terça-feira, 10 de maio de 2011

Autonomia no Gerês (2):
Cumeada - Carris - Minas do Borrageiro - Porto da Laje - Fafião

48 horas depois do primeiro "directo" ... cá estou a relatar a "aventura". A rede telemóvel só hoje voltou a ser suficiente para "transmitir" ... transmitir o turbilhão de sentimentos de êxtase que são intransmissíveis, infotografáveis, infilmáveis, mas que estão para todo o sempre guardados no mais íntimo das minhas vivências, no mais profundo das minhas recordações.
"Nas montanhas encontro a simplicidade que o Homem nunca terá,
o amor incondicional tanto apregoado mas que ninguém conhece,
que dá e recebe e nunca mentirá…
Uma cabana que proporciona todo o conforto que jamais a luxúria dará.
Serra! Tão simples e tão bela! ....
Paz de espírito, beleza rara, pura e simples, onde encontrar?
Serra! De fingimentos não precisa, nem de mostrar o que não tem,
pois ninguém olhará com ar de desdém!
E de mais não precisa, quem tudo isto na montanha sente, tem, e não tem..."
(Do blogue "Espírito da Montanha", de Alice Mota, também ela amante do Gerês)
Recuemos à minha primeira noite, no trilho da cumeada: dois polares e o saco cama permitiram uma noite suficientemente quente, até ao despontar dos primeiros alvores de um novo dia. Quando me apercebo, pouco passava das seis da manhã, confirmo todas as previsões meteorológicas: o Xurés galego estende-se em frente da tenda; não há uma nuvem no céu!

9.05.2011, 6h:06 - no algures belo onde passei a noite, o dia começa despontar...
... e o dia desponta esplendoroso! Ao fundo, a barragem de Vilarinho das Furnas
Pequeno almoço (a penúltima sandes, leite com chocolate…), higiene matinal (com toalhetes tipo avião…), arrumar a tralha, desmontar a tenda … e às 7:25h estou a partir para o resto do trilho da cumeada, do qual aliás tinha feito menos de metade. E assim, ora aproximando-me das vertiginosas vertentes da Encosta do Sol, ora mais próximo da linha de fronteira e da vertente galega, a minha "aventura" vai progredindo.

E a "aventura" progride, no reino do granito...
... por entre paisagens de sonho e de êxtase
Por comunicação via internet, sabia que um meu "cúmplice" de paixão, responsável pelo blog "Carris", vinha ao meu encontro precisamente nos Carris. Uma hora de marcha e estou aos 1400 metros de altitude. A partir daí, a progressão é razoavelmente plana. Avisto o Outeiro da Meda, o Curral das Albas, sigo para a Amoreira … e reconheço o já meu conhecido pico do Sobreiro, que com os seus 1538 metros de altitude é o segundo ponto mais alto do Gerês, a seguir à Nevosa. Antes das 10:30h, atravesso a Corga dos Salgueiros da Amoreira. Dá-me tempo à vontade de chegar aos Carris antes do Rui Barbosa, que me havia dito sair da Portela do Homem às 9:30h. Decido subir a encosta sul do pico dos Carris, directamente para o que resta daquela aldeia mineira. E às 11:20h chego, pela terceira vez, aos Carris! Não foi portanto ainda desta vez que ali assisti ao nascer do Sol … mas também não terá sido certamente a última vez que subi aos Carris…

