segunda-feira, 23 de março de 2020

Sagração da Primavera ... nas terras mágicas do Gerês

... ou como se pode Sonhar em tempos de angústia

Da passada sexta feira até hoje ... há muito que tinha Sonhado voltar às "minhas" terras mágicas do Gerês ... numa autonomia vivida a 5 ... para recebermos a Primavera ... para sentirmos e glorificarmos as cores, os sons e os cheiros daqueles prados, vales e rocas. Mas ... um certo vírus declarou guerra à humanidade. A Europa acordou tarde para uma praga que tinha começado lá longe, na China ... mas o Mundo é uma aldeia e o vírus chegou como um spray ... uma negra sombra de pesadelo e de morte. Desde que comecei a escrever estas minhas memórias de ar livre ... desde que há quase meio século comecei as minhas "aventuras" por fragas e pragas ... desde que existo ... nunca imaginei alguma vez viver os tempos que estamos a viver ... a praga que de repente se abateu sobre o Mundo!
Se bem que o que íamos fazer objectivamente não nos pusesse em risco pessoal ... não foi propriamente com uma quarentena na serra que Sonhámos. Sonhámos com estarmos em Paz ... Paz com a Natureza, Paz connosco próprios ... Paz de espírito ... o que não seria possível com a preocupação permanente com quem deixávamos e com o estado geral das coisas.
E cancelámos a "aventura". Podemos adiar os Sonhos ... mas não podemos adiar a Vida.
Contudo, com o país e quase todo o Mundo em estado de emergência, não deixamos de Sonhar. Na véspera da partida ... entrei numa espécie de twilight zone entre o sonho e a realidade ... e comecei a escrever aos meus companheiros de "aventura". São essas crónicas de uma ficção misturada com realidade que trago, hoje, às "páginas" destas minhas memórias...

5ª feira 19 de Março de 2020, 22h00
A Primavera começa amanhã ... era bom que fosse a Primavera para um Mundo novo ... renascido ... rejuvenescido. Mas o Mundo ... somos também nós todos! O despertar de sábado seria a nossa primeira aurora dessa Primavera ... lá ... nas terras mágicas ... onde, como não vamos, vai cair a chuva benfazeja ... regando as rocas e as corgas ... lavando os ares e as entranhas...
Sagremos à mesma a Primavera que aí vem ... ao som de Stravinsky ... e Sonhemos com a nossa Felicidade ... lá ... quando pudermos renascer...
6ª feira 20 de Março de 2020, 08h55
Como todas as noites que antecedem as "aventuras" ... esta noite custou-me a adormecer. Entretanto ... vi a mochila preparada para partir ... a mochila grande, a das autonomias. Que saudades ela já tinha das rocas e das corgas do Gerês! A viagem foi rápida ... não tardou muito que visse o Shangri-la do vale da Teixeira ... a Virgem do Cambalhão ... dando-nos a bênção para a catarse há tanto sonhada.
Em casa ... deixei o "papelinho" que sempre escrevo à minha estrela ... sempre que a troco pelos grandes espaços que a minha catarse reclama. Deixei a saudade, a preocupação, mas também o Amor na compreensão. Não tardou que subíssemos do vale às alturas destas terras mágicas.
Cabana da Teixeira, 26.Março.2008
Entrando en terra de soños
iban os soños cantando...
Vi a Roca Negra e a Roca Alva à minha frente ... aquele prado mágico ... a alvura do algodão a despontar na Primavera que desponta. No ar, ouvia-se Stravinsky. O Sol começava a elevar-se lá dos lados das Sombrosas, num despertar dos mágicos que nos fez sair da cabana, recebendo o astro rei, a terra mater ... a Vida. Era a Sagração da Primavera! Mas de repente, naquele êxtase que tudo sublimava, os céus fecharam-se ... e eu, assustado, acordei. Tinha sido um sonho ... estava afinal em casa ... os céus até estavam cinzentos de chumbo. Afinal ... "un lobo de ollos de lume" não nos tinha deixado partir para o Sonho há tanto desejado. Mas, ao meu lado, dormindo em paz, tinha a estrela que me acompanha na aventura maior que é a Vida! E então ... adormeci de novo ... e sonhei em acordar ... quando "os rios cantaron a coro un canto nunca cantado".
Nª Srª do Cambalhão

