Talvez porque em Agosto passado conheci o
Parque Arqueológico do Côa
... talvez porque me estava a fazer falta a catarse proporcionada pelas
caminhadas a solo ... a vontade de descer o Côa até à foz voltou. E a habitual
estadia de finais de Outubro e início de Novembro nas minhas terras adoptivas
de
Vale de Espinho proporcionou-me dois dias de pura contemplação ...
catarse ... introspecção. Partindo de Porto de Ovelha ... voltei assim a rumar
a norte ... tal como o "
Rio Sagrado"...
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Porto de Ovelha, 26.Out.2020, 7h40
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"No ventre das Mesas
ouviu-se um gemido
de um
ser que quis nascer
e correr serra abaixo.
Eras
tu, meu Rio Côa,
que querias ser gigante
e
escolheste o teu caminho
rasgando montes,
dormindo em vales fundos...">
(Bernardino Henriques, poeta Fojeiro,
"Poemas da Terra", 2009)
Ontem, bem cedo, estava junto ao velho pontão onde deixei o
Côa em
Junho de 2011. A manhã estava mágica, com o rio a respirar e o Sol a criar imagens e
sonhos. Sozinho ... comecei a sonhar...
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Pontão de Porto de Ovelha, a 76 km da nascente ... e a 124 km
da foz
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A GR45 segue o
Côa pela margem esquerda, mas nesta parte
inicial as marcações são deficientes ou inexistentes. Pouco antes de começar
a subir a encosta para a aldeia de
Jardo há mesmo um muro de pedra e
arames ... a barrar o caminho!
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Muros e arames ... barram
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o percurso da GR45...
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O Côa, no seu curso para norte, entre Porto de Ovelha e a foz do Rio Noémi
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Porto de S. Miguel, foz da Ribeira dos Cadelos
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No
Porto de S. Miguel, a
GR45 cruza-se com
a
GR22 (
Grande Rota das aldeias históricas), que aliás iria encontrar outras vezes. Entretanto as marcações tinham
melhorado desde
Jardo ... mas não poderia "cantar" por muito
tempo. À vista de
Castelo Bom, chegava a parte mais desgastante
destes dois dias: alcatrão, EN 16, algum trânsito. O viaduto da A25 ficou
para trás e saí finalmente da estrada junto ao
Café e Camping Rio Côa
... a partir do qual passei a ser acompanhado por um patudo a que chamei ...
Tareco. Várias vezes o mandei para casa ... mas ele seguia-me ou avançava;
várias vezes quando estava à minha frente ... parava e olhava a ver se eu
vinha 😊.
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Ponte de S. Roque, sobre o Côa, próximo de
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Durante 8 km a minha caminhada não foi a solo ... e até o "Tareco"
admirava a paisagem...
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As encostas do
Côa a norte de Castelo Bom são bastante
escarpadas, o que leva o traçado da Grande Rota a subir a margem esquerda,
na direcção das aldeias de
Mido e
Senouras.
Próximo desta última, o meu fiel
Locus Map
mandava-me virar à esquerda, contornando o
Cabeço da Atalaia, como se
vê na imagem ao lado ... mas uma placa indicativa da GR mandava-me virar à
direita, atravessando o cabeço. Tanto essa placa como algumas outras que se
lhe seguiram eram recentes, levando-me a crer que se trataria de um novo
traçado, mais recente que o indicado na carta do
Locus. Puro engano!
Do topo do cabeço, o trilho desceu para o Côa ... mas já na margem
desapareceu por completo, entre enormes pedras e muito mato! Até o "Tareco"
se viu aflito para passar ... e agora a navegação era pura e simplesmente
tomar como rumo um pequeno caminho rural assinalado na carta. Qual não é o
meu espanto quando nesse caminho ... reapareceram as marcações da GR ...
como que se entre um ponto e outro se voasse sobre as pedras e mato.
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... deixa de existir!
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Onde um traçado marcado e assinalado
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Mas ... a "aventura" ainda não tinha acabado: nova placa da GR manda-me
virar à direita ... e 200 metros depois o trilho termina no rio, sem saída!
Voltámos atrás, claro, eu e o meu companheiro patudo, para finalmente ir ao
encontro do traçado indicado pelo
Locus ... do
qual não deveria ter saído. É inconcebível que a
entidade gestora
- a Associação "
Territórios do Côa" - preste este péssimo serviço a quem quer percorrer a Grande Rota.
