Como escrevi quando da ligação da
Malcata à Gardunha, nunca tive ambições competitivas, ou recordistas ... mas as "aventuras" dos últimos anos têm-me criado uma crescente vontade de testar, de certo modo, os meus limites e capacidades. O meu record pessoal de distância percorrida num dia estava em 62 km, quando em Novembro de 2015, quase por acaso ... fui
da Bobadela a Santarém em 14 horas, percorrendo 72 km a uma média, em movimento, de 5,5 km/h. Nestas lucubrações ... nasceu no meu imaginário um desafio: se fiz 72 km em 14 horas (aliás em tempo de andamento nem chegou) ... se nesse dia senti que faria mais ... porque não tentar fazer os 100 km num dia? E, de preferência ... em 20 a 21 horas?... Loucura? Insanidade? Talvez não! Eu chamei-lhe desafio pessoal, teste de resistência, sem obrigação de nada ... e muito menos de provar alguma coisa a quem quer que seja, inclusive a mim próprio!
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Santa Cruz, vista do alto da Cruz de Santa Helena. Chegariam as minhas pernas aqui, ao fim de 100 longos km? |
O percurso a escolher para um projecto destes teria de ter o mínimo desnível possível; e seria aconselhável que a porção nocturna, sendo necessariamente perto de áreas urbanas, não fosse isolada. Por percurso diferente ... o apelo de
Santa Cruz claro que surgiu na génese do ideário deste desafio; mas, para ir de novo de casa a Santa Cruz perfazendo 100 km ... teria de ir por
Lisboa,
Oeiras,
Estoril, virar então a norte e passar a leste de
Sintra, rumo à
Ericeira ... e a
Santa Cruz!
É este o meu ideal de percursos pedestres? Claro que não! Prefiro os grandes espaços, a poesia das belas paisagens, a montanha, os vales, as águas dos rios, o verde dos campos, o cantar da Natureza. Este é ... um conceito diferente. É um desafio que lançamos a nós próprios meramente como teste. Até onde seriam as minhas sexagenárias pernas capazes de me levar?...
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Bobadela, 16.09.2016, 19h50
Nascia a Lua que me iria guardar dali a umas horas…
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Curiosamente, em Lisboa e arredores, o nascer da Lua cheia do dia 16 foi exactamente à mesma hora do pôr-do-Sol (19h43). Da minha janela, virada a nascente, sobre o Tejo, a recém-nascida Lua iria guardar-me dali a umas horas … num desafio em que, a poente, no dia seguinte iria ver o pôr-do-Sol!
E assim ... ao primeiro segundo depois da meia noite - uma noite de Lua cheia - estava a partir de casa, na
Bobadela ... rumo à "aventura" ... e a solo. Lancei o repto a vários
habitués destes desafios, mas nenhum estava disponível. Só o meu "mano" Zé Manel viria ao meu encontro, mais tarde.
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23h58 - A aventura estava prestes a começar! |
A noite ia ser longa ... mas tencionava aproveitá-la para uma marcha o mais rápida possível; 6,87 km/h nas primeiras duas horas...!
Trancão,
Ponte Vasco da Gama, passadiços do
Parque das Nações, toda a frente ribeirinha do
Tejo, a
Ponte 25 de Abril,
Belém, a Marginal, tudo foi gradualmente ficando para trás. Gostava de saber o que terá passado na cabeça de alguns mirones que, alta madrugada, viam passar a minha figura, "montado" sobre os dois bastões de caminhada, circulando célere a caminho de um destino que lhes era seguramente desconhecido. Bem, alguns desses mirones, saídos dos bares das docas e outros ... não me pareciam estar em muito bom estado de lhes passar fosse o que fosse pela cabeça...
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00h30 - Passeio do Sapal, com a Ponte Vasco da Gama à vista |
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Cais das Colunas, 02h15 ... com 15,5 km feitos... |
Pouco depois das cinco da manhã estava em
Oeiras, onde nasci. Levava sensivelmente uma hora e vinte minutos de avanço em relação aos
timings que havia previsto. Nada mau ... principalmente porque previa que esse avanço iria fazer falta no fim. Soube mais tarde que o Mano Zé Manel queria vir ter comigo algures por aqui ... mas a mensagem que lhe prometera mandar por volta das seis horas, quando completasse 30 km ... enviei-lha eram 4h40...
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Praia de Santo Amaro de Oeiras, 05h03 - 32,5 km percorridos ... e primeira breve paragem |
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Há Luar de Prata na Cruz da Ponta da Rana |
Entretanto a Lua viajava comigo, primeiro sobre o
Tejo, depois já sobre o oceano, onde espelhava um magnífico luar de prata. Na
Parede, entre
Carcavelos e a
Praia das Avencas, a
Cruz de Rana recortava-se na prata. Terá sido erigida em memória do naufrágio de duas naus vindas da Índia, entre elas a Nossa Senhora dos Mártires, em princípios do século XVII.