          17h50
Amigos ... a esta hora ... sonhem que estamos no Shangri-la, junto à "nossa" cabaninha no vale da Teixeira. Se sonharmos ... até o Sol descobre ... descendo a poente por trás da imagem da Senhora do Cambalhão e da encosta que nos separa do vale do rio Gerês... Sonhem ... porque o Sonho comanda a Vida ... porque no canto de cada Sonho nasce a vontade... Eu ... eu estou a Sonhar ... estou-nos a ver lá ... de braços abertos ... a receber o Sol e a energia cósmica. Estou a ver a cabana que tão bem conheço ... estou-nos a ver mais logo estendidos no prado a contar as estrelas ... antes de recolhermos à cabana ... e de ouvirmos os sons do silêncio ... os murmúrios da noite ... talvez até o uivar de um lobo ou o piar de uma coruja. Sonhem ... deixem-me Sonhar ... e, um dia ... voltaremos!
Sábado 21 de Março de 2020, 07h50
Bom dia, companheiros de "aventura"! Que tal a primeira noite? Há pouco ouviram-se as cabras selvagens; saí da cabana, vi-as naquela média luz que antecede a aurora. Dormi bem. O saco cama é quente e a cabana estava seca. De vez em quando, de noite, ouvia o estalido das brasas que ainda crepitavam na fogueirita que ontem acendemos. Não se ouviram os lobos. É mais provável logo, na próxima noite, na cabana da Roca Alva. Eles gostam mais de maior altitude.
As iguarias que a Mada trouxe são divinais. Este pequeno almoço está-me a saber a manjar dos deuses ... dos deuses e dos totens de rocha destas terras mágicas onde estamos ... Sim, porque há deuses e totens de pedra nestas terras mágicas. Um dia, eu conto-vos a lenda do deus da encosta da Sabrosa ... ou a lenda do arco do Borrageiro, onde hoje vamos passar, a caminho dos 1400 metros de altitude, no alto do Borrageiro ... onde o mundo é o que nos rodeia ... onde a terra se junta aos céus...

Cabana da Rocalva, 20.Jun.2011
          14h35
E … cá estamos nós no prado da Roca Alva. Da cabana da Teixeira à cabana da Rocalva não é muito. Subimos o Cambalhão, subimos à Chã da Fresa, fotografámo-nos no arco do Borrageiro, subimos ao cume, inflectimos a sudeste, subimos a Roca Negra … e … aos pés dela … deitámo-nos ao Sol neste prado celestial. Somos corpos a "secar", a aquecer, a perdermo-nos entre o verde e o branco. Ligeiramente a sul, a Roca de Pias vigia o vale do rio do Conho.
No prado mágico da Roca Alva, 20.Jun.2011
Amanhã ainda não sabemos se desceremos pelo Vidoirinho e Pradolã ou pelo curral da Arrocela e Curiscada. Mas amanhã é amanhã … hoje temos este lugar especial para Viver … aqui onde as estrelas logo estarão perto de nós … onde só ouvimos o silêncio e o cantar da água fria e pura que brota da fonte … da fonte que também o é da felicidade … da magia.

          18h35
Apreciemos o paraíso que nos rodeia ... aqui ... no "nosso" prado da Rocalva. Nada mais se ouve ... nada mais se vê ... só o azul do céu ... o Sol que se está a recolher por detrás da Roca Negra ... Vénus que vai aparecer ... a anunciar as estrelas ... Sirius entre elas ... Sirius ... de onde há quem diga que vieram os nossos antepassados remotos ... Sirius ... será que nos recebe de volta?...

