A última actividade de verão dos
Caminheiros Gaspar Correia - a minha "família" caminheira mais antiga - tinha sido há três anos, quando os levei
das brañas de Somiedo às "terras do fim do mundo". Respondendo à sugestão de vários elementos do grupo, propus-me este ano proporcionar-lhes ... alguns “Olhares sobre os Caminhos de Santiago”.
Pôr este projecto de pé não era fácil. Não íamos fazer um Caminho de Santiago. O que se pretendia era apenas dar a conhecer alguns locais intimamente ligados à História, às tradições e à mística dos
Caminhos de Santiago.
Não houve portanto nenhuma vertente nem nenhum objectivo de peregrinação. Misturar as “águas” seria desvirtuar o misticismo do Caminho e desrespeitar os peregrinos com que seguramente nos íamos cruzar. A própria vertente pedestre não seria sequer a dominante: em 8 dias de actividade, propus ao grupo apenas 3 caminhadas propriamente ditas, dando-lhes a conhecer alguns locais, povoações e cidades ligadas ao
Caminho Francês. (
o meu Caminho em 2016). Muito gostaria de ter integrado também algum troço do
Caminho do Salvador e/ou do
Caminho Primitivo (
que percorri em Maio...), mas que são Caminhos de montanha que, numa vertente turística, implicariam uma logística de transporte e de alojamento complicadas. Assim,
Astorga,
Ponferrada e
Santiago de Compostela foram as principais cidades que incluí; mas ... quem já tinha ouvido falar de
Hospital de Órbigo,
Molinaseca,
Villafranca del Bierzo, ou
Melide? Umas e outras são cidades e vilas ricas em História e Cultura, que cresceram ao longo de séculos ao ritmo das peregrinações Jacobeias.
E, claro, no programa incluí também três dos locais mais emblemáticos do Caminho Francês: a
Cruz de Ferro, um ponto mágico entre o Céu e a Terra, no cume do
Monte Irago, a 1500 metros de altitude, ponto mais alto do Caminho Francês; a subida ao
Cebreiro e a toda a sua mágica envolvência; e o
Monte do Gozo, às portas de Santiago e de onde, no Caminho Francês, os peregrinos vêem pela primeira vez as torres da Catedral Compostelana, o
campus stellae ... o campo das estrelas.
Assim, uma viagem de dez horas de autocarro, no segundo dia de Agosto, levou-nos de Lisboa a
Hospital de Órbigo. Terras leonesas, entre
León e
Astorga, fim de etapa, com os meus companheiros de Caminho, num dia 15 de Maio de 2016, com 510 km já palmilhados desde Saint Jean Pied-de-Port, nos longínquos Pirenéus franceses. Agora, num fim de tarde quente de Agosto, viam-se poucos peregrinos, seguramente recolhidos nos diversos Albergues existentes. Seguindo as setas amarelas, atravessámos a ponte, recordando o duelo que, por amor, libertou o cavaleiro leonês D. Suero de Quiñones, em 1434, e que eternizou a história do
Paso honroso. Antes de umas refrescantes
cañas e de rumar a Astorga, recolhemo-nos um pouco na
Igreja de S. João Baptista, conhecendo a saborosa história do seu pároco, com 85 anos, que foi casado, enviuvou e se ordenou sacerdote aos 60 anos de idade.
A
Astorga dedicámos todo o dia seguinte. A velha
Asturica Augusta, capital da
Maragatería e dos
maragatos, nome e povo de origens não completamente conhecidas. A própria origem do termo não é certa, embora pareça apontar para uma ascendência germânica, de populações convertidas ao Islão quando da islamização da Península; a junção dos termos "
moro" e "
godo" seria a base do termo
maragato.
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Astorga, a velha Asturica Augusta, 03.08.2017: Catedral e Palácio Episcopal, o Palácio de Gaudí |
O dia em
Astorga foi dia de visita livre. Do Museu do chocolate ao emblemático Palácio de Gaudí e à Catedral, das termas romanas à Igreja do Perpétuo Socorro, sozinho ou em pequenos grupos, cada um orientou o seu dia ... o seu pequeno caminho nos Caminhos. Na simplicidade dos seus traços e do seu interior, a Igreja do Perpétuo Socorro chamou-me ... como em 2016, no nosso
Caminho Francês, chamou a minha "Mana" Paula e lhe deu forças para continuar a jornada ... para continuar o Caminho.
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Igreja do Perpétuo Socorro ... onde eu senti a atracção
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nos olhos de Santiago, o mistério do chamamento...