9.05.2011, 11:20h: chego mais uma vez aos Carris!
Lagoa dos Carris, com a Nevosa ao fundo
Mochila a assinalar a minha presença à entrada, vejo chegar dois caminhantes àquelas paragens agrestes. São checos, amantes dos percursos pedestres. E faço tempo à espera do Rui Barbosa, ocupo-o com uma pequena "peregrinação" por entre as ruínas. Acerco-me da vertente da Lamalonga, vou até à beira da lagoa dos Carris. Defronte de mim, a Nevosa imponente … e lá ao fundo Pitões. Pitões das Júnias … a aldeia mágica! Regresso à entrada do complexo mineiro, refresco-me nas águas límpidas e frescas, almoço. O Rui Barbosa não chega … e poucos minutos antes da uma da tarde decido começar a descer o estradão, ao seu encontro. E é assim que conheço pessoalmente o responsável pelo blog "Carris", afinal acompanhado por outro amante destas terras e igualmente "blogueiro" da Natureza e do Gerês, através do blog "Portugal Nature". Vieram também pela Encosta do Sol, mas descendo depois ao Teixo e ao velho estradão mineiro em que nos encontrámos. Trocamos impressões, partilho as ideias que tenho em mente, como já o havia feito por mail … mas têm o carro na Portela do Homem, onde portanto têm de regressar. Definitivamente … a minha "aventura" era para viver a solo! O Rui e o Xavier seguem para os Carris … eu sigo para as Lamas de Homem.

Curral das Abrótegas
Ponte das Abrótegas, alto Homem
Lamas de Homem. Apetece-me citar Xuacu Amieva ... "onde l'agua ñaz". Aqui nasce o Rio Homem!
Os prados e lameiros das Lamas de Homem são a fonte de onde brota o Rio Homem. Pouco antes da Ponte das Abrótegas, abandono o estradão mineiro, em direcção ao sul, subindo o rio recém nascido, que cruzo por volta das 13:30h … para recomeçar a subir. A 1460 metros de altitude, um pouco a norte dos Cocões do Concelinho, o êxtase da panorâmica que se me apresenta leva-me a uma paragem, para partilhar com a família e amigos a sensação extraordinária de ali estar. Num ângulo de 180º, toda a vertente leste e sul da Serra do Gerês aparece aos meus pés, com Pitões no horizonte, mas uma povoação maior - em princípio Montalegre - ainda mais ao longe. Mais perto, as aldeias do sul do Gerês - Cela, Lapela, Xertelo, Cabril - e o vale do Cávado. E, mais perto mas bem mais abaixo de mim, as Lagoas do Marinho, onde havia estado já em 2008. Estava bem no coração do Gerês profundo. Sentia-me no topo do mundo, rei daquela panorâmica ímpar ... daquele "reino maravilhoso"!

Ao fundo, as Lagoas do Marinho
No coração do Gerês profundo. No topo do mundo, eu era rei daquela panorâmica ímpar ... daquele "reino maravilhoso"!
Contorno a face oeste dos Cocões do Concelinho, desço ao vale da Corga das Mestras, que acompanho durante quase meia hora. O trilho ruma depois a sudeste. Reaparecem as Lagoas do Marinho, já mais perto, e desço para as Minas do Borrageiro. Muito mais modesto que os Carris, este complexo mineiro está contudo no mesmo estado de degradação e abandono. Quantas histórias, quanto sofrimento, quanta dor guardarão aquelas ruínas. A saga do volfrâmio deixou memórias nas terras e nas gentes do Gerês.

Rumo ao Penedo Redondo e às Minas do Borrageiro
Corga das Mestras
Minas do Borrageiro. A saga do volfrâmio deixou memórias nas terras e nas gentes do Gerês.
São 16:15h quando deixo o Borrageiro. A tarde está quente. Com o Penedo Redondo bem à minha frente, falta-me pouco para as Lagoas do Marinho, ou para o estradão do Porto da Laje, meu próximo objectivo. Meia hora depois, aos 1200 metros de altitude … encontro contudo uns convidativos e frescos prados, quase suspensos sobre o abrupto vale do Porto da Laje. Ainda umas boas duas horas e meia de descanso, com bom Sol e água fresca, eram uma tentação difícil de resistir. E a tentação venceu...! Que cenário! Entrada da tenda virada para o vale, só apetecia rebolar naquela relva verde e fresca! A descida ao Porto da Laje ficaria para o dia seguinte, mantendo-se possíveis as duas hipóteses estudadas a partir daí: regressar ao Gerês via Fichinhas e Conho, onde poderia dormir a terceira e última noite, ou descer para Fafião, completando nesse caso uma travessia total da serra, no sentido norte/sul. Tinha feito 7 km desde os Carris, quase 15 km desde manhã, quase 20 km desde a Portela do Homem.