A caminho do
Estoril, começou a nascer a claridade ténue que anunciaria um novo dia. E com 41,5 km feitos a uma média muito próxima dos 6 km/h ... antes das sete horas estava junto ao Forte Velho de
São João do Estoril. A Lua deitava-se ... o Sol preparava-se para nascer, lá atrás, sobre o
Tejo ... no oriente de onde eu vinha!
O Forte Velho foi também o ponto de viragem para norte. Ia agora deixar o mar, que só voltaria a ver na
Ericeira. Por
Bicesse,
Manique,
Abrunheira, o objectivo era passar a leste da
Serra de Sintra ... menos desníveis. Digamos que esse foi um troços mais monótonos desta longa jornada. Zonas muito urbanizadas, sem motivos especiais a prenderem a atenção ... até às belas vistas para a
Serra de Sintra, já na zona de
Mem Martins e do
Lourel.
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Estoril, junto ao Forte Velho, 06h57 - Eu tinha vindo atrás da Lua, que se preparava para se deitar no oceano ... |
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... enquanto atrás de mim, de onde tínhamos vindo eu e a Lua ... o Sol prepara-se para originar um novo dia |
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Três horas depois, próximo de Mem Martins: ei-la, majestosa, a Serra de Sintra, com a Pena e o Castelo dos Mouros |
No
Lourel entrei na EN 247 ... que me havia de acompanhar até bem depois da
Ericeira. Num projecto desta dimensão, não eram possíveis alternativas que aumentariam a distância e o desnível ... e incertas. Mas o que é facto é que eu ia tudo menos sozinho! O Sebastião Antunes acompanhou-me durante quase toda a sua discografia, os Diabo na Cruz, os galegos Luar na Lubre e Fuxan os Ventos ... para além de mim próprio...! E às 11 horas estava em
Vila Verde; uma providencial fonte permitiu abastecer ... e tratar de uns pés que já haviam percorrido 60,7 km em 10 horas e 57 minutos!
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Vila Verde, 10h57
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Terrugem, 11h21 |
É claro que a média geral decrescia. Mas continuava adiantado em relação ao
planning. Começava a acreditar que o objectivo estava ao meu alcance: completar os 100 km entre as 19 e as 21 horas. Entretanto, para além dos contactos com a família "biológica", os contactos com o Mano Zé Manel também se sucediam. Em princípio, ele viria ao meu encontro para, talvez, os últimos 30 km.
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Entre Alvarinhos e Santa Susana, 12h37 - Vale da Ribeira de Cheleiros. Ao fundo, vê-se o Convento de Mafra |
Odrinhas,
Alvarinhos,
Santa Susana ... e um rato a roer na barriga. Estava a fazer mais pequenas paragens do que havia previsto ... mas como os tempos estavam sob controlo resolvi parar para almoçar ... na sombra de uma paragem de autocarro. Descalçar para os pés respirarem bem, almoço, lubrificação dos pés. Meia hora de paragem ... um autêntico luxo!
Pouco depois desta saborosa paragem estava no meu Km 73 ... o que queria dizer que tinha acabado de bater o meu record pessoal de distância num dia. Já só faltavam 28 km...
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Rio Lisandro, próximo da Foz, 14h05 |
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E voltei ao mar: Praia da Foz do Lisandro, 14h22 |
Uma vez cruzado o
Lisandro ... alguém me buzina; era, claro, o Mano Zé Manel! Estacionada a viatura sobre a praia da
Foz ... a partir dali éramos portanto dois! Mas, vim a saber mais tarde, ainda antes do encontro com o Zé Manel, que fui avistado por um velho colega de há mais de 40 anos, do velho Passos Manuel. Não resisto a partilhar o que me escreveu no
facebook: "
Íamos de carro, a caminho da Ericeira e vimos um caminheiro todo artilhado. Disse logo à minha mulher que se calhar era o Callixto"!!!
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Ericeira, 14h40 ... e vão 78 km |
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Sobre a Praia de Ribeira de Ilhas, 15h27 |
Uma "loirinha" na
Ericeira e mais duas em
Ribamar fizeram parte do "
doping" para os quilómetros que ainda faltavam.
S. Lourenço,
Alfação ... e saímos finalmente da EN247, pelos caminhos rurais rumo ao
Porto dos Barcos e à Assenta. Pois ... a Assenta! Há mais de 17 horas e meia a andar e com 92 km nas pernas e pés ... não me tinha apercebido que a subida do Porto dos Barcos para a
Assenta ia ser penosa. Curta e apenas com uns 80 metros de desnível, foi, talvez, para mim ... a parte mais penosa do dia! O Zé Manel estava, claro ... fresquinho que nem uma alface!...
