No ano seguinte fiz 60 anos ... e quis dar-me a mim próprio a prenda de completar 60 km num dia; acabaram por ser 62 km, em 14 horas,
da várzea de Loures à costa Oeste. Dois anos depois, nas mesmas 14 horas ... fui
da Bobadela a Santarém: 72 km daquilo a que chamámos
uma aventura insana; e essa
insanidade sã ... criou em mim a ambição de chegar aos 100...; em Setembro de 2016, fui
da Bobadela a Santa Cruz, via Estoril e Ericeira: 102 km em 20 horas.
Como já tenho dito, claro que não é este o meu ideal de caminhadas. "
Eu sou lá dos montes que medem o céu", dos grandes espaços, dos paraísos perdidos em que me perco, sentindo a energia das escarpas e barrocos, das torrentes e ribeiras a pulular de som e de vida … saltando as fragas. Mas aquelas quatro "
aventuras insanas" ficaram memoráveis; da última, o jornal "
Badaladas", de Torres Vedras, noticiou a "proeza". Chamemos-lhe desafio pessoal, ou teste de resistência. Sem obrigação de nada ... e muito menos de provar alguma coisa seja a quem for. E como um dia tem 24 horas ... o "bichinho" continuou a roer cá dentro. Quanto é que estas sexagenárias pernas seriam capazes de percorrer num dia?...
Do desafio ao esboçar de um plano ... mediou o sonho. Santa Cruz seria repetir duas destas "aventuras", acrescentando-lhe distância. Nos meus paraísos, nos "
montes que medem o céu " ... os desníveis acumulados seriam imensos. Santiago, o destino dos Caminhos a que o destino me ligou ... está lá longe; mas ... Fátima está mais perto! E Fátima passou a bailar no meu imaginário ... como destino do último dos meus desafios
non stop. Da porta de casa ... ao Santuário de
Fátima!
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23.Out.2017, 17h55 ... 5 minutos depois começaria o grande desafio... |
Uma questão de Fé? Não sei. Como costumo dizer ... não sei o que sou ... mas sei que, particularmente os
Caminhos de Santiago, me têm atraído mais e mais. O "
Caminho do Tejo" - Caminho de Fátima e de Santiago - já o percorri várias vezes; ainda em Julho passado fui
de Santarém a Fátima com a minha Mana Paula, em dois dias. Mas o desafio agora era duplo: estabelecer novo "record" de distância percorrida num dia (24 horas) ... e fazer de casa a
Fátima na modalidade
non stop (apenas poucas e curtas paragens). Como 24 horas implicam uma noite, a primeira decisão era escolher a hora de partida; escolhi as seis da tarde, por forma a que a noite coincidisse com a parte mais plana e mais simples do percurso, até
Santarém. E assim, às 18 horas em ponto ... estava de partida.
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Alverca, 19h35 ... o Sol já se havia posto há quase uma hora... |
Ao delinear esta "aventura", procurei seguir o mais possível o "
Caminho do Tejo". Mas, para encurtar distância, evitei alguns troços que a aumentariam, como a várzea do
Trancão, por exemplo, substituída por
Pirescoxe e
Santa Iria da Azóia. E anoiteceu à entrada da
Póvoa de Santa Iria. A azáfama de gente a chegar dos empregos, ou à espera nas paragens de autocarro ... faziam-me imaginar o que pensariam de um peregrino que "corria" célere rumo ... sabe-se lá onde pensariam! Sim, porque nas primeiras horas eu não corria (não gosto de correr) ... mas "voava". Às 19h35 estava em
Alverca ... hora e meia depois entre
Alhandra e
Vila Franca, quando decidi fazer a primeira paragem ... junto ao painel do
Caminho de Santiago! Tinha 18,7 km em menos de 3 horas ... a uma média de 6,6 km/h
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Painel do Caminho de Santiago, passadiço entre Alhandra e Vila Franca de Xira, 20h50 |
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21h30 - Vila Franca de Xira e o Tejo |
Vila Franca de Xira ficou para trás. A noite, essa ia avançando. Desde a
Castanheira do Ribatejo quase até ao
Vale de Santarém ... tinha a linha do combóio por companhia. Cerca de 35 km, maioritariamente por caminhos rurais encostados ao lado sul da linha, excepto na
Azambuja e nas
Virtudes. Pouco antes das onze e meia, junto ao apeadeiro de
Vila Nova da Rainha, mandei para a família alargada a mensagem ... "
Durmam bem 😊"; estava com 33 km percorridos.