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E de Astorga ... já adivinho ao longe a Cruz de Ferro, no cume do Monte Irago... |
Tal como ainda há pouco em Santiago, parte da minha tarde em
Astorga foi a ver passar peregrinos ... a sentir neles o que eu senti e sinto nos meus Caminhos ... nos nossos Caminhos. E, na sexta feira ... seguimos de manhã para a
Cruz de Ferro ... qual local mágico que une o Céu e a Terra...
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O Caminho não é o chão que pisas ...
o Caminho és Tu mesmo! |
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Astorga à noite, 3.08.2017 ... abençoada pela Lua ... a ocidente! |
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Na Cruz de Ferro, 4.08.2017 ... onde o Céu e a Terra parecem unir-se |
O que se sente ao chegar à
Cruz de Ferro numa versão turística, ou a outros locais marcantes dos Caminhos de Santiago, nada tem a ver com o que se sente estando no Caminho. Mas não só gostei de ver a postura dos "meus" Caminheiros que ali levei ... como naturalmente recordei e revivi a madrugada mágica em que ali cheguei em Maio de 2016, com os meus "Manos" Paula e Zé Manel ... e mais uma vez me revi na pele dos muitos peregrinos. Alguns ... são imagens que não se esquecem.
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Momentos, vivências, emoções ... para
as quais não há palavras...
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Ermida de Santiago, junto à Cruz de Ferro |
Com um autocarro ... não conseguimos parar junto ao "refúgio templário" de
Manjarín. Mas ele lá estava, com o colorido das suas bandeiras e, principalmente, da sua história, antiga e recente. E pouco depois estávamos em
Acebo de San Miguel, onde começámos a primeira caminhada propriamente dita desta actividade, primeiro até
Riego de Ambrós, depois descendo o percurso das
Puentes de Malpaso, aliás traçado original do Caminho de Santiago, que há um ano subi com a minha "estrela", quando igualmente andámos a reviver memórias do meu Caminho Francês.
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El Acebo de San Miguel e panorâmica para Ponferrada |
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Campos de Riego de Ambrós e Ermida de S. Sebastião |
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Percurso das Puentes de Malpaso, entre Riego de Ambrós e Molinaseca |
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E chegamos a Molinaseca, bonita vila que vive do Caminho de Santiago |
Percurso Acebo - Riego de Ambrós - Molinaseca (Puentes de Malpaso)
O terceiro dia do périplo terminou em
Ponferrada, terra templária que mereceu uma visita nocturna, mas também, na manhã do dia seguinte, a visita ao seu bem conservado Castelo. E, em
Ponferrada, na manhã do quarto dia ... assisti a mais um emotivo momento; fechando os olhos e ouvindo um canto magistral ... por momentos senti-me verdadeiramente no Caminho...
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Castelo de Ponferrada, 4 e 5 de Agosto de 2017: um olhar sobre terras templárias ... |
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.. onde os meus olhos são automaticamente focados
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para os peregrinos, aqui na Igreja de Santo André ...
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São momentos como este que fazem
estremecer quem já fez um
Caminho de Santiago...
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x
Quase ao fim da manhã de sábado deixámos
Ponferrada, rumo a
Villafranca del Bierzo. Continuava a proporcionar "olhares" sobre os locais mais emblemáticos do Caminho ... continuava a viver memórias do meu Caminho! A partir da
Igreja de Santiago de
Villafranca del Bierzo fizemos a visita àquela histórica vila, que incluiu o almoço na sua Plaza Mayor, aos pés da
Igreja de São Francisco. Depois ... depois seguiríamos para o "paraíso"...
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Villafranca del Bierzo, 8 de Maio de 2017 |
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Igreja de Santiago,
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Villafranca del Bierzo
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O "paraíso" a que me referi, após
Villafranca, é o vale do rio
Valcarce, nos limites ocidentais das
tierras del Bierzo ... quase na Galiza. É, também, o início da mítica subida para
O Cebreiro, talvez o ponto que mais me marcou, que mais me disse, no meu
Caminho Francês, em 2016. Nestes “Olhares sobre os Caminhos de Santiago”, escolhi a aldeia de
Las Herrerías para base do olhar sobre essa etapa mítica do Caminho. Distribuídos por dois alojamentos rurais - o
"Capricho de Josana" e o "
Paraíso del Bierzo" - dir-se-ia que estávamos realmente no Paraíso.
