terça-feira, 27 de julho de 2021

De Santander a Ponferrada, pelos Caminhos de Liébana, Vadiniense e Olvidado (2)

Como relatei na crónica anterior, na manhã do meu 5º Dia de Caminho recebi, no secular Mosteiro de Santo Toribio de Liébana, o meu certificado de ali ter chegado em peregrinação, venerando o Lignum Crucis. Terminava assim o Caminho Lebaniego ... mas no mesmo dia continuava a minha "aventura" rumo a Espinama, Fuente De ... e ao coração dos Picos de Europa.

Camino Vadiniense
24.Jul.2021, 10h35 - Próxima de Santo Toribio de Liébana, a Ermita de San Miguel, sobre Turieno e o vale do Deva.
Várias vezes aqui subi com alunos, nos tempos das excursões pelos Picos de Europa
Do Santo Toribio e da Ermida de S. Miguel, desci a Congarna e à estrada Potes - Fuente De ... que mais uma vez várias vezes percorri nas duas últimas décadas do século passado; estava de novo a solo, o meu quase homónimo e o seu amigo espanhol só os voltaria a ver ao fim do dia, em Espinama. Mas deixaria a estrada antes de Camaleño, para subir a Redo e a Mogrovejo, esta última ... um autêntico pueblo de película. O piso? Pois ... o alcatrão continuava a alternar com muita pedra solta...

O rio Deva e o respectivo vale, entre Congarna e Camaleño
Quando não são em alcatrão ...
são assim os trilhos...
Mogrovejo ... un pueblo de película ... e de descanso num bar...
De novo junto ao Deva, havia agora que subir o seu curso até Espinama. Pouco depois de Cosgaya, o trilho entra felizmente em frondoso bosque ... onde o piso de terra e erva fofa foi um verdadeiro bálsamo para os pés. E lá ia eu, ouvindo música cantabra da muita que tenho gravada ... cantando eu ... ou ouvindo o cantar das águas que corriam ao meu lado, o cantar da passarada alegre ... da Natureza.
Cosgaya ... e depois ... um bálsamo para os pés, com a erva fofa, as águas do Deva ... e as sandálias novas
15h40 ... quase em Espinama
Antes das quatro estava em Espinama. À falta de lugar no Albergue, tinha reservado previamente o Hostal Puente Deva, uma boa alternativa ... e com um esplêndido restaurante e bons preços. Os dois Zés (Calisto e Cabrera, comigo éramos três Zés) chegaram entretanto ... e lá foram umas 1906.

Hostal Puente Deva / Restaurante Vicente Campo ... um esplêndido relax em Espinama
É preciso alimentar
o corpo ... e o espírito...
 
O dia seguinte era domingo ... mas não era um domingo qualquer ... de um mês qualquer ... de um ano qualquer. O dia seguinte era 25 de Julho ... Dia de Santiago ... em Ano Jacobeo ... e o Universo tinha designado que, por acaso (ou talvez não...) ... a etapa rainha deste meu Caminho Vadiniense coincidisse com o Dia de Santiago.
É um quadro? É um Sonho? ... Não ... pouco passa das sete da manhã de 25.Jul.2021 e é o maciço central dos Picos de Europa, visto da subida aos céus de Valcavao
Subida de Espinama (860m alt.) às Horcadas de Valcavao (1780m alt.). É preciso legendar este esplendor?...
Nas Horcadas de Valcavao tinha deixado para trás a Cantabria e entrado em terras leonesas. Há muitos anos, já por aqui tinha andado com alunos, em veículos todo o terreno que nos foram buscar a Caín, no final da mítica Ruta del Cares. Lá em baixo, a poente, estava Santa Marina de Valdeón, no vale do rio El Arenal, afluente do Cares. Tudo à minha volta era Montanha, num êxtase que convidava à entrega, à meditação, à catarse. Nesse êxtase ... aparecido do nada surgiu ao pé de mim um cão ... grande ... dócil ... sem aspecto de passar fome mas que devorou os 4 sobaos pasiegos que lhe dei...
Santa Marina de Valdeón aos meus pés, no centro da apoteótica conjuntura dos Picos de Europa
E quando eu páro para me entregar à Montanha
... do nada surge este amigo patudo e dócil
De onde vieste? Quem és?
Para onde vais?...
Receoso que ele me quisesse seguir até longe, como há uns anos me aconteceu em Somiedo, arrumei as coisas e comecei calmamente a descer ... mas o estranho e dócil amigo de 4 patas não manifestou qualquer intenção de me acompanhar. Ouviu lá longe um outro cão a ladrar ... e desapareceu tão inesperadamente como apareceu. Até ver...
Rumo ao Puerto de Pandetrave, agora a descer. O meu inesperado amigo ficou para trás ... de certeza?...
Mais de 1 km abaixo, de novo surgido do nada ... lá estava ele...
Por onde foi, para me surgir de novo no Caminho mais de 1 km à frente? Porquê? De novo com a mesma calma ... e com a mesma calma ali ficou, deitado no Caminho ... provavelmente à espera de outros peregrinos. Mais tarde, a Isi e o Jesus disseram-me que o tinham visto mais ou menos no mesmo local! Seria aquele cão ... Santiago? ...
Pouco depois do meio dia estava no Puerto de Pandetrave, a 1566 metros de altitude. A partir dali, embora continuando no seio da Montanha e de paisagens fabulosas ... tinha estrada, alcatrão. Ai! Ambos os pés já tinham Compeeds; o esplendor da Montanha, as alturas de Valcavao, tinham feito esquecer um pouco a dor ... mas a fastidiosa descida em alcatrão prometia ser dura ... e foi. Mas Santiago dizia-me ... "tu consegues"...