          22h20
Afinal, mesmo neste paraíso sob as estrelas … pudemos ver e ouvir as palavras e os sons de um cantador que, cantando … nos faz mergulhar no canto dos nossos Sonhos. O Sebastião Antunes cantou a "minha" Fraga, ouviram?! Pelo menos nessa altura eu não vos vi nem ouvi a vocês … eu levitei … pairei acima da cabana … acima até da Roca Alva, que, alva e altiva … é a própria Fraga que ele canta … lá … "de onde se contam velhas lendas … quase negras"...
Mas agora … observemos as estrelas. Lá está Sirius … de onde viemos, no Canis Majoris. Muito antes de nós, já os Dogons veneravam Sirius … eles lá sabiam porquê … ou os seus genes sabiam porquê.
Sirius no céu estrelado do Gerês, 21.Mar.2020 (app Stellarium)
Já pensaram que, neste céu de milhões de estrelas … algumas das que estamos a ver podem já não existir? A luz saiu delas há milhares de anos, milhões em muitos casos. Nós estamos a ver hoje, agora … como elas eram há esses milhares ou milhões de anos atrás. Olhar o céu … é viajar no tempo... Como não pensar que o Universo é Inteligente? Claro que é! A matéria "solta", desorganizada, tende para o caos, para a entropia. Parece-vos este céu um caos?! Não! Não há melhor exemplo de organização … de beleza … de Inteligência. O Universo gira em harmonia … as estrelas dançam valsas de Strauss … o Danúbio Azul do 2001 Odisseia no Espaço. Já assim falava Zaratustra. Nietzsche sabia que os homens podiam ser deuses … ou não fossem os deuses astronautas...
Bem … amanhã despertaremos com o Sol a começar a aquecer o Iteiro de Ovos, até a luz secar o orvalho no nosso prado. Ainda temos mais um dia completo nestas terras mágicas. Se formos pela Arrocela, provavelmente iremos dormir na Coriscada ou na Malhadoura … nas cumeadas entre os vales do Conho e da Teixeira. Mas se formos pelo Vidoirinho iremos dormir em Pinhô … a melhor cabana das vezeiras. Temos de fazer um brinde amanhã à noite. Ainda temos vinho? Penso que sim … ainda não abri a Quinta dos Termos que guardei para a nossa última refeição na Natureza… E tu, Mada, panaymi … ainda tens aquelas bolachas deliciosas? Se ficarmos em Pinhô … até temos mesa cá fora… Podemos fazer uma fogueira … rodeamos a fogueira … cantamos e saltamos. Nós somos os últimos druidas de um mundo em transformação...
Domingo 22 de Março de 2020, 02h00
Oh! CÉUS que olhais do alto estes seres minúsculos que se julgam deuses....
Prado do Vidoirinho, 20.Jun.2011
ACALMAI-VOS...não tendes por onde fugir...
OLHAI em torno de vós e vede o que construístes...
O mar se encolhe e a terra arde...e vós estais tristes...
DAI-VOS as mãos e orai quem sabe...
DANCEM sob as estrelas e cantai quem sabe...
PINTEM vossos sonhos sob o olhar da lua e guardai quem sabe...
E aqui estamos nós,
trémulos e pasmados ...
a ouvir-te falar desses palcos encantados...
Vamos lá então sonhar acordados...
Acordados vamos no sonho embalados...
(Madalena Estácio Marques)
                      08h00
E assim ... estes seres minúsculos que se julgam deuses despertaram para um Sol radioso 🌅☀️
A água gélida da fontinha lavou os corpos e as almas. Comemos o Sol e bebemos a Vida. Estamos a 8,5 km de Fafião; mas nós prometemos a nós mesmos que durante estes 4 dias não iríamos a nenhuma aldeia. Somos só nós e a serra ... o Céu e a Terra.
Recomeçámos. Somos 5 corpos em fila. As mochilas não contam ... fazem parte dos corpos. Já decidimos que vamos para Pinhô. A Roca de Pias vai ficando à nossa direita, qual farol vigiando do alto o vale do Conho. O prado da Rocalva vai ficando para trás. Mas não é um adeus ... é só um até breve.

