Em
Toulouse, como disse na crónica anterior ... senti que comecei a
caminhar para oriente ... rumo ao
Mediterrâneo ... rumo a
Roma e
a
Jerusalém. Para mim ... já não estava
en sens inverse! A 25 de
agosto, saí de Toulouse acompanhando o
Canal du Midi, o mais antigo canal marítimo da Europa.
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Na Pont de Donneville,
Canal du Midi, entre
Toulouse e Montgiscard,
25.08.2034, 12h50
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Actualmente com funções exclusivamente turísticas, o canal continua navegável
entre o rio Garona e
Sète, permitindo ligar o Atlântico ao
Mediterrâneo, numa extensão de 240 km, evitando o Estreito de Gibraltar e o
contorno da Península Ibérica. Representa sem dúvida uma fantástica obra de
engenharia.
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Gîte d'Ayguesvives, na Eclusa du Sanglier, 15h50
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A primeira etapa depois de Toulouse terminou no
Gîte d'Ayguesvives,
localizado na "
Maison éclusière du Sanglier", um edifício de meados do
Séc. XVIII, junto ao Canal. Fui o único ocupante, como já sabia quando
telefonei. Um hospitaleiro acolheu-me muito simpaticamente ... e naquele belo
local repousei o resto da tarde. Uma pequena cozinha com frigorífico e
micro-ondas ... foi o suficiente para "alinhavar" um jantar a solo, com umas
compras feitas em
Montgiscard 😋
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A curiosa Igreja de Nôtre-Dame-de-l’Assomption,
Villefranche-de-Lauragais,
26.08.2034, 10h05
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Deixando para trás o
Canal du Midi, cruzei os campos agrícolas de
Villefranche e
Avignonet-Lauragais, para me dirigir a
Montferrand. Senti bem a força do
Autan, um vento que sopra de
sudeste, a que os agricultores chamam o "vento do diabo", quando as rajadas
destroem o fruto de meses de trabalho.
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Porta medieval das muralhas de
Montferrand, 26.08.2034, 14h35
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No alto de um morro fortificado,
Montferrand
é um pequeno núcleo que domina os campos de
Lauragais. A panorâmica
abarca desde a
Montanha Negra, a leste, aos já distantes
Pirenéus, a sul. O Castelo medieval, de
que só resta uma porta do Séc. XV, foi um bastião cátaro, cercado por Simon de
Montfort na Cruzada Albigense de 1211. Naquele cerco, o conde Balduíno, com
apenas 14 cavaleiros, conseguiu deter o exército de 14000 homens por alguns
dias! E foi naquele autêntico
pog que me alojei, no
Accueil pèlerin La Porte de Marie, adstrito à pequena
Capela de La Trinité. Mais uma vez fui o único peregrino, mas mesmo assim tive direito a jantar
comunitário. Quando telefonei a reservar lugar, na véspera, o René-Claude,
hospitaleiro, mostrou logo quem é, ao responder: "
Bien sûr que nous avons de la place pour vous. Un pèlerin sur le Chemin,
c'est toujours une bénédiction.". Quando agradeci, acrescentou: "
Et pour le dîner... ne vous inquiétez pas ! Demain, c'est moi qui cuisine.
On partagera ce moment de convivialité, comme le veut l'esprit du Chemin.". E assim foi ... foram momentos mágicos.
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Um fim de tarde mágico em
Montferrand, 26.08.2034 ... com os
Pirenéus em pano de fundo
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O René-Claude é daquelas pessoas que não nos cansamos de ouvir.
Falou-me de tudo e de todos ... e até da estranha "antena" que eu já tinha
visto naquele
pog. Uma "antena" que não é uma antena ... mas sim um
farol! Em 1927,
Pierre-Georges Latécoère
usou faróis aeronáuticos para guiar os seus pilotos aviadores, encarregados da
linha de transporte de correio aéreo de Toulouse a Dakar e, mais tarde, à
América do Sul - a
Aéropostale.
Montferrand presta uma justa homenagem a esta
fantástica história, preservando o farol de Latécoère, junto ao qual existe um painel
explicativo. Em 1933 a
Aéropostale, com outras companhias ... originou
a Air France!
