A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (8)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
QUINTA-FEIRA, 31 DE AGOSTO DE 2034 - ANIVERSÁRIO EM TERRAS CÁTARAS
Em Toulouse, como disse na crónica anterior ... senti que comecei a caminhar para oriente ... rumo ao Mediterrâneo ... rumo a Roma e a Jerusalém. Para mim ... já não estava en sens inverse! A 25 de agosto, saí de Toulouse acompanhando o Canal du Midi, o mais antigo canal marítimo da Europa.
Na Pont de Donneville, Canal du Midi, entre Toulouse e Montgiscard, 25.08.2034, 12h50
Actualmente com funções exclusivamente turísticas, o canal continua navegável entre o rio Garona e Sète, permitindo ligar o Atlântico ao Mediterrâneo, numa extensão de 240 km, evitando o Estreito de Gibraltar e o contorno da Península Ibérica. Representa sem dúvida uma fantástica obra de engenharia.
Gîte d'Ayguesvives, na Eclusa du Sanglier, 15h50
A primeira etapa depois de Toulouse terminou no Gîte d'Ayguesvives, localizado na "Maison éclusière du Sanglier", um edifício de meados do Séc. XVIII, junto ao Canal. Fui o único ocupante, como já sabia quando telefonei. Um hospitaleiro acolheu-me muito simpaticamente ... e naquele belo local repousei o resto da tarde. Uma pequena cozinha com frigorífico e micro-ondas ... foi o suficiente para "alinhavar" um jantar a solo, com umas compras feitas em Montgiscard 😋
A curiosa Igreja de Nôtre-Dame-de-l’Assomption, Villefranche-de-Lauragais, 26.08.2034, 10h05
Deixando para trás o Canal du Midi, cruzei os campos agrícolas de Villefranche e Avignonet-Lauragais, para me dirigir a Montferrand. Senti bem a força do Autan, um vento que sopra de sudeste, a que os agricultores chamam o "vento do diabo", quando as rajadas destroem o fruto de meses de trabalho.
Porta medieval das muralhas de Montferrand, 26.08.2034, 14h35
No alto de um morro fortificado, Montferrand é um pequeno núcleo que domina os campos de Lauragais. A panorâmica abarca desde a Montanha Negra, a leste, aos já distantes Pirenéus, a sul. O Castelo medieval, de que só resta uma porta do Séc. XV, foi um bastião cátaro, cercado por Simon de Montfort na Cruzada Albigense de 1211. Naquele cerco, o conde Balduíno, com apenas 14 cavaleiros, conseguiu deter o exército de 14000 homens por alguns dias! E foi naquele autêntico pog que me alojei, no Accueil pèlerin La Porte de Marie, adstrito à pequena Capela de La Trinité. Mais uma vez fui o único peregrino, mas mesmo assim tive direito a jantar comunitário. Quando telefonei a reservar lugar, na véspera, o René-Claude, hospitaleiro, mostrou logo quem é, ao responder: "Bien sûr que nous avons de la place pour vous. Un pèlerin sur le Chemin, c'est toujours une bénédiction.". Quando agradeci, acrescentou: "Et pour le dîner... ne vous inquiétez pas ! Demain, c'est moi qui cuisine. On partagera ce moment de convivialité, comme le veut l'esprit du Chemin.". E assim foi ... foram momentos mágicos.
Um fim de tarde mágico em Montferrand, 26.08.2034 ... com os Pirenéus em pano de fundo
O René-Claude é daquelas pessoas que não nos cansamos de ouvir.
Falou-me de tudo e de todos ... e até da estranha "antena" que eu já tinha visto naquele pog. Uma "antena" que não é uma antena ... mas sim um farol! Em 1927, Pierre-Georges Latécoère usou faróis aeronáuticos para guiar os seus pilotos aviadores, encarregados da linha de transporte de correio aéreo de Toulouse a Dakar e, mais tarde, à América do Sul - a Aéropostale. Montferrand presta uma justa homenagem a esta fantástica história, preservando o farol de Latécoère, junto ao qual existe um painel explicativo. Em 1933 a Aéropostale, com outras companhias ... originou a Air France!
