quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

De Fregeneda à foz do Côa, pela linha do Douro (1)
Ruta de los túneles

Notável obra de engenharia concluída em 1887, a linha ferroviária do Douro fazia parte da ligação internacional Porto - Paris. Desde 1985, contudo, o términus da circulação ferroviária na linha do Douro é
Fregeneda, 19.02.2012
Ruta de Los Túneles
a estação do Pocinho ... e o troço desactivado do Pocinho até Fregeneda, já em terras castelhanas, transformou-se num atractivo para os amantes do pedestrianismo. O percurso compreendido entre La Fregeneda e Barca d'Alva, numa extensão de 18km, é conhecido por "Ruta de los Túneles", compreendendo nada menos de vinte túneis e dez pontes!
Sites como "Rota dos Túneis" e outros, há muito que despertavam a minha curiosidade para aquela velha linha, esquecida e desgastada pela passagem do tempo. A oportunidade chegou via Facebook, através de um pequeno grupo com alguns elementos já batidos em linhas de comboio desactivadas. Afinal ... Barca d'Alva não é assim
Estação de La Fregeneda: é aqui que começa a "aventura"...
tão longe da "minha" Vale de Espinho, onde estava... J. E ainda desafiei um amigo de há muitas luas, companheiro também na minha "família" caminheira, para participar comigo nesta "aventura".
Assim, em domingo de Carnaval, saímos do meu "retiro raiano" antes das 6 da manhã, para ir ao encontro do grupo em Barca d'Alva, onde tinham dormido ... na velha e abandonada estação de comboio. No caminho, o carro tinha registado 6 graus negativos; embora ali não deva ter estado tão baixo ... alguns quase tinham congelado. E ainda ajudámos numa operação bem complicada, a de dobrar e arrumar uma daquelas tendas que se armam em 2 segundos ... e se dobram e arrumam em meia hora... J.
Este aviso não é para ler...J
O meu carro "descansou" em Barca d'Alva. Agora éramos 7, a bordo da carrinha em que tinham vindo, rumo a La Fregeneda, preparados para iniciar a caminhada. E que caminhada! Junto à estação, um painel da RENFE avisa os caminhantes sobre o mau estado das pontes ... mas não parece intimidar os aventureiros. Ainda meio adormecidos e "encolhidos" dentro de uma tenda, 3 ou 4 jovens deram-nos as boas vindas ao local ... mas nunca mais os vimos, não sei se concretizaram ou não a "ruta de los túneles".
E o primeiro túnel surge logo escassos 300 metros depois da estação. Comprimento deste primeiro túnel ... 2 km. Sensivelmente meia hora de escuridão, iluminados apenas pelos frontais e estimulados pela luz que se via sempre ao fundo do túnel,

Primeiro túnel ... de uma série de 20!
Este tem ... 2 km de comprimento
já que é completamente rectilíneo. Houve quem dissesse que era bom que se visse também uma luz ao fundo do túnel ... para o destino de Portugal...

É preciso ver o chão...
E meia hora depois ... fez-se luz...
... sobre o espectacular vale da ribeira de Morgáez
Ao sair do túnel, passamos a acompanhar o vale da Ribeira de Morgáez, afluente do Águeda. As panorâmicas começam a ser deslumbrantes.

Ainda ao longo do vale da ribeira de Morgáez
Segundo túnel, este bastante curto
O terceiro túnel é todo ele em curva. A linha faz um ângulo de sensivelmente 90º, passando do sentido NE / SW para SE / NW. Este túnel é habitado por uma extensa colónia de morcegos, cujos excrementos são bem visíveis no solo, atapetando carris e travessas, transformando o solo num tapete fofo que ameniza o sucessivo pisar das pedras. Nesta altura do ano, contudo, não fomos agraciados pelo voo e pelo cheiro daqueles quirópteros, já que se encontram na altura da prolongada hibernação.
À entrada do túnel dos morcegos,
cujos vestígios são bem visíveis

Colónia de morcegos, em forma de T no tecto do túnel
Também não vimos passar o comboio fantasma que, segundo se conta, ainda por lá passa. Aliás, essa enigmática composição de mercadorias espera neste túnel, enquanto as criaturas do submundo alimentam a sua caldeira com o fogo do inferno, até prosseguir a sua viagem, nas noites mais escuras, sem maquinista que o conduza (de "La Ruta de Los Túneles").

