Segunda feira, 20 de Abril, pouco antes das onze da manhã. Estou em
Ourém, no quarto da
Pensão Ouriense, onde acabou o meu Caminho
Santa Cruz - Santiago, ou melhor ... onde o meu
Caminho teve uma pausa forçada. Aquele "amanhã" era outro dia ... mas não era "
um dia de caminhar, um dia de tentar!".
Nas lucubrações à volta do que se havia passado, com o sabor da decisão ponderada mas amarga ... recebo um mail do meu filho Rui:
"Pois ... o Caminho acabou ... este Caminho ... assim
quis o "destino" ....
Mas este Caminho não acabou apenas para ti ...
a tristeza não é apenas tua ..."
Ao 22º dia de Caminho, estava combinado o meu Irmão Vítor, companheiro do "
Caminho da Aventura", levar a minha amada ao meu encontro ... e entraríamos juntos em
Santiago, fazendo a pé a derradeira etapa. Ora ... o mail do meu filho continuava:
".... já tínhamos tudo planeado para não apenas a mãe, como julgavas, ir ter contigo a Ponte Ulla ... eu e o João também éramos para ir!
Tal como tu, também já eu tinha tudo programado há bastante tempo, praticamente desde que a avó "partiu" e que disseste que ias fazer o Caminho a partir de Santa Cruz ... ocorreu-me que se ficarias satisfeito com a mãe ir fazer a última etapa, mais satisfeito ficarias se a fizéssemos os 4 ! E que seria certamente uma muito boa surpresa..."
Sozinho, no "meu" quarto da
Pensão Ouriense ... primeiro fiquei sem palavras ... depois num pranto de felicidade ... depois, por coincidência (será?...) ... a minha amada a telefonar-me e eu a dizer-lhe que estava a ler aquele inesquecível mail! Quanto orgulho! Quanto Amor! Orgulho no "ninho" que construímos! Orgulho nos filhos que "fizemos"! Orgulho e Amor que fazem com que a felicidade se misture com a tristeza, que a alegria se confunda com a dor de deixar o "ninho", de deixar as pessoas amadas, as que, nos
Caminhos, partem connosco só no coração. Mas, como diz o meu Irmão AJ, a meta está muitas vezes, verdadeiramente ... mesmo antes de darmos o primeiro passo!
E a meta que nos pusemos foi a de, apesar do desaire de Ourém ... entrarmos os quatro em
Santiago no dia 10 de Maio, a pé, e levarmos a
Fisterra as pedras colhidas junto ao
Penedo do Guincho! Um Caminho diferente, é certo ... mas o
Caminho é feito de muitos caminhos, muitas vias ... muitas formas.
Estórias de um monolito "histórico"...
|
11.07.2014 - Quando, no "Caminho da Aventura",
construímos um monolito nos Montes de Testeiro... |
Sábado, dia 9, em que supostamente sairia de
A Laxe para uma etapa de 30 km até
Ponte Ulla ... saímos de casa como há muito não acontecia: os quatro, pais e filhos ... rumo a terras galegas, embora em versão automobilizada, com a companheira do meu filho João; ao mentor do projecto e da surpresa, faltava-lhe contudo a companheira ... e faltavam a(o)s neta(o)s.
Um "pouco" mais rapidamente do que a pé, antes do almoço estávamos a atravessar a fronteira de
Valença ... e eu tinha de ir visitar, pela segunda vez, o "monolito" que construí nos
Montes de Testeiro, com os meus Irmãos do "
Caminho da Aventura"!
|
Com a companheira de uma Vida, em 25.09.2014
O nosso monolito ainda estava de pé... |
|
... mas agora chego ao Paraño e, lá no alto...
não vejo o nosso monolito! (09.05.2015) |
Mas no alto de
O Paraño, entre
Brués e
Soutelo de Montes ... o nosso monolito não estava lá! Ao subir, com os meus dois filhos, a íngreme ladeira ... tive a ingrata desilusão de o ver caído por terra; não me admiraria ... que tivesse tombado no passado dia
19 de abril...
|
A emoção de ver
|
|
o nosso monolito por terra foi grande ...
