sábado, 24 de julho de 2021

De Santander a Ponferrada, pelos Caminhos de Liébana, Vadiniense e Olvidado (1)

No Prólogo que publiquei no passado dia 19, a caminho de Santander (a caminho do Caminho...) falei do Sonho que me levou a pesquisar a História de velhos Caminhos de peregrinação que atravessam as montanhas cantábricas ... e a preparar este que foi o meu primeiro Caminho de Santiago a solo.
Passados 16 dias ... cheguei a Ponferrada ... e ao fim da minha "missão". Foram 438 km, 12 mil metros de desníveis acumulados; atravessei os Picos de Europa desde Santander; venerei o Lignum Crucis em Santo Toribio de Liébana; percorri os velhos caminhos Vadinienses; atravessei os Montes de León desde Cistierna, pelo Caminho Olvidado ... nalguns troços tão olvidado que o trilho desaparecia; e cheguei, por fim, às terras templárias de El Bierzo.
Se sofri? Sem dúvida que sim. Os meus pés foram a prova viva desse sofrimento. Este foi, sem nenhuma dúvida, o Caminho de Santiago mais duro de quantos já percorri.
Se gostei? Não ... adorei! E adorei tudo. Foi o meu primeiro Caminho de Santiago sozinho ... só eu ... e eu ... numa fabulosa viagem interior, uma catarse purificadora ... o expurgar de fantasmas e de ilusões. Sem dúvida que subi a Montanha ... segui uma luz lá no alto ... ouvi uma voz que me chama...
Num Caminho de Santiago ... nunca estamos sozinhos. Para trás ficaram as muitas borboletas multicores que quase todos os dias esvoaçavam ao pé de mim ... as aves que ouvia ... o gado com quem eu "conversava" ... os cães que me saudavam ... como aquele cão místico nas Horcadas de Valcavao ... que talvez fosse a encarnação de Santiago...
Para trás ficaram também outros peregrinos e muitos lugareños, pessoas boas que contribuíram para as histórias e estórias deste meu primeiro e fabuloso Caminho a solo. Nas crónicas que se seguem ... vou procurar descrever o indescritível.                               (Escrito a 8 de Agosto, após o regresso)
Camino Lebaniego
Albergue "Santos Mártires",
Santander ... o 1º Albergue da
minha 1ª Peregrinação a solo
Cheguei a Santander ao início da tarde do dia 19. Santander fica no Caminho do Norte, mas é a Paróquia do Santíssimo Cristo da Catedral de Santander que emite a Credencial do Caminho Lebaniego, pelo que se pode dizer que os Caminhos de Liébana começam na capital da Cantábria. O Albergue "Santos Mártires" colocou o primeiro sello ... e fui fazer um "aquecimento" pelas ruas e praias de Santander.
Santander, Praia del Sardinero, 19.Jul.2021, 15h50
E como todos os Caminhos têm as suas histórias e estórias ... a primeira deu-se logo neste dia prévio, no Albergue. "Não és o Callixto?", ouvi de alguém a olhar para mim; fixei os olhos e respondi: "Sou ... e tu não és o Calisto?". E éramos realmente o Callixto e Calisto 🤣. Já em 2018 nos tínhamos encontrado por acaso, na Mealhada, durante o Caminho Português; coincidências e desígnios do Caminho...
A primeira etapa era uma das maiores, até Santillana del Mar. Saí cedo de Santander, antes de o Sol nascer, embora nos dois primeiros dias mal tenha visto o astro-rei. Poucos peregrinos, mas alguns.

Rio Pas e ponte medieval em Oruña, entre Santander e Torrelavega, 20.Jul., 9h50
Igreja de Santiago, próximo de Rumoroso
Rio Saja, entre Barreda e Vispieres, a caminho de Santillana
E ... Santillana del Mar, a jóia arquitectónica da Cantábria ... mas também a vila das três mentiras:
não é Santa ...  nem é llana (plana) ... nem tem mar...
Santillana fervilhava de turismo ... felizmente tudo muito disciplinado e controlado, no que à pandemia diz respeito. Os Albergues de Santillana, tanto o público como privados na vila, estavam ainda encerrados por precaução ou tinham preços proibitivos, pelo que tinha reservado previamente um albergue a dois quilómetros, o Albergue/Hostel "Pico de Santillana". Que remédio tive se não ficar ... mas não fiquem neste espaço! Além da total antipatia dos responsáveis, enquanto uns se mantêm fechados por precaução ... este albergue faz ocupação total ... o que confirmei no turismo em Santillana que é obviamente proibido, em pandemia. Pedi o livro de reclamações ... não mo trouxeram. Valeu-me a simpatia dos outros 5 ocupantes da camarata de 6 onde fiquei; "todos estamos vacunados", disseram-me; do mal o menos ... mas no dia seguinte saí antes das cinco da manhã...
Igreja barroca de San Martín de Tours,
Cigüenza, 21.Jul.2021, 7h15
Falta pouco para Santiago...
Praia de Luaña, entre Cobreces e Comillas
Comillas, uma bela cidade à beira mar, 10h30
Este pequeno troço entre Luaña e Comillas foi o único em que vi o mar cantábrico, num litoral muito escarpado ... em que os desníveis começavam a contar. E entrei em Comillas com um jovem casal espanhol a quem o Universo pareceu querer ligar-nos; viria a chamar-lhes mais tarde os ángeles del Camino. A Isi e o Jesus estavam no Caminho do Norte desde Irún ... a caminho de vários Caminhos...
Em Comillas, o Parque de Sobrellano traz-nos o Capricho de Gaudí à Cantábria ... e trouxe-me uma meia hora de descanso a meio da manhã, ao sabor de uma Coca-Cola com gelo.
Parque de Sobrellano, Comillas, 21.Jul.2021, 10h35
Coca-Cola e 1906 ...
dois ícones do Caminho... 🙂
Próximo de Ceceno, entre Comillas e San Vicente
E a jornada prossegue pelos bosques de Oyambre
San Vicente de la Barquera à vista, cruzando a respectiva ria
Antes das duas da tarde estava no Albergue "El Galeón", em San Vicente de la Barquera, bonita vila piscatória onde verdadeiramente começa o Caminho Lebaniego. Tinha feito 70 km em dois dias. Os meus pés acusavam o muito alcatrão, associado ao constante sobe e desce ... mas ainda deram para uma pequena volta pela vila, castelo e a belíssima Igreja de Nuestra Señora de los Ángeles.