                      19h00
E ... cá estamos na cabana de Pinhô! Meu Deus, que saudades eu tinha ... como das Rocas, que já deixámos para trás ... como de todas estas cores, sons e cheiros. O Coucão ficou para trás, à medida que descíamos para o prado do Vidoirinho. Que êxtase! A Primavera desponta colorida e leve, o Sol a aquecer os corpos que, em fila, passámos o estreito que encabeça o vale do rio Laço. Lá em baixo, a Touça corre para a represa do Porto da Lage. E Porta Ruivas, mais longe, a nordeste, ia desaparecendo, à medida que caminhávamos para os Bicos Altos e para Pradolã.
Prado do Vidoirinho, 10.Jul.2012 - Ao fundo, por trás, assomam-se ainda as Rocas Negra (à esquerda) e Alva (à direita)
Sobre o vale do Rio Laço, 10.Jul.2012 - Sublime! Ao fundo, o vale da Touça
Cabana de Pradolã, 10.Jul.2012
A cabana de Pradolã convidou a uma boa pausa. Poderíamos ter descido directos para o nosso destino, mas tínhamos tempo, continuámos o trilho como se fossemos para Fafião; só já abaixo dos 900 metros de altitude virámos a poente ... e levei-vos ao curral velho de Pinhô. Que quietude ... que mistério ... que magia! Obrigado Dorita, por um dia me teres dado a conhecer este velho curral, esquecido e perdido num Tempo sem tempo.
Curral velho de Pinhô, 8.Out.2013 ... onde se reúnem em concílio os deuses de pedra...
Na Cabana de Pinhô, 10.07.2012 ... um "hotel" 5*****
Num ápice chegámos à cabana de Pinhô ... hotel 5***** da vezeira de Fafião! As vossas caras quando viram que até tinha cama...!!! Para lá deste pradinho que é só nosso, percebe-se o vale do Cávado, a Cabreira para além dele.
E agora vou deixar a escrita ... vamos celebrar esta aventura ... vamos cantar e dançar ... vamos brindar às estrelas ... e orar. Amanhã ... amanhã será o nosso último despertar dos mágicos ... e o regresso. O regresso à dita civilização...
Com o vale do Cávado e a serra da Cabreira ao fundo, esta é a vista da nossa "varanda" em Pinhô, 07.Out.2013
2ª feira 23 de Março de 2020, 07h45
Bom dia 🙂! Que Sol radioso! Que despertar dos mágicos! Pouco passava das seis da manhã saí da cabana, vocês não deram por isso. Sozinho, ali em frente, por entre a neblina e a ramagem ... eu vi-os ... os duendes do bosque, os arautos de um Mundo Novo! Disseram-me em sussurro que a Terra um dia viverá em harmonia do Homem com a Natureza ... do Homem com o Homem. Entretanto nasceu o Sol, que dissipou a neblina. Vocês acordaram. Ao regressar à cabana senti um aroma de café quente no ar. Milagre! Vocês tinham preparado um pequeno almoço de luxo! Depois, mochilas às costas, botas calçadas ... e partimos a cantar. Vamos descer para a ponte de Servas. Até ao Gerês ... ainda temos uns quilómetros para andar. Esperemos ... que a humanidade ainda exista... 🙏🌷🌳
"Despertar dos Mágicos" na cabana de Pinhô, 09.Out.2013
                      14h50
Vila do Gerês. Acabámos de chegar. Depois de três noites e quase 4 dias na serra ... achámos as ruas estranhamente vazias. Pela ponte de Servas cruzámos o rio Conho. Como um verdadeiro farol, a Roca de Pias lá continuava vigilante, imponente, na sua austeridade granítica.. Depois ... depois foi subir à Tribela, à Malhadoura, aos Portos ... e pouco depois estávamos no Arado.
Adeus vale do Conho, Roca Negra, Cutelo de Pias, 09.Out.2013
Uma espreitadela à Cascata do Arado. Ali já se costumam ver carros e pessoas. Mas hoje é 2ª feira, pensámos ... deve ser por isso que não víamos ninguém. Chelo, Pedra Bela ... e já só faltava descer para a Corga dos Carvalhos e para a vila. O carro lá estava onde o havíamos deixado sexta de manhã, junto com outros ... mas pessoas viam-se poucas. O "Novo Sol", que conheço há 40 anos e onde pensava irmos comer ... estava fechado; o restante comércio ... fechado estava.
Panorâmica da Pedra Bela, com a barragem da Caniçada aos pés, 09.Out.2013 ... estávamos a regressar à civilização
Ainda tínhamos, felizmente, umas sobras do muito que acabamos sempre por levar. E comemos ali mesmo. Foi então que nos lembrámos ... que o Mundo se está a desmoronar ... mas foi também então que fizemos renascer em nós a esperança e a fé ... que um dia poderemos cantar de novo ... que um dia poderemos GRITAR ... "o horizonte abríuse en cantígas
                                              por un craro navallazo,
                                              e u ceo foi outra vez
                                              un ceo azul e mais branco
"

                                                                                              ("O lobo", Fuxan Os Ventos)

Nunca a viagem de regresso às nossas casas foi tão rápida ... foi só puxar o cordão de prata...
Epílogo: o fio d'esperança
O fio d'esperança é o nosso fio, o fio de nós todos, qual cordão de prata que nos une e nos prende à Vida. O vento ... o vento há-de-nos trazer de novo os Sonhos que sonhámos ... e então, nesse amanhã que um dia virá ... os Sonhos não serão mais Sonhos ... serão realidade, palpável, visível, sabororeável ... será realidade Vivida ... até porque "Amanhã já é amanhã"...
(Sebastião Antunes, "Amanhã já é amanhã")
Quantas vezes dás por ti a sentir medo
Quantas vezes dás por ti a querer fugir
E os impulsos que guardas em segredo
Mas tu sabes que o melhor é não sair
Não te esqueces que o melhor é não sair
Quantas vezes dás ouvidos à revolta
Porquê hoje, porquê nós, porquê aqui
Mas depois vês a esperança a andar à solta
E a esperança não se vai esquecer de ti
E a esperança não se vai esquecer de ti

