quarta-feira, 4 de agosto de 2021

De Santander a Ponferrada, pelos Caminhos de Liébana, Vadiniense e Olvidado (4)

Ao 13º Dia de Caminho, tinha chegado a Fasgar. Uma pequena aldeia a 1320 metros de altitude, perdida nos montes de León, onde acaba a estrada. Mas uma placa junto à ponte sobre o rio Vallegordo (foto na crónica anterior) era explícita e apelativa: Campo de Santiago ... apontando para as montanhas.

Camino Olvidado
2ª Parte: De Fasgar às terras templárias de El Bierzo
2.Agosto.2021, 7h40 - Fasgar já ficara para trás e para baixo, numa alvorada cheia de cor e de luz
Saí de Fasgar antes das sete horas. A checa que por vezes ficava on the wild ainda dormia; deixei-lhe uma mensagem idêntica à que tinha deixado aos meus ángeles del Camino ... mas quando a voltei a ver dois dias depois não se manifestou. Rumo a ocidente, iria voltar aos quase 1700 metros de altitude, ladeado a norte e a sul por picos que se aproximam dos ou ultrapassam os dois mil metros. Sabia que esta era uma etapa curta, de apenas 19 km, sabia que nesses 19 km encontraria apenas uma única pequena aldeia ... mas não sabia que esta etapa tinha tanto de fantástica como de dura...

Por trilho íngreme mas de bom piso, chego à Fuente del Abedul, ou Fonte dos 3 Canos
Neste troço passou por mim a boa velocidade um caminhante com uma pequena mochila. Já tinha feito Caminhos de Santiago, mas agora estava apenas em senderismo; ia fazer alguns dos "dois mil" existentes nas imediações. Deixei-o seguir ao seu ritmo, que os meus pés não estavam para brincadeiras; e ainda nem sabiam o que tinham pela frente...
Mais uns vinte minutos e chego ao Collado del Campo, a 1641 metros de altitude. Para lá do collado, tinha à minha frente e quase 200 metros mais abaixo, o grande vale glaciar conhecido por Campo de Santiago.
Recuemos ao ano 981. Vendo-se em grande desvantagem numérica frente aos invasores muçulmanos, os Cristãos pedem ajuda ao rei de Leão, que contudo lhes diz que era tão difícil expulsar os mouros daquelas recônditas paragens do que capturar um urso vivo. Feridos no seu orgulho, no dia seguinte os aldeãos apresaram um urso e levaram-no ao monarca, como mostra de valentia e decisão. Uniram forças, regressaram à frente ... e é então que, no vale glaciar que eu agora tinha aos pés, lhes aparece o Apóstolo Santiago à frente dos cruzados, montando o seu corcel branco e brandindo a sua espada, como já acontecera em Clavijo; comandando as tropas muçulmanas, Martín Moro, chamado Toledano pela sua origem. "Dios ayuda a Santiago", gritavam as tropas Cristãs ... e a própria Virgem Maria enviou anjos como cavaleiros armados. Os mouros, julgando tratar-se de um exército muito maior, logo começaram a fugir; foram mortos e tornados prisioneiros mais de setenta mil; poucos escaparam.*

Campo de Santiago, na primeira foto visto do alto do Collado del Campo (1641m alt.), 8h20
Ermida de Santiago (1480m alt.), 8h55
À medida que descia para o vale glaciar, parecia-me ouvir nos ares:

Señor Santiago bendito
que de los cielos bajaste
veinticinco mil moros mataste
en el campo de la victoria.
Y ahora te vas a los cielos
con los santos y la gloria.*


* Lenda e canto em honra de Santiago adaptadas de "Leyenda del Campo de Santiago (Fasgar)"

Apetecia-me deixar-me ficar por ali umas horas ... mas agora havia que seguir o rio Boeza para sul
E ao seguir o rio Boeza ... pouco depois entrava em terras de El Bierzo, a grande comarca administrativa do noroeste de Leão, paredes meias com a Galiza. O trilho acompanha o imponente desfiladeiro do rio Boeza ... e que desfiladeiro ... e que trilho! 7 km de pedra solta ... mais de 400 metros de desnível descendente; abençoados bastões ... abençoados pés que a tanto resistiram ... quando a bota direita já estava estoirada mesmo ... e obrigado Santiago, pela mais do que evidente ajuda que só o facto de invocar o teu nome me deu ... num trilho fabuloso, fantástico mesmo! Ultreïa!