Depois do jantar com o René-Claude, a noite de 26 para 27 de agosto, em
Montferrand
... foi uma noite estranha. A meio da noite, quando acordei, tudo à minha
volta me parecia estranho. Estava frio. A luz de uma vela tremeluzia numa mesa
que não me lembrava de ter visto. A cama onde estava não me parecia a mesma.
Fui à janela ... e afinal já era dia, um dia cinzento e frio. Mas eu não
estava nem em
Montferrand, nem muito menos em agosto de 2034. Eu estava
no
pog de
Montségur, o último refúgio dos cátaros; lembrava-me bem dele, embora só lá tivesse
estado uma vez, em agosto de 1993. Mas agora, numa imagem estranha, eu via
nitidamente vários pontos de fogo no sopé do Castelo. Eu estava em março de
1244, a viver os últimos dias do cerco de
Montségur...
Há dez longos meses que os cátaros resistiam bravamente às forças lideradas
por
Hugues des Arcis, apesar das condições precárias dentro do castelo,
com provisões limitadas e as doenças a espalharem-se. Eu permanecia atónito, à
janela. De repente senti as paredes estremecerem e, ao mesmo tempo, vi um
grande pote de fogo sulcar o ar e derramar o óleo em chamas sobre a ala das
tropas cátaras à minha frente. E nisto ... acordei! Tinha sido um sonho. A
história dos cátaros sempre me fascinou.
Montferrand, onde afinal
estava, também tinha sido um bastião cátaro ... e a conversa da véspera com o
René-Claude ligou o meu
cordão de prata
à tomada de
Montségur. Os
bonshommes, como os cátaros se chamavam a si próprios,
recusaram-se sempre a renunciar à sua fé, baseada na humildade e simplicidade,
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Cruz cátara |
procurando viver de acordo com os ensinamentos de Jesus. Mas a Igreja Católica
via neles uma heresia ... uma oposição ao Clero. A 16 de março de 1244, após a
tomada do castelo de
Montségur, mais de 200 cátaros foram queimados
vivos, numa enorme pira aos pés da montanha, no que ficou para a história como
o
Massacre de Montségur
... em nome de Deus...
O que eu não disse ao René-Claude durante o memorável jantar de dia 26 ... foi
que eu fazia 81 anos no dia seguinte 😂. Só ao raiar de domingo partilhei com
ele a minha idade e a minha primeira prenda de aniversário: a "viagem astral"
à tomada de
Montségur! "José, tu dois absolument visiter le mémorial cathare de Les Cassès, à 10 km
d'ici, sur le Chemin", exclamou, com os olhos brilhando de espanto e admiração! E completou logo
com: "Nous tous, Languedociens et Occitans, portons en nous l'héritage des cathares, qu'il soit direct ou lointain. Dans nos veines coule encore la
simplicité et la ténacité de ces bons hommes qui furent nos ancêtres. Leur
esprit de résistance et leur quête de pureté résonnent à travers les
siècles, nous rappelant les valeurs profondes de notre terre.". Um amor assim às raízes ... maravilha e comove!
Não podia deixar de homenagear aqueles que tombaram em nome da sua fé. O
Memorial Cátaro,
com as suas lápides silenciosas, guarda a memória daqueles que lutaram pela
liberdade de religião. Infelizmente, as guerras religiosas não foram nem são
um fenómeno exclusivo do Médio Oriente ou de África, nem muito menos exclusivo
dos últimos séculos. Ali, em
Les Cassès, no meio da serenidade do
lugar, as minhas orações uniram-se certamente às dos que encontraram a paz
eterna ... e também à de todos os que rogam para que a Paz alcançada em 2028
na Terra Santa seja duradoura.
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Lac de Lenclas, na
Rigole de la Plaine,27.08.2034, 10h40
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Pouco depois de
Les Cassès, acompanhei o pequeno canal de
La Rigole, que capta as águas da Montanha Negra para o
Canal du Midi.