Vale do Águeda, à saída do túnel dos morcegos; do outro lado é Portugal
Ao sair do túnel dos morcegos, desembocamos directamente na primeira ponte, a Puente Morgados, que cruza pequenas linhas de água que correm para o Águeda. O Águeda é o rio "gémeo" do Côa, nascidos ambos do ventre da Serra das Mesas, a menos de 1 km um do outro, de lados diferentes da raia e correndo ambos para o Douro. No seu troço final, o Águeda faz fronteira entre os dois países, e é o seu longo e apertado vale que a velha linha de combóio acompanha, a meia cota das escarpadas encostas da margem direita, ao longo de paisagens de cortar a respiração.
De cortar a respiração é também a sensação de atravessar estas velhas e abandonadas pontes. O estado de deterioração das estruturas é grande, principalmente as de madeira, só sendo relativamente segura a passagem através de uma estreita viga metálica com 40 cm de largura. Decididamente ... esta não é de todo uma caminhada aconselhável a quem sofra de vertigens.

Primeira ponte, Puente Morgados
Como eu gostava de voar assim...
Única parte segura da maioria das pontes...
E lá se vai atravessando a Puente Morgados ...
O quarto túnel é curto e desemboca directamente na ponte de Pollo Rubio. É talvez a mais espectacular, tanto pela altura da ponte como pela espectacularidade das panorâmicas sobre o vale do Águeda. Sempre presente estava também o sabermos que esta linha foi construída nos finais do século XIX!

Vamos para o 4º túnel ...
... que sai directamente para a ponte de Pollo Rubio
Ponte de Pollo Rubio ...
Panorâmicas para o vale do Águeda
Este "caminheiro"
acabou aqui os seus dias...
Aspectos do vale do Águeda ... e o grupo dos "7 magníficos"... J
Mais dois túneis e chegamos à ponte de Pollo Valente. Esta ponte apresenta a característica rara de ter o seu traçado em curva. Devido a um incêndio, a passadeira lateral já não existe e as travessas da via encontram-se queimadas. Mais do que em qualquer outra, há que efectuar o percurso usando a estreita passadeira metálica que ladeia os carris.

Diversos aspectos da ponte de Pollo Valente, em curva e parcialmente destruída por um incêndio
Sucedem-se os carris, pontes, túneis, carris, pontes, túneis ...
Os pica-paus
trabalham bem!
Após o décimo segundo túnel ergue-se a ponte sobre o Arroyo del Lugar, que corre para o Águeda. Com os seus 300 metros de comprimento, é a maior ponte da nossa caminhada.

Ponte sobre o Arroyo del Lugar: 300 metros de comprimento, 60 metros sobre o barranco
O único apeadeiro em todo o percurso Fregeneda - Barca d'Alva
A pausa para o almoço já tinha ficado para trás. Ao fundo, já se percebe o vale do Douro. Ao único apeadeiro do percurso, segue-se a ponte de Los Pollos, esta em razoável estado.

Puente de Los Pollos
Já faltou mais...
Vale do Águeda
Estamos nos últimos quilómetros
Passavam uns minutos das três da tarde quando chegámos à ponte de Las Almas, a última em território espanhol. Esta zona foi cenário do maior acidente de que há registo neste troço da linha: em 2 de Outubro de 1899, um comboio de mercadorias descarrilou na curva anterior à ponte de Las Almas. Um comboio que nunca devia ter saído da estação de Fregeneda, já que ... o maquinista não era maquinista, o condutor não era condutor e os guarda-freios não eram guarda-freios. A velocidade era tal que chegou a ultrapassar os 140 km/h nalgumas partes do trajecto. Chegou de Fregeneda à ponte de Las Almas, lugar do acidente, em apenas sete minutos! (de "Historia de la Línea").
Pouco depois da ponte de Las Almas surge-nos um número "mágico": túnel número 20 ... o último!