Sobre o vale do Porto da Laje, onde resolvi dar-me um fim de tarde soalheiro, contemplando o indescritível...
... e com este jardim
por companhia!
A noite foi muito menos fria do que a anterior. Quando acordei, o Sol já começara a preencher o vale do Porto da Laje. O cenário era de sonho! Mas 20 minutos antes das 9 da manhã deixo aqueles prados, que foram a minha "casa" por um fim de tarde soalheiro e uma noite amena. O trilho sobe um pouco a encosta … e cheguei ao morro onde havia subido em Julho de 2008, a partir das Lagoas do Marinho, que agora vejo pela última vez. Às 9 horas estou no estradão do Porto da Laje, precisamente no ponto extremo onde naquele ano tinha feito inversão. Desta vez ia mesmo descê-lo: 5,5 km de um velho estradão, que conduz a uma velha mini-albufeira, construída no rio da Pigarreira, bem no fundo daquele profundo e apertado vale. O Penedo Redondo vai ficando para trás, cruzo as Corgas da Mão de Cavalo e de Valongo, começo a ver a face leste do maciço das Sombrosas. E às 10:10h chego ao Porto da Laje, a 790 metros de altitude: tinha descido mais de 400 metros. Ali se juntam o rio da Pigarreira e o rio da Touça, vindo este último do profundo vale que bordeja a face oeste das Sombrosas. Meia dúzia de vacas eram as guardiãs do Porto da Laje!

10.05.2011: já no estradão do Porto da Laje, descendo para o vale
Primeira vista das Sombrosas, face leste
E chego ao Porto da Laje
O dia soalheiro, algum calor, o esforço acumulado e as águas límpidas convidavam ao banho. Na margem mesmo da albufeira, larguei a tralha … e tentei entrar. Mas a água era gélida! Até doía os ossos! Só deu portanto ... para "chafurdar". Mas foi o suficiente para revitalizar! As vacas vigiavam-me, atentas. E no Porto da Laje havia que decidir: Fafião ou Conho? Para o Conho, subiria o vale do rio da Touça, ao longo das Sombrosas, contornando depois as Fichinhas, em direcção à Mourisca e àqueles prados de altitude; seriam 5 km sempre a subir, voltando aos 1250 metros, num resto de manhã e tarde que prometia ser quente. Para Fafião era mais longe (cerca de 8 km), mas quase sempre a descer, ao longo das encostas do rio do Porto da Laje, que não é mais do que a continuação, para sul, do rio da Pigarreira. E foi esta última opção que tomei, deixando portanto as Sombrosas gradualmente para trás, deixando também as Fichinhas, Mourisca, Conho e outras zonas para outras "aventuras". As terras mágicas do Gerês têm ainda muito para me revelar!

Vale do Rio de Fafião
Ainda as Sombrosas, agora vistas de sul
À medida que progredia, ia achando que tinha tomado a melhor opção: o trilho era espectacular, com panorâmicas assombrosas sobre o vale, sempre com as Sombrosas a fechá-lo a norte; para sul, recomeçava a desenhar-se o vale do Cávado, com a Serra da Cabreira a fechar o horizonte. O trilho por vezes sobe um pouco a encosta, para contornar as cabeceiras das muitas corgas que descem para a margem esquerda do rio Fafião … novo nome do mesmo rio do Porto da Laje e da Pigarreira. Num pequeno troço do percurso … a parede rochosa é nua e mal se sabe bem onde pôr os pés … mas rapidamente a sensação de insegurança é ultrapassada; um corrimão de corda faria ali bastante falta. Um pouco mais à frente o trilho continua estreito … mas suficientemente largo para uma simpática vaca ter feito quase 1 km à minha frente... Ela lá saberia de onde vinha e para onde ia, mas ficou a beber água num pequeno ribeiro, quando o carreiro se abriu para novos e vastos prados verdes, uns 4,5 km ainda a norte de Fafião. Seguramente era para ali que ia a minha companheira naquele último quilómetro, juntar-se às suas congéneres e aos cavalos que por ali pastavam livremente.