Albergue de Peregrinos de San Vicente de la Barquera e vistas sobre a ria
Castelo e parte da vila de San Vicente de la Barquera
É preciso repôr energias...
Igreja de Nuestra Señora de los Ángeles,
onde decorria uma bela sessão de harpa
No Caminho ... basta o essencial; a simplicidade é a regra básica...
O dia seguinte era o dia de virar para sul, para o interior ... rumo ao Lignum Crucis ... rumo aos Picos de Europa. As habituais setas amarelas davam lugar às setas vermelhas e à Cruz Lebaniega.
22 de Julho: ao terceiro dia, começava verdadeiramente o Caminho Lebaniego
Actualmente, a maioria dos guias do Caminho Lebaniego conduz os peregrinos para a Senda fluvial do rio Nansa. Não duvidando da beleza da referida rota, essa opção acrescenta contudo quase 9 km à distância a percorrer ... o que convenhamos que é muito, particularmente num Caminho caracterizado pela dureza e pela exigência física. Assim, já antes do meu primeiro passo, ainda em casa, optara pelo traçado anterior, por Gandarilla e Bielva, cruzando o Nansa na Puente El Arrudo, próximo de Cades. Entre Bielva e Cades, durante uma breve paragem de descanso, um habitante interpelou-me para me felicitar ... dizendo-me que aquele é que é o Caminho certo, tradicional. Fiquei satisfeito!
"Rendas" naturais e quadros de verde...
A "Casona del Nansa" (onde lá foi mais uma Coca-Cola) e o Rio Nansa, junto à Puente El Arrudo
Depois de Cades ... foi como se tivesse deixado este mundo e este tempo. Peregrinos ... desde San Vicente que não via nenhum. As pequenas aldeias ... cada vez se foram tornando mais pequenas, mais rurais, com menos gente. Acompanhei as gargantas do rio Lamasón, afluente do Nansa, até Sobrelapeña ... e continuei a subir rumo a Lafuente, Burió, Los Pumares.
Despedida do Nansa, próximo de Sobrelapeña
Tudo começava a ser fabulosamente agreste e "selvagem". Eu estava a começar ... a subir a Montanha...
Sempre que havia água o cantil
agradecia ... mas os pés também...
Lafuente ... nenhuma aldeia aqui é mais que meia dúzia de casas...
Entre Lafuente e Los Pumares subi trezentos metros de desnível em pouco mais de 2 km ... sendo que depois de Burió a pista empinou a valer. Mas, vá lá ... a padroeira da minúscula aldeia de Burió ... é a "minha" Santa Eulália... 😀. Os pés, cansados de tanto alcatrão (embora em estradas secundárias e de paisagens fabulosas) ... passaram para as pedras resvaladiças de um trilho a subir a bom subir ... por vezes com intervalos de cimento nos troços mais íngremes...
Lafuente, vista da subida para Burió, 14h10
Burió ... uma minúscula aldeia com Santa Eulália por padroeira
E na empinada subida entre Burió e Los Pumares ... completei os meus primeiros 100 km neste Caminho
Um pobre peregrino aguarda que lhe abram o Albergue de Cicera ... onde fui o único candidato a 20 camas...
Na foto acima, para lá de Cicera já se percebe o Desfiladeiro de La Hermida, um dos mais célebres dos Picos de Europa
Antes das três da tarde estava em Cicera, com 34 km desde San Vicente de la Barquera ... e os pés a pedirem repouso. Os calcanhares já aparentavam formar as "famosas" ampollas, mas ... nada que um bom banho não tenha minimizado. E jantar, em Cicera? Hmm ... umas compras simples na tienda/bar ... aquecidas no micro ondas do albergue ... e foi a melhor das iguarias. Deitei-me cedo ... creio que sonhei com fadas e duendes ... a pulular nos bosques da manhã seguinte.
Tenho muita cama por onde escolher ... e por onde estender a roupa lavada...
Sexta feira, 23 de Julho. Acordei cedo ... as montanhas em redor de Cicera estavam "cacimbentas"; caía aliás uma morrinha ligeira. Onde andariam o Calisto e o seu amigo espanhol? Onde estariam a Isi e o Jesus? Sabia que estariam também no Caminho Lebaniego, mas possivelmente mais para trás.
Cicera, 23.Jul.2021, 6h30 da manhã: ainda da janela do albergue ... vejo os montes cobertos de nuvens
Aqueci o café com leite trazido de véspera da tienda, comi uns sobaos que igualmente tinha comprado. A morrinha já tinha parado. Santiago estava comigo ... e zarpei para o meu 4º Dia de Caminho ... e que Caminho! Um estreito e sinuoso sendero deixou para trás o vale de Peñarrubia e entrou nos bosques que tinham povoado os meus sonhos. Sempre a subir, por entre a ramagem às vezes percebia-se a poente o desfiladeiro de La Hermida, atravessado pela estrada vinda da costa cantábrica para Potes e para os Picos de Europa, que várias vezes percorri nos anos 80 e 90 ... do século passado.