Depois do jantar com o René-Claude, a noite de 26 para 27 de agosto, em Montferrand ... foi uma noite estranha. A meio da noite, quando acordei, tudo à minha volta me parecia estranho. Estava frio. A luz de uma vela tremeluzia numa mesa que não me lembrava de ter visto. A cama onde estava não me parecia a mesma. Fui à janela ... e afinal já era dia, um dia cinzento e frio. Mas eu não estava nem em Montferrand, nem muito menos em agosto de 2034. Eu estava no pog de Montségur, o último refúgio dos cátaros; lembrava-me bem dele, embora só lá tivesse estado uma vez, em agosto de 1993. Mas agora, numa imagem estranha, eu via nitidamente vários pontos de fogo no sopé do Castelo. Eu estava em março de 1244, a viver os últimos dias do cerco de Montségur...
Há dez longos meses que os cátaros resistiam bravamente às forças lideradas por Hugues des Arcis, apesar das condições precárias dentro do castelo, com provisões limitadas e as doenças a espalharem-se. Eu permanecia atónito, à janela. De repente senti as paredes estremecerem e, ao mesmo tempo, vi um grande pote de fogo sulcar o ar e derramar o óleo em chamas sobre a ala das tropas cátaras à minha frente. E nisto ... acordei! Tinha sido um sonho. A história dos cátaros sempre me fascinou. Montferrand, onde afinal estava, também tinha sido um bastião cátaro ... e a conversa da véspera com o René-Claude ligou o meu cordão de prata à tomada de Montségur. Os bonshommes, como os cátaros se chamavam a si próprios, recusaram-se sempre a renunciar à sua fé, baseada na humildade e simplicidade,
Cruz cátara
procurando viver de acordo com os ensinamentos de Jesus. Mas a Igreja Católica via neles uma heresia ... uma oposição ao Clero. A 16 de março de 1244, após a tomada do castelo de Montségur, mais de 200 cátaros foram queimados vivos, numa enorme pira aos pés da montanha, no que ficou para a história como o Massacre de Montségur ... em nome de Deus...
O que eu não disse ao René-Claude durante o memorável jantar de dia 26 ... foi que eu fazia 81 anos no dia seguinte 😂. Só ao raiar de domingo partilhei com ele a minha idade e a minha primeira prenda de aniversário: a "viagem astral" à tomada de Montségur! "José, tu dois absolument visiter le mémorial cathare de Les Cassès, à 10 km d'ici, sur le Chemin", exclamou, com os olhos brilhando de espanto e admiração! E completou logo com: "Nous tous, Languedociens et Occitans, portons en nous l'héritage des cathares, qu'il soit direct ou lointain. Dans nos veines coule encore la simplicité et la ténacité de ces bons hommes qui furent nos ancêtres. Leur esprit de résistance et leur quête de pureté résonnent à travers les siècles, nous rappelant les valeurs profondes de notre terre.". Um amor assim às raízes ... maravilha e comove!
E claro que visitei o Memorial Cátaro de Les Cassès, 27.08.2034, 09h50 ... em dia de aniversário
Não podia deixar de homenagear aqueles que tombaram em nome da sua fé. O Memorial Cátaro,
com as suas lápides silenciosas, guarda a memória daqueles que lutaram pela liberdade de religião. Infelizmente, as guerras religiosas não foram nem são um fenómeno exclusivo do Médio Oriente ou de África, nem muito menos exclusivo dos últimos séculos. Ali, em Les Cassès, no meio da serenidade do lugar, as minhas orações uniram-se certamente às dos que encontraram a paz eterna ... e também à de todos os que rogam para que a Paz alcançada em 2028 na Terra Santa seja duradoura.
