quarta-feira, 18 de março de 2020

No Caminho dos Peregrinos ... no dia -1 de uma longa noite...

But the light will come after the darkness ...

No primeiro trimestre de 2019, às minhas habituais "aventuras" passei a associar uma vez por outra umas caminhadas semi-urbanas, a que chamei genericamente "Into the light ", por incluir inúmeras vezes o troço em que a várzea do Trancão faz parte do Caminho dos Peregrinos, o Caminho de Santiago e de Fátima. Muitas dessas caminhadas, ou passeios, não justificaram aliás um post específico nestas minhas singelas memórias da vida ao ar livre.
Contudo ... nunca imaginei que um trilho que já percorri "mil vezes" viesse a ser palco de uma catarse como a de hoje ... uma tentativa de libertação do corpo e da alma ... da negra sombra que a pandemia Covid-19 veio lançar sobre o Mundo, qual manta que nos quer abafar e sepultar. No dia -1 para entrarmos no estado de emergência que seria indesejável, quando estamos em guerra contra um inimigo invisível ... estes 12 km pela várzea do Trancão e regresso souberam a catarse ... a libertação ... a recarregar baterias. Quando há pouco mais de uma semana mergulhei na "minha" Malcata ... quando na 5ª feira regressei de Vale de Espinho com a estrela que me acompanha há quase meio século ... estávamos ainda longe, muito longe, de imaginar a dimensão da catástrofe que estava já a abater-se também sobre nós ... depois da China ... depois de Itália ... depois de Espanha ... depois de todo o Mundo. No sábado, teríamos tido a caminhada comemorativa do 35º aniversário dos Caminheiros Gaspar Correia ... que foi naturalmente cancelada ... como canceladas estão praticamente todas as actividades que não são prioritárias. Parafraseando os galegos Fuxan os Ventos ... "o noso esprito" entrou numa longa "noite escura e bretemosa" ... sem dúvida a maior praga de que há memória desde há pelo menos um século. Mas temos todos de acalentar a esperança de que, nessa longa noite ... "vese un raio de sol, vese unha rosa, que abrirá, no mencer, novos camiños".


Várzea do Trancão, 18.Março.2020, 13h55 ... no Caminho da Esperança
Na iminência de ser decretado o estado de emergência ... terei sido louco em sair de casa? Não creio. Esta guerra não se trava no ar que respiramos. Hoje mesmo pode-se ler que França e Bélgica aconselham a actividade física ao ar livre. O que ninguém aconselha é o "espectáculo" que vi por exemplo numa roulotte-bar na Portela da Azóia ... com numerosos clientes em amena cavaqueira na respectiva esplanada! É por estas e outras que concordo com o estado de emergência. Deveria ter sido decretado ... anteontem...

Há vida no Trancão que um dia não a teve ... haverá Vida
para Viver depois desta "noite escura e bretemosa" ...
Into the light ...
No Caminho dos Peregrinos ... não vi evidentemente ninguém. Por esta altura ... nos últimos anos tenho estado em contagem decrescente ... este ano para um Caminho muito improvável. Podemos adiar os Sonhos ... mas não podemos adiar a Vida!
Sozinho ... percorrendo o Caminho "mil vezes" percorrido ... apeteceu-me gritar. Gritei mesmo, a plenos pulmões ... eu diria ... que URREI ... run wild, run free...! Eu próprio me assustei com os meus "gritos de guerra". Foram os pulmões a dizer NÃO ao vírus ... a esse inimigo invisível, que não passa de um código ... codificado pelos mistérios do Universo...

A Primavera aproxima-se, nas colinas de Santa Iria de Azóia
Percorri o Caminho de Santiago e Fátima até à Quinta do Monteiro Mor. Depois, na íngreme subida para a Portela da Azóia ... até as pernas me pareceram agradecer o desentorpecimento a que foram obrigadas. Indiferentes aos vírus e ao Mundo um pouco a desabar ... um rebanho de cabras pastava nas colinas, oferecendo aos ares a música dos seus chocalhos.
Não ... elas não transmitem os coronavírus...
O regresso, naturalmente, foi uma caminhada muito mais urbana, pelos bairros. Aqui sim, todo o cuidado seria pouco. Não tocar em objectos, não passar a menos de 1,5m de outras pessoas. Mas ... se tivesse chegado de algures e não soubesse desta praga que nos assolou ... muito sinceramente creio que não notaria nada. O movimento de pessoas e de carros era o habitual ... e já vos fiz o "retrato" da roulotte-bar da Portela da Azóia...

Duas imagens de esperança ...  the light will come after the darkness
Com 12 km percorridos em duas horas e meia, pouco depois das quatro da tarde estava em casa. E esta crónica ficaria incompleta se não referisse aquela que foi, talvez, a única diferença notória que encontrei nas ruas: ao cruzar-me com outras pessoas, ouvi muito mais do que habitualmente ... "boa tarde"! Será que vai ser verdade o teor de um texto que tem circulado bastante nas redes sociais?...
"Algo invisível chegou e colocou tudo no lugar. De repente os combustíveis baixaram, a poluição baixou, as pessoas passaram a ter tempo, tanto tempo que nem sabem o que fazer com ele, os pais estão com os filhos em família, o trabalho deixou de ser prioritário, as viagens e o lazer também. De repente, silenciosamente, voltamo-nos para dentro de nós próprios, entendemos o valor da palavra solidariedade...
Bastaram meia dúzia de dias para que o Universo estabelecesse a igualdade social que se dizia ser impossível de repor. O MEDO invadiu todos...
Que ao menos isto sirva para nos darmos conta da vulnerabilidade do ser humano. Não se esqueçam: BASTOU MEIA DÚZIA DE DIAS"
E assim, esta noite, na véspera do estado de emergência ... antes de irmos dormir ... pensemos em quando nos abraçarmos de novo ... em quando as coisas mais simples nos vão parecer uma festa ... em quando regressarmos juntos aos cafés, às conversas, às fotos em que nos apegamos uns aos outros ... em quando regressarmos juntos aos nossos Sonhos... Pensemos que isto vai ser apenas uma memória ... quando a normalidade nos parecer um presente inesperado e lindo! Então ... vamos Amar tudo o que até agora nos pareceu inútil. Cada segundo será valioso ... os mergulhos no mar, o pôr do sol, os brindes, os abraços, as jantaradas, as gargalhadas ... as caminhadas campos fora ... Peregrinando.
Voltaremos a rir-nos juntos, sim ... poderemos até um dia rir-nos disto. Agora ... não! Agora ... vamos acreditar que amanhã ... o hoje ... já será ontem ... VAMOS ACREDITAR NO FUTURO!

1 comentário:

Raul Fernando Gomes Branco disse...

Excelente e bonita prosa! Espero ansiosamente que os teus desejos se realizem e voltemos a rir em amistosa cavaqueira! Um abraço amigo.