Descida do Campo de Santiago às Colinas de Martín Moro Toledano, ao longo do fabuloso desfiladeiro do rio Boeza
Esta seria a única aldeia ao longo da etapa ... com um nome quase maior do que a própria aldeia. Colinas, como é mais simplesmente conhecida, é uma bonita aldeia de montanha, com uma ponte medieval e um conjunto arquitectónico de que se destaca o arco de pedra integrado na Igreja e sob o qual passa o Caminho. Junto ao chafariz ... houve paragem para mais uma das já habituais "revisões" aos pés. A partir dali o trilho era felizmente bem mais suave ... mas menos espectacular. Antes das duas da tarde estava em Igueña, alojado no muito bom albergue "El Catoute"; em frente, o Restaurante "La Playa" serve óptimos menus a bons preços; depois das agruras do Caminho ... almocei e jantei lá.
Apesar da dureza (ou se calhar também por causa dela...), esta foi sem dúvida alguma a etapa rainha do meu Caminho Olvidado.

Igueña e o Albergue "El Catoute",
à beira do rio Boeza
Em Igueña eu estava ... a 50 km de Ponferrada. A minha "aventura" aproximava-se do fim. Com a ajuda de Santiago e das forças do Universo, já não havia dúvidas de que cortaria a meta que me tinha proposto. Esses 50 km, tinha-os dividido em duas etapas, uma de 36 até Congosto, povoação pequena com albergue ... e os restantes 14 km de ligação na manhã do último dia a pé.

A Cruz Cercenada (a Cruz marcada pela espada de Almanzor), entre Igueña e Quintana de Fuseros, 3.Ago.2021, 7h30
Sucedem-se paisagens típicas de El Bierzo. Até já há castanheiros. E ao fundo já se vão percebendo os montes d'O Cebreiro
Cobrana, 14h30 - Quando menos se espera ... Santiago intervém pela mão da simpática Geli
Nas aldeias por onde passara - Labaniego, Arlanza, Losada, Rodanillo - nem um bar. Eram duas e meia na aldeia de Cobrana; na mochila tinha bolachas e uns bolitos secos; se houvesse um bar bebia uma Coca Cola com gelo ... e almoçava as bolachas. Bar havia, em Cobrana ... mas estava fechado. Ao passar contudo na rua que lhe dava acesso, uma senhora sentada à porta de casa perguntou-me se precisava de algo ... falei-lhe na Coca Cola ... e ela disse-me "puedes sentarte, lo abriré"; maravilha!
Já com a Coca Cola à frente e antes de tirar as bolachas da mochila ... perguntou-me se não queria comer nada ... perguntei o que havia ... respondeu "Si quieres te hago unos huevos fritos con chorizo". Voltou a casa ... e passado um bocado apareceu com o prato que a foto documenta!
Entretanto apareceram dois indivíduos a falarem com a senhora ...
numa mistura de português e castelhano. "São portugueses?", perguntei. Claro que eram, trabalhavam na zona. E assim, caído do céu pela mão da simpática Geli e na companhia de dois portugueses ... não almocei bolachas com Coca Cola...
A "equipa" de um inesperado almoço em Cobrana ... 3 portugueses e a fantástica Geli, uma estrela do Caminho
De barriga cheia e porque até o café teve "cheirinho" ... até os pés ficaram mais leves...
Entre Cobrana e Congosto, sobranceira ao Rio Sil e à enorme Barragem de Bárcena, situa-se o Santuário da Virgen de la Peña. É necessário um pequeno desvio de subida e descida, mas a Virgen de la Peña faz parte do Caminho Olvidado. Dali se vislumbra grande parte da comarca de El Bierzo.

Santuário da Virgen de la Peña, sobre Congosto e a Barragem de Bárcena, no Rio Sil
E eram quatro e meia quando entrei em Congosto ... última dormida antes da curta etapa do dia seguinte até Ponferrada. O Albergue de Congosto - onde mais uma vez fiquei sozinho - é simples mas tem tudo ... até máquina de café; e é de donativo. Bem menos agradável é o comportamento da Mesón "La Tueca", próxima; no exterior, uma placa anuncia "Cenas desde las 20h"; bati à porta, atende-me uma senhora mal encarada, que me informa que "no hay cenas" ... e de nada valeu perguntar para que serve a placa. Depois do almoço caído do céu não me importei grandemente ... jantei as bolachas 😂

