À entrada do excelente Abrigo de Montanha em que a
Associação Péd'Rios transformou a antiga Escola Primária de
Germil, aldeia "perdida" na encosta sudoeste da
Serra Amarela, fui encontrar a célebre frase "
Happiness is only real when shared ", ligada às aventuras, à vida (e à morte...) de Chris McCandless ("
Into the wild "). Realmente ... a vida é feita de partilhas! Da partilha de paixões, momentos, vivências. Da partilha de amizades. Da partilha da felicidade!
Foram sem dúvida fantásticos momentos de partilha que vivi no último fim de semana de Novembro, na
Serra Amarela ... na senda de Miguel Torga. Instintivamente levado sempre mais para a serra do
Gerês do que para a Amarela, neste 2014 já tinha contudo percorrido por duas vezes as "
estradas da raposa matreira", como Torga chamou aos trilhos da Serra Amarela.
O desafio, lançado por um dos irmãos do "
Caminho da Aventura" e secundado pelo outro, era percorrer na íntegra o novo
GR34, um trilho de grande rota inaugurado em Junho pelas Câmaras de
Ponte da Barca e
Terras de Bouro. E assim, pouco depois das 18:30h de sexta feira, começaram-se a reunir no
Abrigo que nos serviu de base os
16 participantes nestes dois dias fantásticos de comunhão com a Serra, com nós próprios ... com a vida! Brindemos, como o fizemos várias vezes, à felicidade, à amizade, à Vida!
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de Montanha 5 *****... |
A "aventura" começava aos primeiros raios de Sol de sábado, junto ao paredão da Barragem de
Vilarinho da Furna. A primeira parte da "aventura" coincidiu com a do igualmente memorável fim de semana de
Abril; subindo o
rio da Furna, chegámos aos belos prados de
Toutas e das
Coriscadas, com o imponente
Pé de Cabril do outro lado do
vale do Homem. E se em Abril dominavam os verdes e o desabrochar da vegetação primaveril, agora fazíamos parte de um maravilhoso quadro de cores outonais ... num belo dia de Sol, depois da muita chuva dos dias anteriores.
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29.Nov., 8:00h - Junto à Barragem de Vilarinho da Furna ... tinha começado uma "aventura" fabulosa! |
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Há magia nestes locais |
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(Porto da Furna) |
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Vamos subir o vale do Rio da Furna ... |
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... rumo ao Ramisquedo: Louriça à vista! |
A
meio da manhã estávamos no
Ramisquedo. Frente ao sembre belo bosque do
Sonhe, o cenário abria-nos o pano para as três guardas avançadas do vale do
Cabril, a
Cruz do Touro (ou Eiras),
Entre Esteiros e
Ruivas ... e chegámos ao estradão proveniente do Lindoso. Há
menos de dois meses, este troço Ramisquedo - Sonhe foi feito em sentido contrário ... no alvorecer de uma manhã chuvosa...
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Ramisquedo ... orquestra-se um hino à Natureza! |
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Bosque do Ramisquedo |
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E no Ramisquedo ... as "portas" abrem-se para o vale do Cabril |
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As "três damas" que dominam o Cabril |
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Vale do Lima e terras de Entrimo |
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E subimos do Sonhe para a Louriça |
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Na Louriça (1359m alt.) ... de onde se domina o mundo... |
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O vale do Alto Homem, da Louriça |
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Ao longo do Muro |
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Descida do Muro para noroeste |
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Azevinho
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Adicionar legenda |
Da
Louriça e do
Muro, descemos para noroeste, rumo à aldeia de
Ermida, passando pelos "fornos" (pequenos abrigos de montanha) de
Bentozelo e
Martinguim e pelo espectacular vale cavado do
Ribeiro da Cova. Naquela paisagem a perder de vista, num dia de eleição, estávamos autenticamente a viver o que Torga terá sentido, ao escrever nos seus Diários, em Julho de 1945:
“A Serra Amarela é um dos ermos mais perfeitos de Portugal .... as suas dobras são largas, fundas e solenes. Sem capelas e sem romarias, cruzam-na os lobos, os javalis e as corças .... mora nela o sopro claro das livres asas e o riso aberto dos grandes sóis. .... Um pé de azevinho aqui, urzes milenárias acolá, um carvalho numa garganta, nenhum coração de entre o Douro e Minho pode deixar de se sentir aquecido e reconfortado em semelhante chão.”
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Abrigo de Bentozelo |
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"Lançamo-nos?..." |
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Vale do Ribeiro da Cova em primeiro plano, com o vale do Lima e as Serras do Soajo e da Peneda ao fundo |
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Vamos descer para o Ribeiro da Cova |
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"... as suas dobras são largas, fundas e solenes ..."