Refrão

Aqui ninguém está sozinho nem perdido
E a esperança nunca é vã
O teu sorriso à janela faz sentido
E acredita que amanhã já é amanhã
E acredita que amanhã já é amanhã

Mais um dia que ganhaste ao fim da tarde
Outra noite que ganhaste ao amanhecer
Pede a vida para que a vida se resguarde
Que a esperança tem sementes a nascer
Que a esperança tem sementes a nascer
Tanta coisa que ensinaste e aprendeste
Tanta coisa que tu podes ensinar
Olha bem que a melhor prenda que já deste
É aquilo que consegues partilhar
É aquilo que consegues partilhar

Refrão
No fim desta "aventura" ... nesta twilight zone entre a realidade e o sonho ... resta-me abraçar (virtualmente) os meus companheiros e Amigos que comigo a Viveram. Obrigado Dina, Lucy, Mada e Zé ... obrigado por existirem! Um dia ... qualquer dia ... vamos Viver este Sonho ... numa realidade palpável, visível, sabororeável ... Vivida! Obrigado por estarem aí!

quarta-feira, 18 de março de 2020

No Caminho dos Peregrinos ... no dia -1 de uma longa noite...

But the light will come after the darkness ...

No primeiro trimestre de 2019, às minhas habituais "aventuras" passei a associar uma vez por outra umas caminhadas semi-urbanas, a que chamei genericamente "Into the light ", por incluir inúmeras vezes o troço em que a várzea do Trancão faz parte do Caminho dos Peregrinos, o Caminho de Santiago e de Fátima. Muitas dessas caminhadas, ou passeios, não justificaram aliás um post específico nestas minhas singelas memórias da vida ao ar livre.
Contudo ... nunca imaginei que um trilho que já percorri "mil vezes" viesse a ser palco de uma catarse como a de hoje ... uma tentativa de libertação do corpo e da alma ... da negra sombra que a pandemia Covid-19 veio lançar sobre o Mundo, qual manta que nos quer abafar e sepultar. No dia -1 para entrarmos no estado de emergência que seria indesejável, quando estamos em guerra contra um inimigo invisível ... estes 12 km pela várzea do Trancão e regresso souberam a catarse ... a libertação ... a recarregar baterias. Quando há pouco mais de uma semana mergulhei na "minha" Malcata ... quando na 5ª feira regressei de Vale de Espinho com a estrela que me acompanha há quase meio século ... estávamos ainda longe, muito longe, de imaginar a dimensão da catástrofe que estava já a abater-se também sobre nós ... depois da China ... depois de Itália ... depois de Espanha ... depois de todo o Mundo. No sábado, teríamos tido a caminhada comemorativa do 35º aniversário dos Caminheiros Gaspar Correia ... que foi naturalmente cancelada ... como canceladas estão praticamente todas as actividades que não são prioritárias. Parafraseando os galegos Fuxan os Ventos ... "o noso esprito" entrou numa longa "noite escura e bretemosa" ... sem dúvida a maior praga de que há memória desde há pelo menos um século. Mas temos todos de acalentar a esperança de que, nessa longa noite ... "vese un raio de sol, vese unha rosa, que abrirá, no mencer, novos camiños".


Várzea do Trancão, 18.Março.2020, 13h55 ... no Caminho da Esperança
Na iminência de ser decretado o estado de emergência ... terei sido louco em sair de casa? Não creio. Esta guerra não se trava no ar que respiramos. Hoje mesmo pode-se ler que França e Bélgica aconselham a actividade física ao ar livre. O que ninguém aconselha é o "espectáculo" que vi por exemplo numa roulotte-bar na Portela da Azóia ... com numerosos clientes em amena cavaqueira na respectiva esplanada! É por estas e outras que concordo com o estado de emergência. Deveria ter sido decretado ... anteontem...