Prados a norte de Fafião
Passados os prados, o trilho dá lugar a um estradão rural, com uma inclinação bastante razoável nalguns troços; os dedos dos pés acusam a inclinação…! Reaproximo-me do rio de Fafião, a altitude é já de apenas 600 metros. Do outro lado do vale percebe-se a encosta do rio Conho e da Malhadoura … outras áreas a explorar. 2,5 km antes de Fafião … surge uma fonte providencial; quase tomo banho nela! E às 15:30h, mais cedo do que havia previsto, entro em Fafião, a 500 metros de altitude, com 14,5 km percorridos desde manhã.

10.05.2011, 15:30h: Chego a Fafião ... e ao fim da "aventura"
Ao optar pela travessia para Fafião - e tendo programado regressar a casa amanhã, 4ª feira - a ideia era prosseguir para Salamonde (menos de 5 km), ou para o Gerês (14,5 km, pela Malhadoura e Arado); nesta segunda hipótese, dormiria provavelmente na Malhadoura. Ou descansaria por ali mesmo, nos "arredores" de Fafião; no dia seguinte rapidamente estaria em Salamonde. Depois, em Salamonde ou no Gerês, apanharia o autocarro para Braga … e regressaria a casa.
Estava eu nestas congeminações … quando um simpático casal de aldeões, ele ao volante de um velho Opel que mais parecia saído do "Conta-me como foi", se aproxima de mim e pergunta: “então quem é o senhor? o que faz por aqui?”. Respondi: “se eu lhes disser de onde é que venho, a pé, não acreditam…”; e logo acrescentei: “venho dos Carris, e antes disso da Portela do Homem!”. Resposta: “acredito sim, a gente conhece isso tudo, dantes andava por aí sempre, com o gado”. E eu esclareço: “amanhã vou apanhar o autocarro em Salamonde, ou no Gerês, para ir para casa, já aqui ando há 3 dias”. É então que o diálogo me espanta: “homem, venha daí mas é connosco, nós vamos para o Gerês, lá tem mais autocarros do que em Salamonde” … o que era um facto. A proposta era portanto tentadora … e aceitei-a. Assim, meto a mochila no carro e, naquele velho Opel talvez dos anos 70, lá vamos pela velha estrada da Ermida.
Antes das cinco da tarde estava no Gerês. Ainda podia ir para casa … mas chegava de madrugada. Onde montar portanto a tenda? O velho parque do Vidoeiro só está aberto a partir de Junho; ou montava a tenda num largo da vila (pouco recomendável…), ou me afastava uns quilómetros para uma mata próxima (pouco prático…) … ou me alojava numa das muitas unidades da vila... J! Para falar verdade, tendo portanto completado as "aventuras" que tinha idealizado … a última hipótese era a mais tentadora... J! E cá estou: a última das 3 noites "de campo" … vai ser em quarto de hotel! E há muitos anos que não saboreava as delícias do bom e prolongado banho de imersão, em água bem quente, em que mergulhei pouco depois de entrar no quarto... J

Amanhã o Gerês terá ficado para trás, guardando os seus segredos e maravilhas para outras aventuras. Esta foi a minha primeira travessia em autonomia … mas seguramente não será a última. Dela ficou o álbum completo de fotografias ... e o vídeo que mais tarde se associará a este post.
Clique para ver o álbum completo de fotos

Os números da "aventura":

– cerca de 48 horas sozinho na serra (das 15:45h de domingo às 15:30h de 3ª fª), incluindo 2 noites;
– 34 km percorridos, da Portela do Homem aos Carris e dos Carris a Fafião;
– cerca de 17 horas de caminhada, no conjunto das três "etapas";
– altitude à partida: 753m (Portela do Homem);
– altitude máxima: 1465m (Carris e sobre as Lamas de Homem, a norte dos Cocões do Concelinho);
– altitude mínima: 496 metros (Fafião)

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