Congosto e no respectivo
Albergue: simples mas completo
O dia em que completamos um projecto é sempre emotivo. Naquela manhã, ao longo de 14 km marcados pelo Rio Sil, os meus pensamentos divagavam entre a "vitória", agora certa, num desafio que desde cedo se mostrou mais duro do que o previsto, a sensação de estar pela primeira vez sozinho também nesta euforia final, a estranheza de não terminar a "missão" em Santiago ... tudo bailava entre os meus ticos e tecos ... e foi nessa euforia, com lágrimas de felicidade nos olhos e no coração, que às onze e meia da manhã cheguei ao imponente Castelo Templário de Ponferrada!
4.Agosto.2021, 7h50 - Os pensamentos nascem com o Sol e a magia das cores, no último dia desta minha peregrinação. Algures naqueles montes ... está a mágica e mística Cruz de Ferro, no Caminho Francês
Até bem dentro já da área urbana de Ponferrada, continuo a acompanhar o Sil ... que mais para ocidente,
na Galiza, constituirá a "Ribeira Sacra"
E pelas onze e meia de uma manhã gloriosa, chego ao Castelo Templário de Ponferrada. A minha missão estava cumprida!
Claro que a sensação de chegar a Ponferrada não é a mesma de chegar a Santiago ... mas foi bastante emotiva. Frente ao Castelo, estive parado uns bons minutos, largos ... a mandar mensagens aos meus Amigos mais chegados ... aos meus ángeles del Camino, a Isi e o Jesus ... ao meu "ninho" ... à minha estrela raiana, que ainda menos de 3 meses antes chegou comigo ao Obradoiro, naquele que foi o seu primeiro Caminho de Santiago. Descomprimida a emoção da chegada, fui carimbar a Credencial ... que um dia, pelo Caminho de Inverno ... há-de ser usada para continuar este projecto...
E ainda o Rio Sil, com o passeio ribeirinho por onde horas antes eu havia chegado
Depois ... divaguei pelas ruas do centro histórico, pejadas de gente. Ponferrada fervilhava de peregrinos (certamente que a maioria no Caminho Francês) e de turistas. Sentei-me numa esplanada, mandei vir uma caña e uma pizza ... e demorei o mais que pude a saboreá-la ... mas a saborear principalmente o que me ia na Alma. Se o Caminho a dois, em Maio, com a minha estrela, reforçou o meu orgulho no ninho que com ela construí ... esta dura prova nestes Caminhos transcantábricos foi o exorcizar definitivo dos fantasmas que talvez ainda povoassem os meus pensamentos mais sombrios. Viva a Vida! Viva o Universo! Obrigado, Santiago! Ultreïa!
Epílogo
Como o Universo é Inteligente ... quando estudei as formas de regressar de Ponferrada a casa concluí que a mais rápida e económica era ... ir a Santiago de Compostela! E assim, às quatro da tarde em que cheguei a Ponferrada ... parti de autocarro para o campus stellae. Curiosamente (ou talvez não), grande parte do percurso acompanha a "ribeira sacra", o vale do Rio Sil, ou seja ... o Caminho de Inverno. E às sete e meia de uma tarde magnífica ... cheguei a Santiago!
Ponferrada, 15h40: prestes a deixar a cidade ... a ursinha
que andou pendurada na mochila vai recolher ao interior
Do autocarro Ponferrada / Santiago ... continuo a acompanhar o Rio Sil ... a "Ribeira Sacra"...
Ainda do autocarro ... ao fundo o "meu" Pico Sacro ... com as memórias do meu primeiro Caminho
E ... Santiago de Compostela ... Obradoiro, 20h10
Não cheguei a pé, não era essa a meta desta vez ... mas hei-de chegar ... num dia de Inverno...
Santiago fervilhava de gente e de Vida! Que diferença desde Maio! Nunca me canso de assistir ao movimento ... de ver chegar os peregrinos ... nunca me canso daquela cidade mágica. E pela segunda vez neste mesmo Ano Santo de 2021 ... entrei na Catedral pela Porta Santa.
Santiago, 4.Agosto, 21h00 ... As imagens de que nunca me canso...
Ao jantar ... um belo pulpo a feira ... um belo irish coffee ... uma bela fatia de tarte de Santiago. Merecidos, penso 😃. No dia seguinte regressaria a Lisboa ... tinha uma estrela à minha espera...
Os números:
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16 dias de Caminho
438 km
12052m desnível D+
11532m desnível D-
Alt. mínima: 0m
Alt. máxima: 1784m
(Escrito em 13 e 14 de Agosto, após o regresso)             
 

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