Estou sozinho no
Gerês, sobre o vale do
alto Homem, sensivelmente sobre a foz da ribeira da
Água de Pala. O dia já deu lugar à noite, luzinhas
acenderam-se nas aldeias galegas que se vêem lá longe, nos vales. Na tenda, o
jantar foi a primeira das várias latas que trouxe de casa: mão de vaca
enlatada, cozinhada … mas fria…! Um vinhito bom amenizou a amargura … e
um "trigo amarelo" de sobremesa, oferecido pela minha nora mais nova para esta
"aventura". Sim, a "aventura" em autonomia nas terras "mágicas" do Gerês
chegou finalmente!
|
8.05.2011: tudo começa na
Portela do Homem, para fazer o Trilho da Cumeada
|
Em Outubro do ano passado, na "aventura" a dois pelas terras mágicas do Gerês
luso-galaico, fiz a travessia
Pitões das Júnias -
Lobios e a "romagem" às
Minas das Sombras e
à linha de cumes do
Pico do Sobreiro aos
Carris. Mas o "bichinho" de uma travessia do Gerês em
autonomia tinha ficado a fermentar. Naquela altura, as horas de luz diminuíam
… mas agora, na Primavera, aumentavam. A partir do início de Abril, comecei
assim a acompanhar quase diariamente as previsões meteorológicas para o Gerês
… e encontrei um "furo" de meia dúzia de dias garantidamente secos a
partir de 8 de Maio, embora ainda com possíveis aguaceiros no dia de hoje
... que se confirmaram. Assim, às 7:30 h da manhã, de novo de mochila às
costas, como em Outubro, parti de autocarro para Braga … mas agora com duas
diferenças importantes: vinha sozinho … e trazia tenda, colchonete, saco-cama,
roupa e mantimentos para 3 dias e 3 noites em autonomia na serra! O objectivo
era subir o vale do
alto Homem pelo
trilho da cumeada, ou da
encosta do Sol - a encosta fronteiriça ao longo da margem direita do Homem - por
forma a assistir ao nascer do Sol nos
Carris ou na
Nevosa. Depois, alguns pontos de referência como "etapas"
desta "aventura", destacando-se as
Lamas de Homem, berço das
suas águas, as
Minas do Borrageiro (afinal as únicas que me
falta conhecer), o
Porto da Laje, as
Sombrosas…! Como o projecto é de autonomia … vai ser
delineado à medida que avance no terreno. O meu inseparável OziExplorer não me
deixa perder nas "minhas" terras mágicas, mas talvez ainda venha a fazer parte
desta travessia com um ou mais outros apaixonados pelo Gerês, cujos
blogs acompanho. Mas recuemos a Braga: hora e meia de espera pelo
autocarro para as
Caldas do Gerês, deu para o almoço. A
previsão meteorológica confirmava-se: nesse trajecto ainda choveu com alguma
intensidade. E chego ao destino pouco antes das 3 horas de uma tarde cinzenta
e pouco convidativa… As nuvens cobriam os cumes, mas decidi confiar na
previsão de melhoria a partir do fim da tarde … e apanhei um táxi, que me
"abandonaria" na
Portela do Homem. Era aí que começava a
"aventura"; os telheiros das antigas instalações fronteiriças foram portanto o
primeiro abrigo...