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No paraíso do vale de Valcarce, 5.08.2017 |
Domingo, dia 6, era o dia da caminhada rainha destes "olhares": os Caminheiros Gaspar Correia iam subir o mítico
Cebreiro e tentar absorver um pouco da magia do
Caminho. E a magia, o "peso" do Caminho, começou logo pelo testemunho de um casal francês, a percorrer o Caminho desde Montauban, em França, há 76 dias, com mais de 850 km percorridos até ali ... e acompanhados pelos seus 6 filhos ... o mais velho dos quais com 10 anos ... o mais novo com menos de 1 ano, no seu carrinho de bebé! Qual é a magia, qual é o mistério desta atracção?...
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Cruzando o rio Valcarce, começamos a subida d'O Cebreiro
Qual é a magia e mistério que faz um casal com 6 filhos,
entre 1 e 10 anos, percorrer mil quilómetros, ao longo de 3 meses?...
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Através dos bosques do vale de Valcarce, rumo à aldeia de La Faba |
Às dez horas estávamos em
La Faba. Tínhamos subido já quase duzentos metros de desnível, mas o grupo estava a "portar-se bem"; era a magia d'
O Cebreiro a ajudar. A etapa seguinte era a pequena aldeia de
Laguna de Castilla, a última aldeia antes da Galiza, 250 metros mais acima em altitude ... e onde o Bar do
Albergue "La Escuela" nos recebeu para uma pausa. Em 19 de Maio de 2016 ... foi o Albergue que me recebeu e aos meus companheiros do
Caminho Francês, ao 22º dia desde Saint Jean Pied-de-Port. Estávamos prestes a entrar na Galiza.
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La Laguna: última aldeia antes de entrar na Galiza ...
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recordando o Caminho Francês de 2016
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"Fronteira" Leão / Galiza ... quase no mítico O Cebreiro ... |
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... e sobre o espectacular vale de Valcarce |
Precisamente à uma da tarde chegávamos aos 1320 metros d'
O Cebreiro. Era a terceira vez que ali estava. Aquele local tem mistério, tem energia, tem uma mística e até uma música especial ... talvez uma música celestial. Uma mística e uma música que levou quase metade do grupo a subir ao
Teso da Cruz, onde subi pela primeira vez; tínhamos o Cebreiro aos nossos pés.
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E às 13h, emergindo da vegetação do vale do rio Valcarce ... chegamos a'O Cebreiro |
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Teso da Cruz ... a "voar" sobre O Cebreiro ...
... e sobre as profundezas de onde viéramos |
Boa parte da tarde foi passada n'
O Cebreiro, vivendo o movimento de peregrinos, absorvendo a energia que emana daquele lugar mágico ... e, claro, à "luz" de
Santa María La Real e dos ensinamentos de Frei Dino...
A
Aunque hubiera recorrido todos los caminos,
cruzado montañas y valles
desde Oriente hasta Occidente,
si no he descubierto la libertad de ser yo mismo
no he llegado a ningún sitio.
(Fray Dino, Monge Franciscano)
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Santa María La Real de O Cebreiro |
Que energia emana daquele lugar místico? Deus? As forças do Universo? A energia telúrica? Não sei. Se calhar o nome é o menos importante. Se calhar Deus é "isso" tudo ... se calhar Deus somos nós ... está em cada um de nós, na Natureza, no Universo. Deixei estas minhas interrogações no livro de visitas d'
O Cebreiro. Pode ser que, um dia, o Universo me responda.
Percurso Herrerías - La Faba - O Cebreiro
Às quatro e meia regressámos a
Las Herrerías, de autocarro. Mas as forças do destino ditaram que o final do dia e a madrugada de 2ª feira fossem dolorosas; uma nossa companheira destes "olhares" e de tantos outros na história dos Caminheiros Gaspar Correia, co-fundadora do Grupo, recebeu a infeliz notícia de que terminaram os dias de quem a acompanhou no Caminho da Vida. Também ele era nosso companheiro de diversas caminhadas, e, sobretudo, nosso amigo! A Vida é uma efémera passagem, que cada vez mais deve ser vivida um dia de cada vez ... um passo de cada vez.
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San Xulián do Camiño, 7.08.2017, 11h00 |
2ª feira, 7 de Agosto. Debaixo do choque da inesperada partida de um companheiro e amigo, antes das onze da manhã estávamos a iniciar a terceira e última caminhada destes "Olhares sobre os Caminhos de Santiago". Escolhi a aldeia de
San Xulián do Camiño, entre
Palas de Rei e
Melide, para início desta "etapa". As "catedrais verdes" atravessadas tinham-me ficado bem presentes, quando do meu Caminho Francês, e maravilharam os presentes nesta abordagem de locais emblemáticos. O dia, esse parecia partilhar da nossa tristeza; nuvens escuras lançaram algumas lágrimas. Enquanto percorríamos túneis de castanheiros e carvalhos, a nossa querida Alice avançou para
Santiago de Compostela, no autocarro, de onde regressaria a Lisboa acompanhada por quem mais de perto a seguiu, também ela co-fundadora desta grande "família" que sempre foram os Caminheiros Gaspar Correia.