Imagens de um Sonho real ... vivido ... sentido. Entre Cicera e Lebeña, nas encostas da margem direita
do rio Deva e do desfiladeiro de La Hermida
Pouco depois das dez estava em Lebeña, pequena aldeia já próxima do rio Deva, tornada famosa pela sua Igreja mozárabe de Santa María de Lebeña, principal monumento pré-românico da Cantábria.

Lebeña e a sua Igreja Mozárabe de Santa María de Lebeña, no profundo vale do rio Deva
Dos menos de 500 metros de altitude de Cicera tinha começado por subir aos mais de 800 ... descido aos pouco mais de 200 de Lebeña e do Deva. Já na margem esquerda do desfiladeiro ... iria voltar a subir para Allende e Cabañes ... para voltar a descer para o alto Deva e para Potes. Para além dos desníveis acumulados, o piso quando não era de alcatrão ... era maioritariamente de pedra solta. Começava seriamente a temer pelos meus pés; os calcanhares estavam a entrar em sofrimento...

O Rio Deva, a pequena aldeia de Allende, já na margem esquerda: janelas sobre o desfiladeiro de La Hermida
Cabañes, mais uma pequena aldeia de montanha,
encravada nos limites entre Cantábria e Astúrias
Lá em baixo, no vale do Deva, ainda se vê Lebeña
O vale de Liébana, visto ainda das terras altas de Cabañes e Pendes
Ermida de San Francisco de Assis, entre Pendes e o rio Deva
Ponte sobre o Deva em Tama, 14h20: pouco faltava já para Potes
Pelas três da tarde entrava em Potes, capital de Liébana. O Albergue Municipal é mesmo no centro, junto à Torre del Infantado e ao rio Deva; 60 lugares, várias camaratas; chegariam outros peregrinos ... mas na minha camarata fiquei sozinho; banho e repouso ... que os pés bem precisavam.

Potes, 23.Jul.2021, 15h05 - Várias vezes aqui vim com alunos, com a família, com amigos ... no século passado...
Potes, 18h15 - Um pequeno passeio pelas ruas próximas do centro ... e a pôr os pés de molho no rio Deva
Potes tinha bastante movimento turístico, a lembrar um qualquer verão antes da pandemia. Neste pequeno passeio ... umas sandálias numa montra como que me chamaram; "umas sandálias de trekking, abertas, seriam a solução para o atrito na parte traseira dos calcanhares" ... "mas devem custar uma pequena fortuna". Entrei ... as sandálias tinham muito bom aspecto ... só tinham o meu número ... e custavam ... 35€ 😲. Calcei-as ... impecáveis. Seguramente ... foi Santiago quem ali colocou aquelas sandálias, àquele preço! E no dia seguinte saí de sandálias ... e saí com o Calisto e o Zé Cabrera, o espanhol amigo dele. Apareceram quando eu estava a jantar ... tinham vindo de Cades ... e feito mais de 40 km ... quase totalmente pela estrada! Coisas do Caminho...
A primeira meta estava cumprida: Santo Toribio de Liébana, 24.Jul.2021, 9h20
O Lignum Crucis, o maior pedaço conhecido da Cruz de Cristo
 
Tinham decorrido apenas 4 dias e umas horas ... mas eu já sentia que talvez nunca tivesse estado num Caminho tão duro fisicamente. Seria por estar sozinho? Não me parecia. O que sentia nos pés nada tinha que ver com o problema que me obrigou a parar em 2015, em Ourém. A dor era por vezes intensa ... mas o Caminho era fabuloso ... e Santiago dizia-me ao ouvido ... "tu consegues"...
E assim ... continuei...
(Escrito a 8 e 9 de Agosto, após o regresso)

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