Lac de Lenclas, na Rigole de la Plaine,27.08.2034, 10h40
Pouco depois de Les Cassès, acompanhei o pequeno canal de La Rigole, que capta as águas da Montanha Negra para o Canal du Midi. A paisagem ao longo do canal dá um pouco a sensação de estar num interminável parque urbano, frequentado por caminhantes, ciclistas e atletas ... e onde não falta até uma antiga linha de comboio transformada em vélorail. Entretanto, em dia especial, claro que a minha "andorinha", no beiral do ninho, já me falara por duas vezes, a primeira ainda a sair de Montferrand. Senti uma "asa murcha" na voz dela ... é a primeira vez, em quase 61 anos de casamento, que não estamos juntos no aniversário de um ou de outro. "Nada me parece igual sem ti ", desabafou, reacendendo em mim a chama de uma culpa que não se apaga... 😢
Com 25 km nos pés como prenda dos 81 anos, pouco depois das 13h30 estava em Revel, a sentar-me para almoçar 😋
Igreja de Notre-Dame des
Grâces, Revel, 15h05
Revel é uma cidadezinha bem simpática, um belo presente para passar o resto do meu dia de anos. O alojamento estava reservado no Gîte communal, mesmo no centro histórico ... e o Universo brindou-me com a companhia de 4 peregrinos franceses, a Anne-Marie e os seus três "guarda-costas" - como ela mesma diz - Laurent, Olivier e Frédéric. Já tinha saudades de ver peregrinos! E que presente de aniversário incrível, aquela tarde e noite com aqueles quatro bons amigos, joviais e bem humorados!
Com a Anne-Marie, Laurent, Frédéric e Olivier na Places des Halles, em Revel ... em dia de aniversário
Os quatro "anjos" que me caíram do céu para comemorarem comigo os meus 81 anos, começaram o Caminho de Santiago em Arles. No domingo, em que nos encontrámos, tinham saído de Castres ... para onde eu segui no dia seguinte. São de Montpellier, é o sexto Caminho que fazem juntos; há dois anos fizeram o Caminho Francês, de Saint Jean Pied-de-Port a Santiago ... este ano contam fazer a Via Tolosana completa, ou seja de Arles a Puente La Reina. Naturalmente que decidimos jantar juntos ... e foi um jantar bem especial, digno destas 81 primaveras que me parecem impossíveis! Como briefing ... até houve festa em videochamada, com a estrelita, filhos, netos, "manos velhos", "manos novos", mano mesmo ... e até com a Sophia, a minha companheira de Caminho durante 12 etapas pré-Pirenéus!
E a minha Cruzada prossegue, nos campos agrícolas entre Revel e Cahuzac, 28.08.2034, 08h35
2ª feira saímos ao mesmo tempo de Revel, eu e os quatro "cruzados" de Montpellier. "Ultreïa! ", dissemo-nos mutuamente ... e quase em coro respondemo-nos "et Suseïa! ". A minha etapa era longa, 34 km, embora praticamente sem desníveis e através de uma paisagem muito variada: grandes troços arborizados, belas pequenas vilas com praças e ruas medievais, como Dourgne, a Abadia de En Calcat, Viviers-les-Montagnes, e, na parte final, ao longo das margens do rio Agoût, até Castres.
Abadía de Sainte Scholastique, Dourgne, 10h35
Viviers-les-Montagnes, 12h50 - Monumento aos mortos nas duas Guerras Mundiais ... com a esperança na Paz Mundial
E por estes belos bosques ribeirinhos do rio Agoût, entrava em Castres, capital do departamento de Tarn
Castres é o principal centro urbano entre Toulouse e Montpellier. O centro histórico é um belo labirinto de ruas estreitas e edifícios coloridos, que ladeiam o rio Agoût na zona da ponte velha.
O rio Agoût e os edifícios que o ladeiam em Castres, 28.08.2034,16h10
XVII e onde se encontra o túmulo de Jean Jaurès
Catedral de Saint-Benoît, Castres, reconstruída no Séc.
Castres foi um dos locais mais marcados pelas guerras religiosas, perseguições e reformas. Primeiro os cátaros (séculos XII-XIV), mais tarde os huguenotes calvinistas (século XVI), que a conquistaram em 1574. Nesta histórica cidade, alojei-me na Maison d'Accueil Pélerin St Jacques,
Na Maison d'Accueil Pélerin St Jacques, Castres, 28.08.2034
um pequenino mas muito agradável "refúgio" junto ao centro histórico. Voltei a ser o único peregrino ... já não havia um aniversário para comemorar... 😂
Para os dias seguintes, terminando um mês de agosto maioritariamente ensolarado, havia previsão de alguns aguaceiros, que se concretizaram, principalmente no penúltimo dia do mês. Também era a passagem da planície para os desníveis e planaltos do Maciço Central, no Parque Natural de Haut Languedoc.
