". "Bem-vindos à Mesa de Pedra" ... pareceu-me ouvir no ar enquanto entrávamos. Tal como o Pedro e a Sofia do "Entre o Silêncio das Pedras" ... fomos recebidos naquele espaço único pelo seu único hospitaleiro, Ales Vazquez, com quem estivéramos na véspera em Caldas de Reis ... e por ali estivemos umas duas horas à conversa sobre o que o Caminho nos ensina, sobre a Vida ... sobre tudo e sobre nada, ao mesmo tempo que íamos saboreando um gaspacho, uma jardineira, regados com um vinho tinto artesanal, um café preparado ao ritmo de uma ampulheta...
Na "Mesa de Pedra" ... um ícone do Caminho Português em Pontecesures
WiFi eiquí ... só o can 🙂
Na "Mesa de Pedra" éramos nós, os quatro peregrinos portugueses, uma checa, o Ales ... e o WiFi. WiFi? Sim ... o WiFi é o cão. A Joana perguntou se não havia WiFi ... e o Ales respondeu ... "WiFi eiquí só o can"... 🤪
Eram duas horas quando deixámos a "Mesa de Pedra". Cruzámos o Ulla, acompanhámos o Sar ... e entrámos em Padrón. Padrón era um dos poucos concelhos galegos em nível máximo de confinamento. Sabíamos que não íamos encontrar restaurantes nem bares abertos, mas a maioria dos albergues privados estavam a funcionar normalmente. Escolhêramos o Albergue Rossol, situado mesmo em frente à Igreja de Santiago; sem dúvida um dos melhores em que ficámos ... e o mais barato! Uma vez instalados, fomos visitar a Igreja, que guarda o pedrón, a pedra a que terá sido amarrada a barca que transportou o corpo de Santiago, na sua trasladação desde a Terra Santa.
Padrón, 16h00 - O Rio Sar e o Convento do Carme
Igreja de Santiago de Padrón,
com o pedrón a que terá sido
amarrada a barca de Santiago
Ponte medieval sobre o Sar e Fonte e Convento do Carme
No Albergue Rossol, frente à Igreja de
Santiago
No morro sobre o Convento do Carme situa-se a Capela e o Cruzeiro do Santiaguiño do Monte. A minha pequena peregrina ficou no albergue, mas eu ainda subi ao monte, com esplêndidas panorâmicas sobre Padrón. Reza a lenda que o Apóstolo Santiago ali terá pregado a Fé Cristã.
Subida ao Santiaguiño do Monte
Capela e Cruzeiro do Santiaguiño do Monte e panorâmica sobre Padrón ... à luz do Sol poente
Em Padrón estávamos a cerca de 25 km de Santiago de Compostela. O nosso Caminho aproximava-se do destino traçado. Numa única etapa, chegaríamos a Santiago pela tarde dentro, pelo que, na planificação deste Caminho, optámos por uma etapa prévia que nos deixasse quase às portas do campo das estrelas ... até porque ainda havia uma "prova de superação" para vencer...
(Escrito e composto em casa, a 28 de Maio)