A paisagem ao longo do canal dá um pouco a sensação de estar num interminável
parque urbano, frequentado por caminhantes, ciclistas e atletas ... e onde não
falta até uma antiga linha de comboio transformada em
vélorail. Entretanto, em dia especial, claro que a minha "andorinha", no beiral do
ninho, já me falara por duas vezes, a primeira ainda a sair de
Montferrand. Senti uma "asa murcha" na voz dela ... é a primeira vez,
em quase 61 anos de casamento, que não estamos juntos no aniversário de um ou
de outro. "
Nada me parece igual sem ti ", desabafou, reacendendo em mim a chama de uma culpa que não se apaga... 😢
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Com 25 km nos pés como prenda dos 81 anos, pouco depois das 13h30
estava em
Revel, a sentar-me para almoçar 😋
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Revel
é uma cidadezinha bem simpática, um belo presente para passar o resto do meu
dia de anos. O alojamento estava reservado no
Gîte communal, mesmo no centro histórico ... e o Universo brindou-me com a companhia de 4
peregrinos franceses, a Anne-Marie e os seus três "guarda-costas" - como ela
mesma diz - Laurent, Olivier e Frédéric. Já tinha saudades de ver peregrinos!
E que presente de aniversário incrível, aquela tarde e noite com aqueles
quatro bons amigos, joviais e bem humorados!
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Com a Anne-Marie, Laurent, Frédéric e Olivier na
Places des Halles, em
Revel ... em dia de aniversário
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Os quatro "anjos" que me caíram do céu para comemorarem comigo os meus 81
anos, começaram o Caminho de Santiago em
Arles. No domingo, em que nos encontrámos, tinham saído de
Castres ... para onde eu segui no dia
seguinte. São de
Montpellier, é o sexto
Caminho que fazem juntos; há dois anos fizeram o Caminho Francês, de
Saint Jean Pied-de-Port a Santiago ... este ano contam fazer a Via
Tolosana completa, ou seja de
Arles a
Puente La Reina.
Naturalmente que decidimos jantar juntos ... e foi um jantar bem especial,
digno destas 81 primaveras que me parecem impossíveis! Como
briefing ... até houve festa em videochamada, com a estrelita, filhos,
netos, "manos velhos", "manos novos", mano mesmo ... e até com a Sophia, a
minha companheira de Caminho durante 12 etapas pré-Pirenéus!
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E a minha Cruzada prossegue, nos campos agrícolas entre
Revel e
Cahuzac, 28.08.2034, 08h35
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2ª feira saímos ao mesmo tempo de
Revel, eu
e os quatro "cruzados" de
Montpellier. "
Ultreïa! ", dissemo-nos mutuamente ... e quase em coro respondemo-nos "
et Suseïa! ". A minha etapa era longa, 34 km, embora praticamente sem desníveis e
através de uma paisagem muito variada: grandes troços arborizados, belas
pequenas vilas com praças e ruas medievais, como
Dourgne, a
Abadia de En Calcat,
Viviers-les-Montagnes, e, na parte final,
ao longo das margens do rio
Agoût, até
Castres.
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Abadía de Sainte Scholastique, Dourgne, 10h35
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Viviers-les-Montagnes, 12h50 -
Monumento aos mortos nas duas Guerras Mundiais ... com a esperança na
Paz Mundial
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E por estes belos bosques ribeirinhos do rio Agoût, entrava em
Castres, capital do departamento de
Tarn
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Castres é o principal centro urbano entre
Toulouse e
Montpellier. O centro histórico é um belo labirinto
de ruas estreitas e edifícios coloridos, que ladeiam o rio
Agoût na
zona da ponte velha.
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O rio Agoût e os edifícios que o ladeiam em
Castres, 28.08.2034,16h10
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XVII e onde se encontra o túmulo de Jean
Jaurès
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Castres
foi um dos locais mais marcados pelas guerras religiosas, perseguições e
reformas. Primeiro os cátaros (séculos XII-XIV), mais tarde os huguenotes
calvinistas (século XVI), que a conquistaram em 1574. Nesta histórica cidade,
alojei-me na
Maison d'Accueil Pélerin St Jacques,
um pequenino mas muito agradável "refúgio" junto ao centro histórico. Voltei a
ser o único peregrino ... já não havia um aniversário para comemorar... 😂
Para os dias seguintes, terminando um mês de agosto maioritariamente
ensolarado, havia previsão de alguns aguaceiros, que se concretizaram,
principalmente no penúltimo dia do mês. Também era a passagem da planície para
os desníveis e planaltos do
Maciço Central, no
Parque Natural de Haut Languedoc.