Rio Durenque, próximo de Boissezon, 29.08.2034, 13h40
Apesar da beleza da paisagem, nas florestas que cercam a pequena cidade de Boissezon não me apareceu a fada Salimonde. Segundo as lendas locais, trata-se de uma bela mulher de cabelos compridos, que mora nas florestas que cercam a povoação. Aparece todos os anos por altura da festa de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro); se comer uma maçã significa que o ano agrícola vai ser bom; se rejeitar a maçã ... os agricultores podem esperar um mau ano de colheitas.
Só faltam mesmo as fadas e os duendes ... entre Bouisset e Anglès, 30.08.2034 ... em dia de chuva...
Ponte sobre o rio Agoût e casco antigo de Salvetat-sur-Agoût, em final de etapa, 30.08.2034, 15h15
Villelongue e Igreja de Notre-Dame, à entrada do Lac de Laouzas, 31.08.2034, 09h20
Os aguaceiros do dia 30 limparam a atmosfera para o último dia de agosto. Já tinha lido no Gronze que estas seriam talvez as mais belas etapas do Caminho de Arles. Entre bosques de coníferas, faias e extensos prados, fui descendo para Villelongue e para o Lac du Laouzas; dir-se-ia que estava no Canadá, ou na Finlândia. E hoje terminei a etapa e o mês em Murat-sur-Vèbre ... terra megalítica.
Entre o Lago de Laouzas e Candoubre ... ou através de um paraíso verde, 31.08.2034, 12h05
Centro de Interpretação das estátuas-menires
Murat-sur-Vèbre: Igreja de Saint-Etienne e
A Occitânia tem a maior concentração de megalitos conhecida na Europa. O termo "megalito" refere-se normalmente a dólmens e menires, mas também às chamadas estátuas-menir. Com mais de 5000 anos (a maioria data do final do Neolítico), essas esculturas foram transportadas nalguns casos ao longo de vários quilómetros, levantando muitas questões sobre as motivações dos nossos antepassados distantes: marcar itinerários, homenagear os falecidos, venerar heróis ou divindades?...
Como cheguei cedo a Murat-sur-Vèbre - a etapa foi de apenas 21 km - houve tempo de almoçar, lavar e secar a roupa (incluindo a de ontem, ainda húmida da chuva) e dar uma volta na pequena povoação, de casas maioritariamente revestidas de lajes de ardósia, tanto nos telhados como nas paredes, protegendo-as da humidade nas fachadas viradas a norte. Junto ao posto de Turismo, o Centro de Interpretação do Megalitismo
Gîte des Menhirs, Murat-sur-Vèbre, 31.08.2034
alberga uma importante colecção de estátuas-menir da região de Lacaune - Murat. O próprio Gîte onde me alojei chama-se, aliás, Gîte des Menhirs, próximo da Igreja de Saint-Etienne e na dependência de um Convento do Séc. XVIII. E, para minha surpresa ... não estou sozinho nesta pequena vila "perdida". Quando cheguei do passeio ... tinha um jovem casal italiano na camarata, a Chiara e o Marco. Antes mesmo de me verem ... já estavam encantados com a minha mochila e a bandeira do Caminho de Jerusalém. Saíram de Arles há 10 dias e vão fazer só até Toulouse.
Jantámos os três, no Gîte. Eu já tinha passado pelo "Vival", o super da cidadezinha, a Chiara e o Marco foram lá depois ... e fizemos um bom jantar comunitário, regado com um belo Domaine de la Baume, bastante frutado. O blend de Syrah, Grenache e Carignan, típico do Pays d'Oc ... combinou bem com o esparguete à bolonhesa e com o Roquefort a complementar...😂. Amanhã ... amanhã a nossa Cruzada prossegue ... a minha rumo a leste... 🙏

Publicado em 17.11.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
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2 comentários:

Graça disse...

Quantos conhecimentos, quanta investigação bem fundamentada e que te permite tecer uma prosa fluída e tão agradável de ler.
Paz em 2028? Assustador!

Anónimo disse...

Ah! Este sim. Acordei cedo e li com calma. Uma delícia! Bom caminho.