Puerto de Pandetrave (1566m alt.). A partir de aqui, seguindo o vale do Puerma ... era alcatrão...
O almoço foi junto a esta pontesinha ... com os pés na frescura da erva verde
Mas antes das três da tarde estava em Portilla de la Reina e no respectivo Albergue
Maravilhosa comida caseira,
no Albergue de Portilla
Os dois dias seguintes seriam a ligação a Cistierna, eixo comum ao Caminho Vadiniense e ao Camino Olvidado. Duas etapas de 28 km cada, a primeira caracterizada em grande parte pelas belas paisagens do rio Yuso e da Barragem de Riaño ... mas também pela muita estrada ... muito alcatrão.

Igreja de Barmiedo de la Reina, 26.Jul.2021, 8h30
A hora matinal permite ver o que
provavelmente não via a outras horas...
Próximo de Boca de Huérgano e
Ermida de Santo Tirso
As paisagens alteradas pela Barragem de Riaño, espelhando nas águas as montanhas em redor
Espigueiro e Igreja Românica de Nossa
Senhora do Rosário, Riaño
Tanto alcatrão ... e
os pés a pedirem tréguas...
A jornada iria acabar em Horcadas, pequena aldeia entre dois braços da barragem de Riaño, entre os rios Yuso e Esla. Prevendo que não houvesse nada em Horcadas, em Riaño comprei uma tortilla pronta a aquecer ... que foi o meu jantar na Casa Rural "Nevada". É uma casa rural que, não estando a ser utilizada para turismo, dá apoio a peregrinos ... e que luxo de casa! Cheguei pouco depois das duas, alone; a chave estava numa caixa junto à porta ... e alone fiquei durante grande parte da tarde.

Casa Rural "Nevada", Horcadas, 26.Jul,
15h30 - Um oásis de relax
A hipótese de alojamento nesta Casa Rural tinha sido acertada pela simpática hospitaleira do Albergue de Portilla de la Reina. Sabia, por isso, que a Isi e o Jesus iriam partilhar comigo este belíssimo local de repouso; e assim foi; chegaram a meio da tarde ... e foi a partir deste dia que passámos a conversar e a conviver mais.
Já sabia que vinham desde Irún, que andavam portanto no Caminho há bastante tempo; fiquei a saber que depois do Lebaniego / Vadiniense iriam percorrer o Caminho do Salvador (pela 3ª vez!) e o Primitivo! Verdadeiros Peregrinos, respirando Amor e entrega ... verdadeiros ángeles del Camino.
No dia seguinte saí mais cedo ... e deixei-lhes a mensagem à esquerda ... escrita em papel de cozinha. Quando nos voltámos a encontrar ... agradeceram do fundo da Alma ... que nunca lhes tinha acontecido nada semelhante ... que guardaram religiosamente o papel e o guardarão nas suas recordações dos Caminhos 💖!
27.Jul.2021, 7h35, junto ao Rio Esla e ao paredão da Barragem de Riaño
O meu 8° Dia seria entre Horcadas e Cistierna: 28 km quase sempre a acompanhar o Esla. Todos os dias são especiais, mas uns eu já previa que o fossem. Este 8º dia ... foi uma agradável surpresa; e nem eu sei explicar porquê; talvez porque não contava com uma envolvência tão esmagadora da Natureza ... talvez porque o Universo me estivesse a dizer algo ... talvez...

Ao longo do Esla, a sul
da Barragem de Riaño
Caminho Real do Esla, que acompanharia quase toda a etapa
Não foi o único dia, mas várias vezes ao longo desta manhã cantei a plenos pulmões o velho Cântico dos Peregrinos de Santiago: "Tous les matins nous prenons le chemin / Tous les matins nous allons plus loin / Jour après jour, la route nous appelle / C’est la voix de Compostelle / Ultreïa! Ultreïa! Et Suseïa!"
Tudo me parecia grande e alto. E eu, pequeno e frágil, entregava-me às forças do Universo. Ultreïa 🙏
Ermida de Santa María de Pereda, próximo de Crémenes
Nascente de águas férreas,
próximo de Aleje
Imagens de uma jornada inesperadamente mágica, descendo o Esla
Mais para sul, à medida que me aproximava das antigas cuencas mineras, a paisagem tornou-se mais monótona, mas antes das três da tarde estava em Cistierna. Os meus pés precisavam destas horas de descanso ... e o dono dos pés prefere sempre chegar a tempo de gozar um pouco o albergue, ou hostal, e a terrinha onde fica. Em Cistierna ... o albergue estava em quarentena, devido a um peregrino alemão ter acusado positivo para a covid. A alternativa foi o acolhedor Hostal Moderno ... onde nos juntámos todos: os três Zés, a Isi, o Jesus e o Luis, um peregrino espanhol a percorrer o Camino Olvidado desde a sua origem, em Bilbau.
Antiga cuenca minera antes de chegar
a Cistierna, acompanhando o rio Esla
Cistierna, 27.Jul., 14h40, em fim de etapa ... e, para mim, em fim do Caminho Vadiniense
Quanto à minha "aventura", em Cistierna deixaria o Camino Vadiniense, que vai ligar ao Francês em Mansilla de las Mulas, para onde continuaram o Calisto e o seu amigo, a Isi e o Jesus. Eu ... viraria a agulha para o Camino Olvidado. Nos cerca de 230 km percorridos ... estava com mais de 5500m D+...

(Escrito a 9 e 10 de Agosto, após o regresso)