Finalmente no bom caminho, seguiu-se uma boa extensão acompanhando a margem
esquerda do Côa. E foi aqui que o "meu" Tareco me deixou ... com medo
de duas cadelas e um cão maiores do que ele, que ladravam para assinalarem
que estavam ali a guardar um rebanho de cabras. Espero que tenha regressado
a casa ... e espero que o tenha feito por melhores caminhos!...
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Acompanhando o Côa, de novo a solo.
Pontão Manuel José Martins, próximo da aldeia de Junça
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Com 27 km nos pés, eram duas e meia da tarde quando atravessei o
Côa pelo moderno pontão Manuel José Martins, que substituiu um
longo e velho pontão de poldras que ali existia, quando as águas do Côa eram
mais baixas, devido à posterior construção de represas. Agora pela margem
direita, ainda continuei a seguir o "
Rio Sagrado" durante mais uns quilómetros, até rumar a Almeida.
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Já na margem direita do Côa, atravessado no pontão Manuel
José Martins
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O Caminho faz parte de nós...
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Cerca de 4 km antes de Almeida voltei a entrar na
GR22,
mas mais do que isso ... entrava também no
Caminho de Torres, embora em sentido contrário. Ainda o ano passado o percorri, entre
Trancoso e Lamego! E pouco depois das quatro da tarde entrava na histórica
vila de
Almeida, com 35 km percorridos em sensivelmente 8 horas e
meia.
Em Almeida, optei pela "
Casa Morgado" para pernoitar. Uma excelente relação qualidade/preço, com pequeno almoço
incluído, em tempos de covid sob a forma de um
kit preparado de
véspera e portanto para ser tomado no quarto à hora que se quiser. Sem dúvida
recomendável, principalmente para quem esteja a fazer a
GR22, a
GR45 ou o
Caminho de Torres.
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Fortaleza de Almeida, 27.Out.2020, 6h50
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Hoje ... saí da "
Casa Morgado" com o nascer do Sol ... ou melhor ... com as nuvens que impediam ver o
astro rei. O dia acordou cinzento mas menos frio, embora mais tarde o Sol
aparecesse durante a maior parte do trajecto. Em
Almeida, a Igreja
Matriz de Nossa Senhora das Candeias fez questão de me recordar ... que estava
no
Caminho de Santiago!
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Igreja Matriz de Nª Srª das Candeias
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... no Caminho de Santiago
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Ruas de Almeida ao amanhecer
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A
GR45 sai
de Almeida rumo a noroeste, de regresso ao vale do
Côa. O pequeno
almoço começado ainda no quarto
... completei-o num recanto paradisíaco, à beira das águas límpidas e
correntes que descem a encosta. Pouco depois, a Natureza brindava-me com um
curioso
tafoni.
Tafoni
são cavidades profundas ou ocas, produzidas pela meteorização cavernosa nas
zonas laterais de afloramentos rochosos, incluindo as faces interiores.
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Caos granítico debruçado sobre a margem direita do Côa
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Tifoni na encosta do Côa. Geoformas como esta desde
sempre suscitaram no Homem intriga, ou superstição
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Já quase na margem do
Côa, o complexo termal da
Fonte Santa lembrou-me as Sabugalenses
Termas do Cró; a mesma arquitectura, num mesmo tipo de modernização das instalações
termais ... além de uma bela panorâmica para o vale do Côa. Mas o escarpado
das encostas não permite ainda acompanhar o rio. Aliás, embora com uma
altimetria acumulada ligeiramente inferior à da etapa anterior, este troço da
grande rota pode-se dizer que é um permanente desce e sobe ... e ali havia que
de novo subir rumo à aldeia de
Cinco Vilas ... para logo descer,
então sim, até à beira rio.
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Ribeiro do Caldeira,
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na subida para Cinco Vilas
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Descida de Cinco Vilas para o Côa. A paisagem
começa a ter características durienses...
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Às dez e meia da manhã estava junto às águas do
Côa, junto à foz da
Ribeira de Fonte da Pedra. Iria agora acompanhar de novo o curso do rio
... com grifos a sobrevoar as encostas. Há uns já largos 13 anos, tinha
descido a encosta contrária, numa actividade do Clube Ar Livre, desde a aldeia
de Pereiro.