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Rio Durenque, próximo de
Boissezon, 29.08.2034, 13h40
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Apesar da beleza da paisagem, nas florestas que cercam a pequena cidade de
Boissezon não me apareceu a fada
Salimonde. Segundo as lendas locais, trata-se de uma bela mulher de cabelos compridos,
que mora nas florestas que cercam a povoação. Aparece todos os anos por altura
da festa de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro); se comer uma maçã
significa que o ano agrícola vai ser bom; se rejeitar a maçã ... os
agricultores podem esperar um mau ano de colheitas.
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Só faltam mesmo as fadas e os duendes ... entre
Bouisset e
Anglès, 30.08.2034 ... em dia de
chuva...
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Ponte sobre o rio Agoût e casco antigo de
Salvetat-sur-Agoût, em final de
etapa, 30.08.2034, 15h15
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Villelongue e Igreja de
Notre-Dame, à entrada do
Lac de Laouzas, 31.08.2034, 09h20
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Os aguaceiros do dia 30 limparam a atmosfera para o último dia de agosto. Já
tinha lido no
Gronze
que estas seriam talvez as mais belas etapas do Caminho de Arles. Entre
bosques de coníferas, faias e extensos prados, fui descendo para
Villelongue e para o
Lac du Laouzas; dir-se-ia que estava no Canadá, ou na Finlândia. E hoje terminei a etapa e
o mês em
Murat-sur-Vèbre
... terra megalítica.
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Entre o Lago de Laouzas e Candoubre ...
ou através de um paraíso verde, 31.08.2034, 12h05
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Murat-sur-Vèbre: Igreja de
Saint-Etienne e
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A Occitânia tem a maior concentração de megalitos conhecida na Europa. O termo
"megalito" refere-se normalmente a dólmens e menires, mas também às chamadas
estátuas-menir. Com mais de 5000 anos (a maioria data do final do Neolítico),
essas esculturas foram transportadas nalguns casos ao longo de vários
quilómetros, levantando muitas questões sobre as motivações dos nossos
antepassados distantes: marcar itinerários, homenagear os falecidos, venerar
heróis ou divindades?...
Como cheguei cedo a
Murat-sur-Vèbre
- a etapa foi de apenas 21 km - houve tempo de almoçar, lavar e secar a roupa
(incluindo a de ontem, ainda húmida da chuva) e dar uma volta na pequena
povoação, de casas maioritariamente revestidas de lajes de ardósia, tanto nos
telhados como nas paredes, protegendo-as da humidade nas fachadas viradas a
norte. Junto ao posto de Turismo, o
Centro de Interpretação do Megalitismo
alberga uma importante colecção de estátuas-menir da região de
Lacaune - Murat. O próprio
Gîte onde me alojei chama-se, aliás,
Gîte des Menhirs, próximo da Igreja de
Saint-Etienne e na dependência de um Convento
do Séc. XVIII. E, para minha surpresa ... não estou sozinho nesta pequena
vila "perdida". Quando cheguei do passeio ... tinha um jovem casal italiano na
camarata, a Chiara e o Marco. Antes mesmo de me verem ... já estavam
encantados com a minha mochila e a bandeira do
Caminho de Jerusalém. Saíram de
Arles há 10 dias e vão fazer só
até Toulouse.
Jantámos os três, no Gîte. Eu já tinha passado pelo "Vival", o
super da cidadezinha, a Chiara e o Marco foram lá depois ... e fizemos um bom
jantar comunitário, regado com um belo Domaine de la Baume, bastante
frutado. O blend de Syrah, Grenache e Carignan, típico do
Pays d'Oc ... combinou bem com o esparguete à bolonhesa e com o
Roquefort a complementar...😂. Amanhã ... amanhã a nossa Cruzada
prossegue ... a minha rumo a leste... 🙏
Publicado em 17.11.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos
Sonhos...
A maioria das personagens são ficcionadas. Qualquer semelhança com
pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
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2 comentários:
Quantos conhecimentos, quanta investigação bem fundamentada e que te permite tecer uma prosa fluída e tão agradável de ler.
Paz em 2028? Assustador!
Ah! Este sim. Acordei cedo e li com calma. Uma delícia! Bom caminho.
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