Sobre a Branda de Bilhares, da aldeia de Ermida
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Às duas e meia da tarde estávamos na
Branda de Bilhares. As brandas são núcleos habitacionais temporários, cujos terrenos são usados para a agricultura ou alimentação do gado, durante a primavera / verão, quando essas áreas de montanha apresentam condições mais favoráveis a essas actividades humanas. Esta transumância, imposta pelas condições agrestes do meio, tem-se contudo perdido, pelo que a maioria das brandas se encontram praticamente abandonadas, como a de Bilhares. Correspondem às
brañas asturianas e do noroeste de Leão.
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Da branda de Bilhares à aldeia de |
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Ermida ... atravessa-se um bosque mágico! |
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Aldeia de Ermida |
A aldeia de
Ermida é outra aldeia "perdida" na falda ocidental da
Serra Amarela. Em 1981, na parede interior de uma "corte" de gado, foi encontrada uma escultura pré-histórica - uma estátua-menir - hoje exposta no núcleo museológico local.
De
Ermida à nossa "base" em
Germil, faltavam-nos quase 7 km de serra ... mais uma vez subindo e descendo montes e vales, perdidos na imensidão daqueles ermos. Tínhamos de "lutar" contra o tempo, já que o astro-rei se começaria a recolher antes das 17:30h.
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O vale do Lima, próximo de Ermida |
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A caminho da Ribeira da Carcerelha |
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Cascata da Carcerelha |
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Rumo |
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ao Sol... |
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Cores de Outono, a caminho de Germil |
E, a caminho de
Germil ... ia começar um fabuloso espectáculo, um extraordinário fim de tarde com um pôr-do-Sol multicolor, a transportar-nos para um sonho ... um sonho real que ali estávamos a viver.
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Germil à vista |
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O fabuloso espectáculo do pôr do Sol, ao chegar a Germil |
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A Lua de Germil |
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São 17:26h e temos 25 km nos pés ... entramos em Germil |
Quase cronometricamente, entramos em
Germil ao lusco fusco. O Sol deitara-se ... a Lua elevava-se para uma noite de estrelas. Germil, tal como a Ermida, preserva ainda de forma quase incólume a traça da arquitectura popular que tão bem caracteriza este tipo de povoados. E nós ... recolhemos ao nosso abrigo da
Associação Péd'Rios ... onde nos esperava uma mulher cuja alma um dia há-de pairar sobre estas montanhas mágicas do Gerês, Amarela, Peneda, Soajo. Chamemos-lhe Maria simplesmente,
White Angel,
Alma de Montanhista ... a
Dorita traz com ela a paixão pela partilha, pela vivência destas serras que aprendeu a amar, destas serras que conhece e que a conhecem ... a paixão pela Vida, até porque ...
"A vida é feita de nadas,
de grandes serras paradas,
à espera de movimento ...."
(Miguel Torga)
A Dorita tem sem dúvida esse movimento a que se referia Torga! Companheira já de várias "aventuras", vividas nas serras que tão bem conhece, em Outubro do ano passado havia-a apresentado a dois companheiros que viriam a ser meus irmãos do "
Caminho da Aventura", presentes neste fabuloso fim de semana; outra companheira também igualmente já a conhecia; e todos os restantes ficaram bem a conhecer ... esta boa Alma das montanhas. E, com ela e dois amigos (um deles o Presidente da
Associação Péd'Rios), finalizámos o dia com um opíparo jantar, confeccionado por dois galardoados "cozinheiros" do grupo, com base em produtos levados um pouco por todos os elementos. Prato principal: um saboroso arroz de enchidos e grelos ... "regado" com o melhor vinho do Universo e arredores ... "
Quinta dos Termos", pois claro...
J
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No belo jantar do fim de dia de sábado, com a
Alma de Montanhista ... e brindemos à vida e à amizade!
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Domingo ... tínhamos os restantes cerca de 11 km para percorrer. Um despertar mais tardio permitiu-nos pela primeira vez ver de dia a envolvência do nosso magnífico abrigo.
Mas como as histórias também são feitas das pequenas estórias, o dia não começou sem que um certo despertador tocasse mais cedo do que a prevista alvorada. Quem não gostou foi a Heidi, a simpática cadelita que acompanha a Dorita em muitas das suas deambulações; se tivesse sido filmada a ladrar para o telemóvel que ecoava um sonoro cantar de um galo ... teria dado um
clip de vídeo digno de concurso...