Há vida no Trancão que um dia não a teve ... haverá Vida
para Viver depois desta "noite escura e bretemosa" ...
Into the light ...
No Caminho dos Peregrinos ... não vi evidentemente ninguém. Por esta altura ... nos últimos anos tenho estado em contagem decrescente ... este ano para um Caminho muito improvável. Podemos adiar os Sonhos ... mas não podemos adiar a Vida!
Sozinho ... percorrendo o Caminho "mil vezes" percorrido ... apeteceu-me gritar. Gritei mesmo, a plenos pulmões ... eu diria ... que URREI ... run wild, run free...! Eu próprio me assustei com os meus "gritos de guerra". Foram os pulmões a dizer NÃO ao vírus ... a esse inimigo invisível, que não passa de um código ... codificado pelos mistérios do Universo...

A Primavera aproxima-se, nas colinas de Santa Iria de Azóia
Percorri o Caminho de Santiago e Fátima até à Quinta do Monteiro Mor. Depois, na íngreme subida para a Portela da Azóia ... até as pernas me pareceram agradecer o desentorpecimento a que foram obrigadas. Indiferentes aos vírus e ao Mundo um pouco a desabar ... um rebanho de cabras pastava nas colinas, oferecendo aos ares a música dos seus chocalhos.
Não ... elas não transmitem os coronavírus...
O regresso, naturalmente, foi uma caminhada muito mais urbana, pelos bairros. Aqui sim, todo o cuidado seria pouco. Não tocar em objectos, não passar a menos de 1,5m de outras pessoas. Mas ... se tivesse chegado de algures e não soubesse desta praga que nos assolou ... muito sinceramente creio que não notaria nada. O movimento de pessoas e de carros era o habitual ... e já vos fiz o "retrato" da roulotte-bar da Portela da Azóia...

Duas imagens de esperança ...  the light will come after the darkness
Com 12 km percorridos em duas horas e meia, pouco depois das quatro da tarde estava em casa. E esta crónica ficaria incompleta se não referisse aquela que foi, talvez, a única diferença notória que encontrei nas ruas: ao cruzar-me com outras pessoas, ouvi muito mais do que habitualmente ... "boa tarde"! Será que vai ser verdade o teor de um texto que tem circulado bastante nas redes sociais?...
"Algo invisível chegou e colocou tudo no lugar. De repente os combustíveis baixaram, a poluição baixou, as pessoas passaram a ter tempo, tanto tempo que nem sabem o que fazer com ele, os pais estão com os filhos em família, o trabalho deixou de ser prioritário, as viagens e o lazer também. De repente, silenciosamente, voltamo-nos para dentro de nós próprios, entendemos o valor da palavra solidariedade...
Bastaram meia dúzia de dias para que o Universo estabelecesse a igualdade social que se dizia ser impossível de repor. O MEDO invadiu todos...
Que ao menos isto sirva para nos darmos conta da vulnerabilidade do ser humano. Não se esqueçam: BASTOU MEIA DÚZIA DE DIAS"
E assim, esta noite, na véspera do estado de emergência ... antes de irmos dormir ... pensemos em quando nos abraçarmos de novo ... em quando as coisas mais simples nos vão parecer uma festa ... em quando regressarmos juntos aos cafés, às conversas, às fotos em que nos apegamos uns aos outros ... em quando regressarmos juntos aos nossos Sonhos... Pensemos que isto vai ser apenas uma memória ... quando a normalidade nos parecer um presente inesperado e lindo! Então ... vamos Amar tudo o que até agora nos pareceu inútil. Cada segundo será valioso ... os mergulhos no mar, o pôr do sol, os brindes, os abraços, as jantaradas, as gargalhadas ... as caminhadas campos fora ... Peregrinando.
Voltaremos a rir-nos juntos, sim ... poderemos até um dia rir-nos disto. Agora ... não! Agora ... vamos acreditar que amanhã ... o hoje ... já será ontem ... VAMOS ACREDITAR NO FUTURO!