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Os grifos sobrevoam as águas do Côa, no lugar da
Veiga, entre terras de Cinco Vilas e de
Vale de Madeira
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O traçado da
GR45 atravessa o
Côa sobre o pontão e açude da ponte velha, entre terras de
Cinco Vilas, na margem direita, e de
Vale de Madeira, na margem
esquerda. Um pouco antes, vi que havia obras do lado de Vale de Madeira, mas a
sinalização da GR continuava a mandar seguir para o pontão. Da
Ponte Velha ... sabia que só restam ruínas ... mas o pontão ... bem ...
o pontão as águas do Côa sobrepunham-no com boa corrente! Ainda experimentei
... mas a força da corrente era muita!...
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Ponte Velha e pontão de Vale de Madeira. Pontão ...
praticamente submerso e o Côa com grande corrente...
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Que fazer? Bem ... voltei atrás, ao sítio onde tinha visto as obras ... mas,
para cortar caminho ... meti-me por terrenos que não foram fáceis de passar.
Depois, no local das obras ... constatei que a única hipótese de passar o
Côa ... era a vau! E foi uma "aventura" 😜. Mas alternativa ...
não existia. Equilibrando-me nos bastões e com água a entrar nas botas ... lá
fui atravessando os vários troços entre a margem direita e a esquerda, no
local de uma pequena ilha onde precisamente estavam a decorrer obras, que vim
depois a saber tratar-se da futura praia fluvial de
Vale de Madeira.
Depois da travessia e encharcado ... até me custava acreditar ao olhar para a
paisagem atravessada...
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Pois ... no meio não deu para tirar fotografias ... estava ocupado com
o equilíbrio na travessia...
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Já do lado de
Vale de Madeira ... os trabalhadores das obras e
dois polícias pareciam que estavam a ver um fantasma. Meti conversa com eles;
"
pois, estou a fazer a grande rota do Côa e deparei-me com esta aventura de
atravessar o rio". Já mais acima, na margem esquerda, os polícias voltaram a passar por mim
... quando eu estava a espremer as meias e a despejar a água das botas.
Sorriram... 😛
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Olivais e paisagem da encosta poente do Côa, a norte da aldeia
de Vale de Madeira
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Entretanto, nas manobras da travessia do
Côa, tinha perdido bastante
tempo. Com os pés encharcados, a hipótese que inicialmente tinha posto de
terminar a etapa na ponte da Chinchela (vulgo "Ponte da Excomungada"), na
estrada Pinhel - Castelo Rodrigo ... pu-la de parte. Estava a pouco mais de
três quilómetros de
Pinhel ... e o troço de Pinhel à Excomungada
poderei fazê-lo numa próxima etapa da descida pedestre do Côa. Assim ... rumei
a Pinhel ... o que me permitiu belas panorâmicas da cidade e das vinhas que a
bordejam a sul, na descida para a
Ribeira das Cabras.
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Rumo a Pinhel, que sobressai sobre as vinhas dos bons vinhos da
região ... passada a Ribeira das Cabras
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E assim ... ainda não eram duas horas estava a entrar em
Pinhel. Uma
boa opção para fim de etapa ... e para fim destes dois belos dias a solo
na
Grande Rota do Côa. Para a foz, fiquei agora a menos de 80 km; um dia farei o resto em três
etapas ... qualquer dia!
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Pinhel, 27.Out.2020, 13h50 ... e a descida pedestre do
Côa ficou a três etapas da Foz!
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Em menos de uma hora, a
Rocha Táxis
pôs-me em
Porto de Ovelha, onde o meu "bólide" tinha ficado a descansar
... à guarda do cemitério da aldeia. E também em menos de uma hora ... de lá
regressei ao meu "retiro" de
Vale de Espinho ... onde a minha
estrela raiana me esperava 😊. Foram dois dias de catarse ... de entrega à
Natureza mas também a mim próprio. Como tantas vezes digo, caminhar sozinho
não é melhor nem pior ... é diferente; é uma caminhada também ... dentro de
nós próprios!
3 comentários:
Callixto, li toda a reportagem, fiquei maravilhado, não só pela reportagem em si desta tua grande aventura, como pelas fabulosas e maravilhosas imagens que registaste! Bem hajas e um abraço.
Obrigado pelas tuas palavras, Raul. Sabe sempre bem o teu feedback. Um abraço.
A propósito do traçado "Nunca ande pelo caminho traçado, pois ele conduz somente até onde os outros já foram." -Alexander Graham Bell.
Obrigado pela viagem.
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