J
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30.Nov., 9:05h - Não está o grupo completo, mas quase ... incluindo a Heidi. Terá ela também uma Alma de Montanhista? |
Entretanto, três companheiros tinham despertado mais cedo, na tentativa de refazerem parte do percurso da véspera, procurando um casaco que um deles havia perdido na serra. Os restantes, de Germil subimos a
Cutelo, mais uma das pequenas aldeias da encosta sul da
Serra Amarela.
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Germil vista da Serra |
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E subimos e subimos, rumo agora ao Sol nascente |
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Dominando o vale de Germil e toda a encosta da serra |
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Um reino de verde e de pedra... |
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Uma porta para o céu... |
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Aldeia de Cutelo |
Encaixada nas encostas de
Mixões da Serra, dos rios
Cabril,
Parada e
Moura e do pequeno ribeiro de
Brufe,
Cutelo é mais uma aldeia tipicamente serrana que conserva os espigueiros, eiras, sequeiras, relógios de sol e moinhos de água, num cenário rural de grande harmonia. Ultrapassada a aldeia, íamos voltar acima dos 1100 metros de altitude, com os olhos e a alma postos de novo num horizonte de fabulosas panorâmicas, passando a sul do geodésico da
Carvalhinha, rumo à
Chã do Salgueiral.
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Na imensidão da Serra, subindo de Cutelo à Chã do Salgueiral |
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Próximo da Chã do Salgueiral, abaixo das Casarotas |
"Um dia pela Serra Amarela, a percorrer vezeiras, a visitar fojos de lobos e a quebrar a cabeça no enigma de quinze ou vinte casarotas perdidas numa chapada."
Miguel Torga, numa visita à Serra Amarela, em 25 de Julho de 1945
As
Casarotas - onde já tinha estado quando da
autonomia de Abril passado - são cerca de duas dezenas de construções em pedra, que fazem lembrar dólmenes ou antigas cabanas de pastores; contudo, a sua construção e utilização poderá estar associada à defesa da fronteira da Portela do Homem, servindo de apoio às tropas. Agora, acabámos por passar ligeiramente a sul daquelas vetustas construções, contornando as nascentes do
Ribeiro da Gemessura.
Entretanto, apesar de o dia continuar soalheiro, os cumes da serra começavam a aparecer cobertos por espessos mantos de nuvens, prenunciando nevoeiro e alguma eventual borrasca que os três companheiros da "equipa de resgate" do casaco tivessem de enfrentar...
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E ... Albufeira de Vilarinho da Furna à vista! |
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Descida de Mata Porcos para Candeiró |
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A Louriça vigia-nos |
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Aqui ... quase levantávamos voo... |
Domingo foi um dia de fortes ventos ... mas nesta descida para o
Peito de Gemessura e deste para a albufeira de
Vilarinho ... íamos voando! Os deuses da
Louriça sopravam a bom soprar para o vale do
Homem, empurrando-nos para a frente ou para os lados, numa luta titânica para nos mantermos no rumo.
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Ao longo do Peito de Gemessura |
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Garranos, na vertente do vale da Gemessura |
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Vale do Ribeiro de Gemessura |
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Um encontro na serra ... com uma "equipa de resgate...J |
Quando estamos na luta contra o vento ... vemos aparecerem ao nosso encontro os companheiros que tinham ido fazer o "resgate" do casaco...
J. E até essa foi uma estória para a história deste fim de semana: acima da branda de Bilhares, onde voltaram, não o encontraram; pensando vir ao nosso encontro de novo pelo alto da Serra, viram-se contudo a aproximar da eventual borrasca que nos havia preocupado e desceram ... e ao descerem lá estava o casaco, como que pendurado num galho! O nevoeiro e a borrasca indicaram-lhes o rumo a seguir...
J. E depois, já de casaco resgatado, vieram ao nosso encontro de carro, subindo a pé desde a albufeira de
Vilarinho.
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Descida final, para a Barragem de Vilarinho da Furna |
Pouco depois da uma e meia da tarde, estávamos todos de volta aos carros, com 11 km percorridos desde
Germil, completando 36 km nos dois dias ... com mais de 2300 metros de desnível acumulado.
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Paredão da Albufeira de Vilarinho da Furna, 30.Nov.2014 - Os "17 magníficos"... (Foto: Joaquim Gomes) |
E termino como comecei: "
Happiness is only real when shared ". Este foi, sem dúvida, um fim de semana de partilha. A "família" que tenho construído na paixão por um certo "
Into the wild " tem aumentado exponencialmente. Não conhecia todos os elementos do grupo ... mas dos que não conhecia tenho agora a sensação de que já os conhecia há anos! Obrigado, companheiros ... obrigado, amigos!