segunda-feira, 9 de março de 2020

Um mergulho K40 na "minha" Malcata ... 1319m D+/1175m D-

Travessia Sabugal - Meimão - Quinta do Major - Vale de Espinho

Já vão longe os anos em que comecei a desbravar as bredas da Malcata e das Mesas. A pé, de bicicleta e de "burro" - o meu velho UMM - os cantos e recantos destas terras e serras foram passando a ser cada vez mais ... meus.
Sabugal, 09.Março.2020 - Rente ao Côa e pela Ermida da
Srª da Graça, saio à (re)descoberta da "minha" Malcata
Lugares como a Quinta do Major, os Moinhos do Bazágueda, a Marvana de todas as lendas ... aldeias como o Meimão (que viu nascer a mãe da minha estrela) ou a Malcata ... aquelas colinas ondulantes passaram também elas a conhecer-me. Já não vi linces, naquela que foi a serra que os celebrizou pelas piores razões, mas ainda vejo javalis, oiço cantar os tentilhões, vejo levantar as perdizes, sigo o esvoaçar dos grifos. Já até dormi na serra ... mas agora há já algum tempo que não "mergulhava" a sério na "minha" Malcata, numa jornada a solo de longo curso ... dura q.b. ... porque a Malcata é uma verdadeira montanha russa de relevo ... e de emoções.
Em mais uma das habituais estadias em Vale de Espinho ... no canto dos meus Sonhos nasceu de novo a Vontade de um longo desbravar ... e do Sonho ao projecto mediou apenas o estudo do percurso a palmilhar. Sozinho? Não ... na Natureza nunca se está sozinho ... estão comigo, sempre, os sons, os cheiros, as luzes, os brilhos ... daquela que é uma das maiores áreas naturais deste nosso rectângulo no ocidente europeu.
E assim ... de Vale de Espinho ao Sabugal fui na carreira da "Viúva Monteiro". Eram 8h45 quando comecei a caminhada; tarde demais para o meu gosto, mas estava sujeito ao horário da carreira ... e deste modo a "aventura" terminaria previsivelmente ao nascer da super Lua, como se veio a concretizar. Rente ao Côa, comecei por me dirigir ao Santuário da Senhora da Graça, para mais à frente cruzar a estrada de Malcata e começar a descer para o vale da Ribeira do Arrebentão, já em terras de Penamacor e, consequentemente, na Beira Baixa. O primeiro rumo era a aldeia do Meimão.
Não ... não estava sozinho...
Ao longo do vale do Arrebentão, descendo a ribeira rumo à velha aldeia do Meimão
A aldeia do Meimão é a aldeia natal da mãe da minha companheira da aventura da Vida. Ali cresceu, mas Vale de Espinho fez também sempre parte da sua vida; no Meimão ... deixou memórias. E mal sabia eu que, acompanhando a Ribeira da Meimoa para montante ... eu ia entrar num paraíso onde encontrei uma outra filha daquela aldeia perdida nas faldas da Malcata.

Igreja do Meimão e, à direita,
o Páteo Cerdeira, berço da mãe da minha
companheira de "aventuras"
A Barragem da Meimoa e o vale da Ribeira do mesmo nome, onde os verdes lameiros são belas pastagens
O vale da Ribeira da Meimoa é um autêntico paraíso, onde as águas correm e cantam, alimentando os lameiros verdejantes ... e alimentando velhas lendas. Dizem as gentes mais antigas do Meimão que no lugar da Patada da Mula, quando Nossa Senhora percorria o mundo, a mula escorregou ao passar pelo local, ficando a pata gravada na rocha. Os mais crentes dizem que se deu então um milagre: Nossa Senhora subiu ao céu e a mula aparelhada com um selim em ouro foi soterrada pelas terras que deslizaram encosta abaixo. Não vi, por isso, vestígios do selim em ouro ... nem da patada na rocha.
Sítio da Patada da Mula, 11h25 ... onde segundo a lenda a mula de Nª Senhora deixou uma pata gravada na rocha
Entre a Patada da Mula e os Forninhos, ali nos verdejantes lameiros da margem direita da ribeira ... surgiu-me um quadro de romantismo e bucolismo que teima em subsistir: uma pastora, com um rebanho de cabras e o seu cãozito, ali estava, sozinha, sob o peso dos seus 78 anos ... a lembrar-me a saudosa ti Mari Zé Salgueiro, que encontrei pela primeira vez há 14 anos, à beira do Bazágueda. Como então escrevi, são "exemplos vivos de uma gente simples, que dorme em paz e sem sonhos ... por quem Freud jamais teria existido e inventado a psicanálise!"
Uma pastora do Meimão, no sítio dos Forninhos:
"uma gente simples, que dorme em paz e sem sonhos..."
Atravessei a ribeira quase logo a seguir ... com a sensação de que se pudesse continuar ali a falar ainda agora lá estaria. E trouxe comigo algumas palavras daquela simpática pastora ... como aquele "eu vi logo que o senhor tinha cara de ser boa gente" ... vindo do mais puro daquela alma pura.
Não me tinha apercebido, felizmente ... da dimensão e inclinação da subida que tinha a seguir pela frente: dos Forninhos ao cume dos Concelhos ... dos 600 aos 1000 metros em 3 km ... até aos 800 metros no primeiro quilómetro. Parecia-me ... uma subida interminável...
Ribeira da Meimoa nos Forninhos ...
... e a íngreme e pedregosa subida para os Concelhos
Para trás, além da ladeira que ainda subo ... já fica uma "vista aérea" dos vales e das colinas da Malcata
Para a frente, a sudeste ... ao fundo já se destaca o morro de Monsanto
Geodésico dos Concelhos (1007m alt.)
Cartaz da RNSM, no Cabeço dos Concelhos
Lá ao fundo está a Quinta do Major ... e foi mesmo
pelo meio deste mato que tive de descer ... tipo javali...
Uma pequena paragem junto ao cartaz da Reserva, para o já apetecido reforço alimentar ... e agora era finalmente a descer, para o Cabeço do Pão e Vinho (760m alt.). Mas ... o estradão que eu conhecia e pelo qual já conduzi, há anos, grupos de caminheiros e amigos, está abandonado e o mato vai tomando conta dele. Diversos pinheiros caídos, atravessados no caminho ... não me faziam de qualquer modo imaginar o que ia viver na descida do Pão e Vinho para a Quinta do Major. A ideia era descer pelo corta fogo que já várias vezes percorri ... mas ... onde estava o corta fogo? Não estava! Já verifiquei que acabei por descer um pouco mais a poente, mas não vi vestígios dele, nem no cume nem em baixo, junto ao Ribeiro da Casinha. A descida não foi portanto a corta mato ... foi, em muitos pontos, autenticamente a furar mato. Não o vi ... mas ouvi a restolhada de um javali que deve ter pensado que andava ali um extraterrestre...
Ribeiro da Casinha e ruínas da casa que lhe deu o nome ... no emaranhado de mato por onde desci
Pouco depois das três e meia estava na Quinta do Major, à beira do Bazágueda. Quantas memórias de gentes de Vale de Espinho ali estão "enterradas". Da velha eira já só restam ténues vestígios. A grande casa senhorial lá jaz em ruínas ... e a Casa Abrigo da Reserva lá continua, fechada e abandonada. O Estado ... há anos que opta por manter estas casas ao abandono, ao longo de sucessivos governos ... de sucessivas tendências. É triste, muito triste...