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"Now ask yourself why you are here"...
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Por entre catedrais verdes, entre Palas de Rei e Melide |
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Igreja e Ponte romana de Leboreiro |
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Ponte de San Xoán de Furelos |
Pouco depois das duas estávamos a entrar em
Melide, onde o Caminho Francês e o Caminho Primitivo se juntam; era a minha terceira vez em Melide, portanto. A
Capela de S. Roque e a Igreja do velho
Convento de S. Pedro foram os principais atractivos. E eram três horas quando terminámos a componente pedestre ... quando faltavam 50 km para Santiago.
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Praza e Igreja do Convento de S. Pedro, Melide |
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Km 50 ... no Caminho estaríamos |
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a duas etapas de Santiago |
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Santa María de Melide, no km 50 para Santiago |
Nos 50 km que nos restavam, não poderíamos dispensar o
Monte do Gozo e a mística de vermos, lá em baixo, ao fundo ... as torres da
Catedral de Santiago. Tal como nos restantes locais, chegar ali nesta "versão turística" é completamente diferente de chegar no
Caminho, ao fim de 17, 20, 30 dias a caminhar. Para quem já fez o Caminho é, contudo, uma forma de recordar, de reviver em pensamento as sensações vividas e sentidas. Para quem nunca fez o Caminho ... é talvez um incentivo para o fazer.
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Monte do Gozo, 7.08.2017, 17h55 - Monumento comemorativo da visita de João Paulo II a Santiago |
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Monte do Gozo, 18h10 - Monumento ao Peregrino ... à vista da Catedral de Santiago |
Santiago era, naturalmente, o destino final destes olhares sobre os Caminhos que convergem no
campus stellae. Quando as nossas duas amigas chegavam a Lisboa, o grupo chegava a Santiago, para uma noite e um dia a absorver, cada um a seu gosto, a magia da capital galega. Nos últimos quatro anos ... foi a 9ª vez que estive em Santiago ... a 3ª vez nos últimos 4 meses...!
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A magia da Lua na noite da mágica Praça do Obradoiro, 7.08.2017, 22h45 |
Nas ruas do velho casco histórico, na
Catedral, na Igreja de
S. Francisco ... eu sinto-me de algum modo pertencer àquela cidade, àquela magia, àquele chamamento! Na manhã de terça feira, mais uma vez sentei-me no
Obradoiro a ver chegar peregrinos ... sentindo as emoções ... revivendo o já vivido ... como num dia 22 de Maio ainda tão próximo, em que chegámos 10, de mão dada, de 7 nacionalidades diferentes, cantando, saltando e rejubilando com a nossa entrada no campo das estrelas!
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... sentindo as emoções ... revivendo o já vivido ... |
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Praça do Obradoiro, 8.08.2017 ... todo um mundo de permanente atracção |
No que a Igrejas diz respeito, Santiago não é só a Catedral. A Igreja do velho
Convento de S. Francisco também é, para mim, ponto obrigatório cada vez que vou a Santiago. S. Francisco de Assis também foi peregrino. A sua histórica peregrinação, em 1214, deu origem, em 2014, à comemoração do respectivo 800° Centenário; 2014 ... foi o ano do meu primeiro
Caminho de Santiago.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o Irmão Sol, que clareia o dia e pelo qual nos iluminas.
(Cânticos Franciscanos)
Dia 9, quarta feira, era o regresso a casa. Oito horas de autocarro ... e quis o destino que chegássemos exactamente à hora a que o invólucro terreno do nosso caminheiro e amigo estava a ser transportado para a Igreja onde foi velado. Desígnios do destino? Mistérios de Santiago! Se, para alguns dos meus companheiros, estes "Olhares" tiverem sido os primeiros passos a caminho do
Caminho ... ficarei muito, mas muito Feliz. O Caminho não é o chão que pisamos ... o Caminho somos nós mesmos. Quando entramos ... o Caminho passa a fazer parte de nós ... e nós a fazer parte do Caminho...
1 comentário:
Excelente e vibrante reportagem!Tudo bonito.
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