|
|
Adicionar legenda |
|
... mas a força da emoção fez-me erguer um novo monolito no cume de O Paraño... (878m alt.) |
A emoção, a memória daquele dia 11 de Julho, a energia telúrica ... algo me fez erguer um novo "monolito". Não é o mesmo, não é o "nosso" ... mas de algum modo aquele cume, aquele local emblemático do nosso Caminho ... continua a ser meu, dos meus Irmãos com quem o subi de mochilas às costas ... e agora também dos meus filhos! Se aquelas lajes falassem...! Mas elas falarão, contarão às outras as estórias e vivências de quatro portugueses que se tornaram Irmãos, que as ergueram num "
Caminho de Aventura"; a história de um casal que se ama há mais de quatro décadas, de uma "estrela arraiana" que as quis visitar pouco mais de dois meses depois de terem sido erguidas; e contarão às outras a história de um pai que subiu de novo aquele cume, com os seus dois filhos ... num Caminho feito de memórias e surpresas...
|
Panorâmica de O Paraño para sul ... para os caminhos de onde veio o "Caminho da Aventura", que fez nascer 4 Irmãos |
|
Ponte Ulla ... penúltima etapa do Camiño Sanabrés, da Via da Prata ... e do meu Caminho Santa Cruz - Santiago |
Por
Soutelo de Montes e
Silleda, às cinco e meia da tarde estávamos em
Ponde Ulla ... onde era suposto eu cair surpreso, ao terminar a penúltima etapa daquele que seria o meu Caminho
Santa Cruz - Santiago ... e ao ter lá todo o "ninho" que construí, a companheira de uma Vida e os filhos que ela me deu!
|
Seria dali que eu vinha ...
|
|
e aqui que possivelmente nos encontrávamos!
|
À noite, no "
Churrasco de Juanito" - o mesmo onde fiquei com os meus Irmãos há quase um ano - ainda nos juntámos os cinco num mesmo quarto ... para (re)ver o meu vídeo "
Caminho de Santiago ... pelo Caminho da Aventura". Quanta emoção ... quantos sentimentos à flor da pele...
Da Capela do Santiaguinho à Praza do Obradoiro ... ou um Caminho feito a cinco...
O domingo, 10 de Maio, era o dia da derradeira etapa, de
Ponte Ulla a
Santiago. A derradeira etapa do meu Caminho
Santa Cruz - Santiago ... mas a etapa em que, finalmente, teria a minha estrela ao meu lado, levada pelo meu Irmão Vítor, na primeira versão ... e acompanhada pelos meus filhos, na segunda versão. Mas como os caminhos do
Caminho dão muitas voltas, como há razões que a razão desconhece ... nesta terceira versão também eu tinha portanto chegado a Ponte Ulla de automóvel, pelo que os primeiros 4 km da jornada se tornavam dispensáveis, até à
Capela do Santiaguinho, no lugar do
Outeiro.
|
Capela e Fonte do Santiaguinho, Outeiro, 10.Maio.2015, 8:30h
Ia começar uma caminhada familiar... |
E foi junto à Capela e à fonte que contém inscrita a
lenda da Rainha Lupa que iniciámos a caminhada ... rumo ao
Campus Stellae,
Santiago de Compostela. No dia 13 de Julho de 2014, o Santiaguinho marcou também, como agora, o início da subida ao
Pico Sacro ... que ficou para sempre gravado nas memórias ... e perpetuado em mim!
|
Numa manhã mágica ... somos vultos na paisagem... |
A manhã de agora estava contudo bem diferente da de há quase um ano: embora não estivesse frio, um nevoeiro místico e denso envolvia tudo e todos. Mas Santiago elevou-nos das nuvens ... e o Sol abriu sobre o
mar de nubes que cobria o
Caminho que, interrompido em
Ourém, era suposto eu ter feito. Até as torres da
Catedral de
Santiago estavam perdidas naquele
mar, de onde sobressaíam apenas os cumes dos montes mais altaneiros.
|
E o nevoeiro vai abrir para nós, no Pico Sacro ... |
|
Passagem ... para outra dimensão... |
|
... a dimensão de voar nas asas da memória, da imaginação ... do Amor |
|
Unidos num arco íris de 360º... |
|
Cume do Pico Sacro ... uma "conquista" a cinco... |
|
Mar de nubes ... |
Ainda não eram dez horas quando começámos a descer do
Pico Sacro ... rumo a
Santiago. O Sol ... deu de novo origem ao nevoeiro, que só viria a abrir mais de duas horas depois.