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Sobre o Porto dos Barcos e a Assenta, à direita ... lá em cima...! |
Faltava
Cambelas, a foz do
Sisandro, a
Praia Azul ... e o
Alto da Vela. Em Cambelas, um bom chafariz permitiu uma saborosa lavagem da cara, braços e do
buff, bem como o último reabastecimento de água ... mas as minhas garrafas teimavam em cair duas ou três vezes ... obrigando-me à penosa tarefa de me baixar para as apanhar...! :-)
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19H00 ... Foz do Sisandro e Praia Azul à vista! |
A média geral aproximava-se "perigosamente" dos 5 km/h. Mas, desde que não passasse para baixo desse valor ... os 100 km seriam atingidos dentro do
timing de 20 horas. "
Vamos conseguir" ... dizíamos ambos! Descemos à
Foz, quando se acabou o passadiço atravessámos a
Praia Azul pela areia molhada, a boa velocidade ... enquanto o Sol descia sobre o mar e pintava todo o quadro com as cores do ocaso.
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Praia Azul, 19h09 - Era preciso atravessar o areal... |
A
Praia Azul, a subida final do
Porto Escada ao
Alto da Vela, foram, são, serão também ... a minha Praia, as minhas arribas! Quantas vezes, nos meus 14, 15, 17 anos, palmilhei aqueles caminhos e aquelas arribas, a pé, de bicicleta, de motorizada do velho Sr. Filipe...! Agora, quase 50 anos depois ... chegava lá no fim de uma "prova de resistência", no fim de um desafio que lancei a mim mesmo.
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19h28 - Subida da Praia Azul para o Alto da Vela ... e as cores do pôr do Sol começavam a pintar o cenário final... |
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100 km ... numa |
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aura oferecida pelo Sol!
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Oito minutos depois, poucos metros antes do
Alto da Vela ... o conta-quilómetros do meu inseparável Orux chegava aos três dígitos! E o Sol, como que felicitando-me, mergulhava numa explosão de cor. Já tínhamos constatado que os 100 km iam ser um pouco antes de
Santa Cruz ... o que não sabíamos era que o destino tinha combinado que fossem exactamente ao pôr-do-Sol, poucos metros antes de, do Alto da Vela, avistarmos o esplendor de Santa Cruz. E também não sabíamos ... que nos esperava uma recepção triunfal!...
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Não é Fisterra ... mas também aqui se acaba a terra ... e onde cumpri o objectivo |
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Alto da Vela, 19h45 - Atingido o objectivo ... já podia olhar com calma para a "minha" Praia de Santa Cruz... |
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No Alto da Vela ... tínhamos "só" esta comissão de recepção... :) |
E ali ... "
o vento zumbia". Vários elementos da família e amigos que nos vieram receber estavam com frio. Eu ... ainda tinha o calor da longa caminhada ... e da satisfação. Mas, apesar do objectivo já cumprido ... o percurso tinha que terminar na
Riba Amarela, lá em baixo ... sobre o "santuário" do
Penedo do Guincho ... porque
as ondas voam com o vento.
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Riba Amarela, 20h05 - Agora sim, a caminhada estava no
fim ...... sobre o "santuário" do Penedo do Guincho |
E assim ... o teste de resistência foi superado. Há 3 anos, quis fazer
60 anos - 60 km ... agora, pelos vistos ... já posso durar até aos 100!...
Um grande obrigado ao meu companheiro dos últimos 25,7 km; e, principalmente, pela Amizade! Um grande obrigado também à "comissão de recepção" que nos esperava no
Alto da Vela; família e amigos ... provando que a família não é só a biológica...! É claro que lá, na "comissão de recepção" ... estava a minha pequena arraiana ... que já não me via há quase 20 longas horas. Finalmente, aqui ficam para terminar ...
Alguns números desta "aventura":
Distância percorrida: 101,7 km
Duração: 20h 7m (até aos 100 km: 19h 36m) / Tempo em andamento: 18h 21m
Paragens totais: 1h 46m (até aos 100 km: 1h 32m)
Velocidade média: 5,05 km/h / Média em movimento: 5,54 km/h
Desnível acumulado: 1345 D+ / 1377 D-
"Consumo" de líquidos:
- 2,0 l de água; / - 1,7 l de CocaCola;
- 1,0 l de Powerade ... / - e 3 "loirinhas"... :-)
Outros "consumos":
- 2 panados de peru; / - 2 pedaços de cordon bleu;
- 2 rissóis / - 1/2 sandes de queijo e paio;
- 1 banana / - 3 pastilhas de magnésio... :-)
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Três semanas depois, o "Badaladas" noticiou a minha "aventura"... |