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Apeadeiro de Vila Nova da Rainha, 23h26, 33 km
Igreja de Virtudes, 01h40, 44 km
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Caminhar de noite ... é outra forma de caminhar.
É caminhar um pouco dentro de nós próprios, é ouvir os sons da noite. Raras vezes acendi o frontal. Uma vez ou outra olhei para trás. Quem me seguia? Ninguém; só eu e as sombras da noite. Mas junto ao ramal do
Setil, aí sim, havia um pequeno grupo de trabalhadores, empoleirados a trabalhar nas catenárias, quase às 3 horas da manhã. Tão ou mais espantados de me verem como eu a eles, um deles dirigiu-me a palavra: "
Então, compadre, o que anda a fazer a estas horas?". Respondi-lhe: "
Antes da próxima noite quero estar em Fátima ". E lá ficaram a olhar-me ... certamente pensando que tinham visto um extraterrestre...
😌. Extraterrestres não seriam certamente ... mas por volta das 4 da manhã "persegui" umas estranhas luzes vermelhas que apareciam nos campos. Quanto mais delas me aproximava ... mais as luzes pareciam afastar-se. Ainda agora estou para saber o que eram...
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03h55 - Olhos na noite?... |
Às cinco da manhã, passo próximo do
Vale de Santarém. É então que, pouco depois, deixo o Caminho tradicional, para suavizar e encurtar a subida para Santarém ... e para o encontro combinado com a minha Mana Paula, a minha Mana dos Caminhos Ligados.
A entrada em
Santarém foi assim pela EN3, rumo depois à zona do Hospital Distrital. Ainda mediaram 8,5 km, percorridos em cerca de hora e meia. A "bênção" da Paula foi assim uma bênção madrugadora ... mas acompanhada de uma surpresa; aquele cacau quente e aqueles bolinhos estavam abençoados ... e souberam-me a manjar dos deuses!
Entretanto o dia já nascera. E regressara ao Caminho. Antes das 8h estava na
Portela das Padeiras, com 71 km percorridos, mais de metade da distância total. Na altura, ainda passava pelo meu imaginário a possibilidade de chegar a Fátima ao cair da luz do dia. Sabia que a parte mais exigente estava para vir ... mas também sabia que, se em Santarém tinha tido a bênção da Mana Paula, algures mais à frente iria ter a "bênção" e a companhia do Mano Zé Manel Messias
😊
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07h43 ... Santarém já ficou para trás ... e o dia já nasceu! |
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08h42 ... e já "só" faltam 50 km para Fátima! |
Quando passei com a Mana Paula no
Cantinho dos Peregrinos, no
passado dia 30 de Junho, ela ficou encantada com o Sr. Francisco, com toda a envolvência deste Cantinho por ele construído. Pois agora, estava eu a uns metros de chegar àquele lugar emblemático ... e recebo o telefonema da Paula a perguntar-me se está tudo bem, onde estava...! Mistérios do Caminho!
Um tanque de água fresquinha, à entrada de
Advagar, foi um autêntico bálsamo para uns pés que se começavam a queixar dos mais de 80 km já palmilhados e das 17 horas de marcha em cima deles. A média geral continuava ligeiramente acima dos 5 km/h ... mas eu sabia que iria reduzir. Entretanto ... o Mano Zé Manel vinha ao meu encontro ... e providencialmente encontrámo-nos numa aldeia chamada
Santos. O objectivo era acompanhar-me nalguns troços, voltar atrás buscar o carro, e assim sucessivamente; por outras palavras ... uma bênção sob a forma de presença e de força. Bem hajas também, Mano Zé! A felicidade do encontro foi tal que nos enganámos à saída de Santos; erro rapidamente corrigido ... e seguido de uma pequena paragem alimentícia no
Arneiro das Milhariças.