Quinta do Major ... memórias perdidas num tempo sem Tempo ... em vários tempos...
O paraíso do Bazágueda, junto à Quinta do Major ... e antes de eu iniciar o regresso a Vale de Espinho
Da Quinta do Major a Vale de Espinho são sensivelmente 15 km ... maioritariamente a subir até à Lomba, pelo alto da Mina, Ladeira Grande e Clérigo (Crelgo, na gíria de Vale de Espinho). As minhas pernas e pés já denotavam o efeito dos desníveis acumulados e da muita pedra ... as subidas já eram feitas a menos de metade da velocidade. Acompanhando a linha de fronteira, o Locus registou os 30 km pouco antes da Ladeira Grande; faltavam 10 km para Vale de Espinho.
Subida da Quinta do Major para a cumeada fronteiriça, 16h15
E chego às colinas ondulantes que bordejam com terras de Valverde del Fresno. Ao fundo a sempre mística Marvana
Próximo do Clérigo (à esquerda), com as Ellas ao fundo ...
e na Lomba, 18h00: vai começar a descida final para Vale de Espinho
Às seis da tarde estava na Lomba, no limite das Beiras e onde a raia de Espanha inflecte para leste. Faltavam 5 km para Vale de Espinho ... e agora maioritariamente a descer. O Sol preparava-se para se esconder detrás dos últimos relevos da Malcata ... e a super Lua preparava-se para nascer a ocidente. Em sensivelmente uma hora ... regressei ao ninho, já na penumbra do anoitecer ... com 39,52 km nos pés ... cansado, dorido ... mas realizado. Tinha descido, subido, descido ... tinha mergulhado a fundo, de novo, nas bredas da minha Malcata.
Os últimos raios de Sol escondem-se atrás das colinas da Malcata ...
... e, já na descida para Vale de Espinho, nasce a super Lua a oriente (18h37)
Vale de Espinho à vista, 18h45
Os números desta aventura:
Duração total: 10h e 16m
Total de paragens: 2h e 3m
Média geral: 3,9 km/h
Média em movimento: 4,8 km/h
Desníveis acumulados: 1319m D+ / 1175m D-
Altitude mínima: 573m / máxima: 1007m
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