Puente de Las Almas
O túnel nº 20 ... e último
Do túnel 20 ... saímos para a ponte internacional sobre o Rio Águeda
Da ponte sobre o Águeda avista-se a foz, no Douro, bem como o ancoradouro de Vega de Terrón, do lado espanhol, conhecido por ser o ponto terminal da maioria dos cruzeiros no Douro. A meio da ponte, uma placa completamente ferrugenta assinala a fronteira ... e chegamos à estação de Barca d'Alva!

Foz do Águeda e Cais de Vega de Terrón
Dois dos sete "heróis" desta "aventura"... J
A estação de Barca d'Alva dá-nos a mesma sensação que a de Fregeneda e tantas outras, a sensação de nostalgia e de viagem no tempo, transportados talvez para Eça de Queiroz, n'"A Cidade e as Serras".

Estação de Barca d'Alva: uma viagem às memórias perdidas no tempo
E por fim ... Barca d'Alva, a vila, o café, o merecido descanso. Ainda houve que ir buscar a carrinha que tinha ficado em Fregeneda, claro, e o grupo dos "sete magníficos" despediu-se ali. O autor destas linhas e o carola que consegui cativar para esta "aventura", íamos prosseguir, no dia seguinte, continuando a linha desactivada do Douro, até ao Pocinho. Os restantes 5 iam fazer a linha do Tua, dado já conhecerem este troço do Douro.

Despedida do grupo, em Barca d'Alva

Abraços, recomendações, desejos de nos reencontrarmos em mais "aventuras" ... e um adeus que é sempre um até breve. Fica o percurso desta primeira "etapa" da descida da linha desactivada do Douro e o vídeo desta fantástica "aventura".





No segundo artigo descreverei a segunda parte desta "aventura", de Barca d'Alva à foz do Côa.

6 comentários:

Lucília Benvinda disse...

Fantástica aventura!
Até fiquei com medo das pontes em ruínas... tudo tão podre!
E andar assim no escuro, nos túneis cheios de morcegos... até dá para um filme de terror.
Que equipa destemida! Parabéns!

António Mousinho disse...

A descrição desta aventura está perfeita.
Apenas não transmite a adrenalina que se sente, ao atravessar aquelas pontes, que, estando seguras, impressionam pelo facto de terem as partes em madeira muito degradadas, ou pura e simplesmente, já não existirem! Mas essa sensação, de caminhar sobre uma estreita lâmina metálica, que parece ainda mais estreita lá longe, e a dezenas de metros de altura, só se pode sentir, estando lá em cima!
Neste caso, foi a dividir pelos sete e ... chegou para todos!
E como dizia o outro, sempre concentradíssimos, porque qualquer distracção, podia ser fatal para os artistas!

JORGE FIGUEIREDO SANTOS disse...

Mais uma caminhada que muito me surpreendeu, paisagens nunca vistas e depois aquela extraordinária e exigente pista de que ninguém se podia perder ou afastar, uma centenária linha ferroviária desperdiçada no tempo e no propósito, recheada de obras de engenharia, túneis fantásticos e pontes, que a cada Inverno que passa mais adrenalina mobilizarão, como assinalou o Mousinho. Muito Bom! Seria a nota do Ribau...

JC disse...

... Já tinha lido este relato na "Itinerante", mas agora com as fotos a descrição ficou ainda mais atraente. Parabéns! Este será, sem dúvida, um dos percursos a incluir nas minhas rotas logo num futuro próximo. Abraço caminhante, JC

Luis Fonseca disse...

Grande relato e fotografias, parabéns aos aventureiros! :) Sem dúvida uma caminhada a acrescentar à minha "bucket list". A logistica deve ser complicada porque obriga a levar-se pelo menos 2 carros certo? Ou existe algum transporte de Barca até Fregeneda? 1 abraço caminheir.

José Carlos Callixto disse...

Sim, tem de ser dois carros, ou usar o taxista de Barca d'Alva ou do Pocinho. Não é difícil ... e é realmente fabuloso!