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13h24 ... a caminho dos moinhos da Serra
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da Cruz (Fotos: José Manuel Messias)
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A subida aos moinhos da
Serra da Cruz foi o primeiro declive acentuado a vencer. Ainda não era uma e meia. Depois, o rumo era
Amiais de Baixo e
Monsanto. Não era preciso passar nos
Olhos de Água do Alviela, embora passando perto.
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14h58 ... Monsanto à vista ... e a Serra de Aire lá atrás... |
Entre aquelas duas povoações, às 14h44 ... eu completava
100 km desde o início, há quase 21 horas atrás! Daqui para a frente e até às seis da tarde ... tudo o que fizesse seria record pessoal de distância num dia. Mas de
Monsanto para a frente ... o que faltava era "só" o troço com maiores desníveis até Fátima. Nomeadamente o temível
Covão do Feto e a
Costa da Azinheira ... onde os horizontes se abrem sobre
Minde e todo o vale que antecede o
Covão do Coelho.
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Covão do Feto, 15h20 ... À Mãe... |
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17h15 ... Minde, vista do "miradouro" natural do alto da Costa da Azinheira |
Às seis da tarde estávamos em
Minde. O Mano Zé Manel entretanto já tinha ido pôr o carro em Fátima e vindo ao meu encontro. O meu "conta quilómetros" marcava 110 km ... portanto a distância percorrida nas 24 horas acabadas de completar. E para Fátima faltavam ainda ... 17 longos quilómetros. Nunca levaríamos menos de três horas, na melhor das hipóteses. Com a noite a cair...
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Passa das 21h ... entramos em Fátima! |
É em alturas como esta que o psicológico tem (ou não) um poder imenso. Apetecia-me levitar, andar com os pés no ar...; porque de resto, a nível muscular, estava perfeitamente bem. E é nestas alturas também que a companhia de Amigo(a)s, de Mano(a)s, tem também um poder imenso. A perseverança - eu diria até a Fé - do Mano Zé Manel, transmitiu-me a energia que me estava a faltar para o troço final. À hora de o Sol se recolher estávamos no
Covão do Coelho. A partir daí, com a noite a cair, preferi optar pelo Caminho dos
Valinhos, entrando portanto em
Fátima pelo sul. Mas, embora plano ... aquele interminável troço foi, sem qualquer dúvida, a parte que mais me custou em todo este desafio. A sensação era, nitidamente, a de que alguém estava "do outro lado" a esticar o "tapete", a interminável recta que parecia não ter fim. O Zé Manel repetia: "
pára um pouco; come; bebe água ". Eu água bebia ... mas repetia que "
agora só páro no fim ". E o fim chegou às 21h30. Entrámos na área do
Santuário, onde pela 4ª vez cheguei a pé ... mas desta vez a sensação foi a de estar a entrar no Céu...
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Fátima, 21h30 ... e a Luz ilumina a consagração da chegada |
Pensei que, a um dia de semana e àquela hora, fosse encontrar meia dúzia de pessoas. Mas ... nos ares ecoava uma "música celestial". As velas acesas e em movimento por uma multidão emprestavam ao ambiente um ar místico e mágico. Exactamente a entrarmos no recinto do Santuário ... tocam os nossos dois telefones; eram as nossas duas "estrelas" ... a quem o Universo disse que tínhamos chegado... Mistérios insondáveis do Caminho...
E foi assim, no fim desta "maratona" a que me desafiei ... que o Universo me quis receber ... e de braços abertos, como tantas vezes ... a ele me entreguei.
Não consegui entrar na Capelinha das Aparições, tal a quantidade de crentes que ali se encontrava. Mas, cá fora, ao meu modo, ao modo de quem não sabe o que é ... rezei pela Saúde, Paz e Felicidade de todos os meus entes mais Queridos. Rezar ... não é também falar com o
Universo?
Agradeci também ao Universo ter trazido para o meu Caminho os Amigos que são mais que Amigos, que são Manos e Manas, uns recentes, outros vindos já da noite dos tempos. Todos os de quem falo sabem de quem falo. Assim como o
Caminho não é só o chão que pisas ... também a Família não é só a que herdámos nos genes e fazemos perpetuar. O Caminho és tu mesmo que o trilhas! A Família és tu mesmo que a constróis! Obrigado Universo! Obrigado Destino! Obrigado Vida!