|
Descida do Pico Sacro ... entre o nevoeiro e a magia... |
|
Cruzeiro de Rubial, onde segundo a lenda descansaram
trasladaram os restos de Santiago para Libredón
|
|
os discípulos de Santiago e os dois touros que, no ano 44,
(o local onde hoje se ergue a Catedral de Santiago)
|
|
"Cada pedra que fica no Caminho é uma Memória eterna..." (António Araújo) |
Pouco antes de
A Susana, vimos passar um numeroso grupo de "bicigrinos" portugueses (peregrinos em bicicleta); saudaram-nos e saudámo-los efusivamente. "
Bom Caminho"! Depois, o almoço foi junto à
Ermida de Santa Luzia e continuámos pelo
Camiño Real de Piñeiro. Pouco depois ... estávamos na fatídica curva de
Angrois, onde se deu o trágico
acidente ferroviário de 24 de Julho de 2013; no ano passado ... tínhamos desembocado no local sem nos apercebermos que íamos lá passar...
|
Bicigrinos portugueses a |
|
caminho de Santiago |
|
Capela e Cruzeiro de Santa Luzia, em Vixoi |
|
Camiño Real de Piñeiro |
|
E na fatídica curva de Angrois... |
E ... descida para o
Rio Sar pela bela calçada medieval. Ao fundo ... aparecem-nos pela primeira vez as torres da
Catedral! O destino estava já próximo!
|
Rio Sar ... e já só falta subir para o Casco histórico de Santiago |
Pouco depois das duas e meia ... estávamos na
Rua de Mazarelos ... na
Praza do Toural ... na
Rua do Vilar ... na
Praza de Praterías ... e na mágica
Praza do Obradoiro! Era suposto eu ter nos pés mais de 650 km ... mas o
Caminho é feito de caminhos, das fragas e pragas que o destino tece...!
Estávamos ali os cinco, tínhamos feito apenas 18 km, mas estávamos unidos e felizes. Um dia farei o Caminho de
Ourém ao
Outeiro ... se calhar ... quando calhar ... com quem me quiser acompanhar...
|
"Anda cá..." |
|
E assim vamos entrar no Obradoiro ... |
|
Um "ninho" reunido ... uma meta definida antes mesmo do primeiro passo...
"Na Verdade esta Foto é o Caminho..." (António Araújo) |
Mas a história deste
Caminho traçado antes do meu primeiro passo não acabava com a nossa chegada a
Santiago. O meu irmão e o meu pai (90 anos...) também estavam em Santiago ... também foram ter connosco ao
Obradoiro ... também iriam connosco às terras do "fim do mundo". Afinal ... tínhamos estado todos em
Santa Cruz naquele dia
27 de Fevereiro, no mesmo local de onde,
menos de um mês depois, trouxe as pedras que fariam comigo este
Caminho das Estrelas...
Nos camiños da fín da terra...
Foi portanto um domingo intenso, o que vivemos neste dia 10 de Maio. Um encontro a sete no
Obradoiro, voltar ao Outeiro com o meu irmão, buscar o carro que lá havia ficado a "descansar", regressar a
Santiago ... e partir para
Fisterra, para assistir ao espectáculo grandioso do pôr do Sol no mar ... e deixar duas das três pedras vindas de
Santa Cruz! Antes das seis da tarde estávamos nas terras do "fim do mundo"...
|
Os sete ... à vista do "fim do mundo"... |
Excepto os dois elementos mais veteranos, pouco depois das sete e meia estávamos a iniciar, de novo a pé, os quase 4 km que separam a povoação de Fisterra da ponta do mítico
Cabo Fisterra.
As terras do "fim do mundo" estão carregadas de lendas e superstições desde a noite dos tempos; aqui se situaria o mítico
Ara Solis, o templo do Sol ... que todos os peregrinos hoje respeitam e veneram em cada magnífico por do Sol de
Fisterra.