Algumas abertas perspectivavam-se no horizonte, embora o vento continuasse a
soprar de SW, trazendo nevoeiros e nuvens escuras. Quando a chuva parou …
mochila às costas … e às 15:45h desço o pequeno troço da estrada até antes da
ponte de S. Miguel, onde se inicia o velho e dissimulado
trilho da Cumeada, que me levaria
Encosta do Sol acima. Rapidamente o trilho ganha altitude …
mas a progressão com 22 kg às costas claro que é diferente…! O ritmo de
andamento é bem mais lento…! Mas o cenário compensava largamente o esforço:
quando as nuvens o permitiam, o Pé de Cabril sobressaía do
verde da Albergaria, a SW; o vale do
Alto Homem percebia-se, a sul, vendo-se por vezes o estradão
da margem oposta do Homem, o velho estradão mineiro que desci pela última vez
em Junho do ano passado, com os Caminheiros que participaram na travessia
Pitões - Portela do Homem. Nas encostas à minha volta, o amarelo e o roxo da
carqueja e da urze destacavam-se por entre os blocos graníticos, por vezes de
formas curiosas. Mas o nevoeiro de vez em quando parecia sair do vale,
encurtando os horizontes para uns escassos metros … e durante uns bons 15 a 20
minutos a chuva complementou as névoas; valeu de abrigo um pequeno mas denso
bosque.
|
Por entre a urze e a carqueja...
|
|
Vale do Alto Homem, do
trilho da Cumeada, em tarde cinzenta e chuvosa
|
Uma hora e meia depois estava acima dos 1000 metros de altitude, a encosta
galega abria-se para norte. Tinha vencido 250 metros de desnível … mas tinha
percorrido apenas uns escassos 2,5 km! Começava a desenhar-se a
impossibilidade de chegar aos
Carris. Mas, enquanto houvesse
luz … o caminho era para a frente e para cima! O declive diminuiu, e de vez em
quando havia já umas parcelas de céu azul. A previsão estava felizmente a
cumprir-se. O trilho bordejava agora a íngreme encosta norte do
Rio Homem, deixando ver em vários pontos as suas abundantes e
turbulentas águas. Estava também sobre a linha de fronteira, assinalada por
numerosos marcos, que servem igualmente de guia. Pequenas descidas permitiam
ganhar fôlego para as subidas que se lhes seguiam … e o fim de tarde foi
avançando, à medida que a altitude chegava aos 1100, 1200, 1250 metros. A
sensação de "perdido" nesta imensidão de rocha, urze e carqueja, ao longo da
cumeada que separa terras lusas de terras galegas, é a sensação de uma paz
interior que só a montanha nos dá!
Embora os céus estivessem já bastante mais limpos, o vento continuava a soprar
relativamente forte, de SW, aconselhando portanto a procurar um local de
pernoita do lado galego, abrigado por alguma penedia. Passavam 10 minutos das
19 horas, a 1260 metros de altitude, esse local apareceu, sob a forma de um
recanto encimado por grandes blocos de granito, aberto à vertente galega.
Ainda tinha pelo menos mais uma hora de luz, mas seria impossível chegar aos
Carris. Tinha percorrido apenas cerca de 5,5 km, o que, em
3,5 horas … deve ter sido a minha média de andamento mais baixa de sempre…
|
Quando dei por finda a jornada ... por entre as fragas e pragas do
Gerês / Xurés, no trilho da Cumeada
|
|
A sensação é sublime!
|
Armada a pequena tenda, ainda houve tempo para explorar as imediações … e
descobri que, ao fundo, já era possível ver a albufeira de
Vilarinho da Furna, o
Pé de Cabril à sua
esquerda, a mancha verde da
Bouça da Mó e da
Albergaria. As formas bizarras dos blocos rochosos permitem
formar quadros à medida da imaginação. Uma abertura entre dois enormes blocos
lembra a longínqua
Brecha de Rolando, nos Pirenéus. E aqui
estou, "perdido" na imensidão deste "
reino maravilhoso".
|
Barragem de Vilarinho das Furnas, vista do local
mágico onde me encontro!
|
|
Elementos...! Os deuses do céu e da Terra vão fazer chegar a noite...
|
Num estranho cruzamento entre o bucólico destes momentos e a tecnologia do
século XXI em que estamos, para além de rede telemóvel tenho internet … e as
primeiras fotografias da "cruzada" já foram postas na
net, à luz do pequeno frontal que me ilumina no interior da tenda. Mas convém
poupar as baterias ... de tudo. A temperatura já desceu significativamente ...
e, aos 57 anos, vou passar a minha primeira noite completamente sozinho, em
autonomia ... nesta "minha" Serra mágica do
Gerês!
3 comentários:
Meu Caro Calisto, nem imaginas como aprecio esta tua atitude de descobrir naquilo que quase toda a gente acha que já está descoberto. Tu descobres, compreendes, sentes, fundes-te! Os outros limitam-se a fotografar e é pena, pois por tantos sítios bonitos que temos em Portugal e o Gerês é, para mim, o expoente máximo, há um infinito a descobrir. Nao sei se tens dido capaz de transmitir essa atitude aos outros, em especial a pessoal mais jovem, mas bem importante seria. Para além das belas imagens que transmites, porque nao tentares transmitir também as sensações, os pensamentos, as evocações, enfim tudo o que de filosófico essas incursoes alimentam?Daqui, do meu posto de observação, continuo a seguir essas tuas caminhadas. Toda a saúde para as poderes prosseguir. Um abraço barrosao, Rui Chaves.
Meu caro Rui Chaves,
Transmitir as sensações, os pensamentos, as evocações e tudo o que de filosófico as minhas "aventuras" alimentam ... modéstia à parte é o que tenho tentado fazer; não me tenho limitado às imagens.
Quanto a transmitir a minha atitude aos outros, em especial a pessoal mais jovem ... também é o que procurei fazer durante 30 anos, ao levar largas centenas de alunos ao Gerês e aos mais variados paraísos naturais da Ibéria, vivências essas que foram partilhadas no blog. Muitos deles ficaram com essa "garra" e esse amor, já que muitos se mantiveram ligados às Ciências da Natureza, pelas mais variadas vias. Como disse no último post do endereço anterior do blog, curiosamente o "rejuvenescimento" deste aconteceu num dia em que me juntei com quase 60 ex-alunos, num cruzamento de gerações que abarcou gente desde o início dos anos 80 até aos primeiros anos do século XXI. Também modéstia à parte ... tenho a sensação de que deixei neles marcas e valores que perduraram e perduram.
Um grande abraço ... barrosão também, uma vez que embora eu não seja barrosão ... o Gerês e as terras do Barroso são uma das minhas "terras natais"...
Parabens pelo fantástico relato...espero chegar aos 57 anos com a mesma vontade de viver a vida em vez de vê la passar e nisso nada melhor do que nos deixarmos envolver pelo paradisiaco Gerês.
Ao ler o seu texto não parava de me vir á cabeça outro texto que para mim tem muito valor...
"...devias mudar radicalmente o teu estilo de vida e começar a ter coragem para fazer coisas que nunca antes tenhas pensado fazer ou que tenhas receado tentar. Há tantas pessoas que vivem infelizes e que no entanto não tomam a iniciativa de alterar a sua situação porque ficam condicionadas a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo. Tudo isto pode parecer conferir-lhes paz de espirito. No entanto, na realidade, nada é mais prejudicial para um espírito aventureiro no interior de um homem do que um futuro seguro.O principio básico do espírito livre de um homem é a sua paixão pela aventura. A alegria de viver provém dos nossos encontros com novas experiências, e por isso não existe maior prazer do que ter um horizonte em eterna mudança, para cada dia ter um sol novo e diferente. Se desejas tirar maior partido da vida, deves perder a tendência para a monôtona segurança e adoptar um estilo de vida agitado que, á primeira vista te poderá parecer extravagante. Mas quando te habituares a este tipo de vida, compreenderás todo o seu significado e incrivel beleza (...) e deves fazê-lo com economia: nada de hóteis, cozinha a tua própria comida, regra geral gasta o menos possível e apreciarás tudo com muito mais intensidade."
Abril 1992
Chris McCandlless
In “Into the Wild”
Enviar um comentário