Quase desde a descoberta do túmulo de Santiago, no séc. IX, que estes
Camiños constituem o troço final dum itinerário marcado pela Via Láctea ... o
Caminho das Estrelas. A partir do séc. XII, o
Códice Calixtino liga definitivamente estas terras à tradição jacobeia: Fisterra ... o
fín do Camiño terreno ... o km '0' de todos os
Camiños ... as terras de
Dugium, ou Duio, onde Teodoro e Atanásio,
discípulos de Santiago, terão ido pedir ao governador romano que os deixasse sepultar o corpo do Apóstolo.
E também nós chegámos ... ao km '0' da nossa "peregrinação". No céu, uma estrela terá surgido no final de Fevereiro ... e "guiou-nos" aos sete neste
Camiño diferente, mas especial e único. No mar, pareceu-me ver navegarem as cinzas de minha mãe, nos reflexos, brilhos e cores do por do Sol de
Fisterra, naquele mar que é afinal o mesmo de
Santa Cruz, onde as lancei naquele dia
27 de Fevereiro...
|
"... um mar que contém memórias, lágrimas, alegrias ... um mar que une mais do que separa! " (Vítor Lima Vieira) |
|
01.08.2014 - Km 0 ...
com a estrela que ilumina o meu Caminho
|
|
10.05.2015 - Km 0: regressei ... com as estrelas que iluminam a minha Vida |
|
Mãe vigilante ... pai e filhos de olhos pregados no mar... |
|
Três gerações...
|
|
Adicionar legenda |
Das três pedras vindas de
Santa Cruz, colhidas junto ao
Penedo do Guincho, deixei a primeira nos penhascos da ponta do Cabo, lá onde ela pode admirar o mar de onde veio, noutras terras, de outras "guerras". A segunda ficou sobre o marco do km '0'; ouvirá das outras histórias de vidas, de amores e desamores, de ciclos encerrados. A terceira ... essa regressou comigo ... e comigo viajará de novo pelos
Camiños da fín da terra ... quando eu completar a minha "missão"...
|
De Santa Cruz a Fisterra ... um Caminho feito de múltiplos caminhos... |
|
"A Vida que vivemos não tem um final ... para que não se desista de encontrar a Vida Verdadeira " (AJ Araújo Silva) |
Depois do jantar, em
Fisterra, ainda houve lugar ao tradicional "
conxuro da queimada" ... esperando que "
os espritos dos amigos que están fora, participen con nos desta queimada"...
|
Fisterra, 11.Maio.2015, 9:15h ... íamos deixar as terras do "fim do mundo"... |
E depois de um domingo intenso ... uma segunda feira de regresso a casa ... com passagem de novo por
Santiago. A passagem pela
Igreja do Convento de S. Francisco não podia faltar; tanto lá como na
Catedral, havia recomendações e abraços a entregar. É assim a história ... dos Caminhos de Santiago...
|
Santiago de Compostela, 11.05.2015
|
|
Igreja do Convento de S. Francisco,
|
Um almoço no "
Café Casino" ... e ao fim da tarde estávamos de regresso ao "ninho".
O "mentor" deste Caminho feito em família, desta meta definida antes do meu primeiro passo ... tinha o seu Km '0' à espera, em casa: a mulher e as filhas ... minhas netas...
J. Há muitos kms '0', na Vida, na Felicidade, no Amor ... não é só nos Caminhos de Santiago...
|
O km '0' do meu filho Rui ... no regresso do km '0' dos Caminhos de Santiago e da fín da terra ... |
Este
Caminho não foi o que eu idealizara. A grande e feliz surpresa preparada com tanto Amor pelo Rui não foi a que ele idealizara. Mas os Caminhos de Santiago - ou os Caminhos da Vida - acabam por ser aqueles que as circunstâncias ditam, ao sabor dos acontecimentos, ao sabor dos sabores de cada momento. Obrigado Rui, por estes três dias fantásticos, pela orquestração de todo um esquema que não se perdeu ... apenas se transformou! E afinal, nessa transformação, entrei em
Santiago pela 5ª vez em menos de um ano ... e entrei em Santiago e cheguei a
Fisterra com os filhos, pai, irmão ... com a companheira que tem iluminado o meu Caminho ... por fragas e pragas...
Um dia, qualquer dia ... voltarei a
Ourém...
Fotos: José Carlos Callixto e Rui Callixto
|
Capela do Santiaguinho - Pico Sacro - Santiago de Compostela |
Sem comentários:
Enviar um comentário