quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

As velhas lendas da Marvana
De Vale de Espinho a Penamacor ... pela raia de todos os medos

"Na extremidade da Beira, que confina com a província de Castela, eleva-se a escarpada e medonha Serra de Marvana. Banha-a o rio Torto, que divide o nosso do reino vizinho; é sombrio o aspecto dela, coberta de urzes e medronheiros, e sombreada ao norte por espessa mata de carvalhos"
"A Rosa da Montanha", António José de Carvalho, 1871                            
A Serra da Marvana, no extremo sudeste da Malcata, é porventura a zona com mais histórias e estórias, na vasta área da Beira interior, a sul do alto Côa. A maioria dessas histórias, misto de ficção e de realidade, prendem-se com os feitos de Narciso Flores, mais conhecido pelo Montejo, cujo bando aterrorizava as populações de ambos os lados da raia, nas primeiras décadas do séx. XIX. As "aventuras" do bando do Montejo e as lendas da Marvana foram romanceadas e retratadas em pelo menos duas obras de leitura obrigatória: a esplêndida "Rosa da Montanha", romance escrito em 1871 por António José de Carvalho e do qual, pelo menos segundo Pinharanda Gomes, Nuno de Montemor terá extraído a sua "Maria Mim"; e "Caçadas aos Javalis", pelo Dr. Framar (pseudónimo do Dr. Francisco Maria Manso), em cujo "Canto Nono" o autor descreve magistralmente algumas das lendas da Marvana.
Nas minhas muitas deambulações ao longo dos trilhos e bredas da Malcata, nunca tinha estado contudo
4.01.2012, 6:20h - A caminho da serra
no cume da Marvana, situado em território espanhol, embora não muito longe da raia. E há muito que tinha em mente voltar a fazer uma caminhada Trans Malcata, sempre ao longo da raia e, precisamente, cruzando a Marvana no sentido norte-sul. Esse dia chegou ontem. Assim, saí de casa, em Vale de Espinho, 5 minutos antes das seis da manhã; o termómetro marcava 4ºC ... e esperavam-me ainda sensivelmente duas horas até ao nascer do astro rei! Passada a Lomba e o "Crelo", o dia ia despontando, mas iria assistir ao espectáculo grandioso no geodésico da Ladeira Grande, junto à Pedra dos Namorados, topónimo que eternizou os amores proibidos de Fernando e Beatriz, filhos de dois velhos fidalgos rivais.
O espectáculo grandioso do nascer do Sol, visto da Pedra
dos Namorados, Ladeira Grande (937m alt.), 7:50h

Ei-lo que surge, grandioso: Ladeira Grande, 7:55h, 8,9 km percorridos
Àquela hora matutina, as panorâmicas ao longo da raia eram sublimes. A oeste, os relevos ondulantes da Malcata, percebendo-se o vale do Bazágueda; a leste, a planura estremenha, coroada a nordeste pela Serra da Gata, com o Espiñazo e o Xálima cobertos por capacete de núvens.
Vale e formações xistosas do vale do Bazágueda
Ao longo da raia: os cumes da Marvana ainda estão longe
Aos meus pés, Pesqueiro e a planície estremenha
Mais uma hora de caminho e deixava à minha direita os profundos vales da Quinta do Major e da Moita do Padre, topónimo, este último, a recordar a tragédia do Padre Pedro Picado, pároco de Valverde del Fresno, assassinado às mãos do bando do Montejo, depois de ter casado, em segredo, os jovens enamorados Fernando e Beatriz.
"Fernando, com dois criados, resolveu acompanhar até Valverde o digno sacerdote. .... Passada a fronteira, o dia clareava, opondo-se o bom do padre espanhol à companhia de Fernando, que persistia em acompanhá-lo até Valverde. Do lado de Espanha, as serras descem, ainda cheias de penedias e de matos, até aos vales de Pesqueiro.
.... Os fora da lei, ao avistarem a horas matutinas o bom do padre, foram em sua perseguição ... No regresso, reuniram-se os bandidos em torno do bom padre .... e assentaram em executá-lo. Passaram com ele novamente a fronteira para Portugal, para que fosse atribuída a morte a portugueses e, quando em moita espessa e extensa  onde dificilmente poderia ser encontrado e serviria de pasto aos lobos, um tiro de bala, dado pelas costas, pôs fim à vida do santo sacerdote.
A falta do bom padre, em Valverde, fez suspeitar que tivesse caído nas mãos dos quadrilheiros. .... Os bandidos, com receio de entrarem em Portugal, foram descobertos, escondidos nos matos da encosta sul da Marvana, e, com grande comparência de pessoas das aldeias vizinhas, espanholas e portuguesas, enforcados na praça de Valverde. ....

O local onde foi morto tem ainda hoje o nome a recordar aquele crime, da «Moita do Padre».
"Caçadas aos Javalis", "Canto Nono", pelo Dr. Framar, Casa Véritas, Guarda
Pela primeira vez no cume da Marvana, eu dominava o mundo em redor, o meu mundo. Das ravinas e dos matos que me rodeavam, parecia-me ouvir as vozes do Montejo e seus acólitos, o estertor do bom sacerdote, ou o calor dos amores de Fernando e Beatriz.

No cume da Marvana, no meio da esteva e com a Serra da Gata em pano de fundo ... Let's fly ...
As fragas e ravinas da Marvana ainda hoje são cenário de lendas, que misturam eventuais factos reais e de frutos do imaginário de gerações. Ali terão existido galerias subterrâneas do tempo dos mouros, mais tarde abandonadas e reutilizadas pelos bandoleiros para se acoitarem. Não será por acaso que outro topónimo na raia, um pouco a norte do cume da Marvana, é o Alto de La Mina. As covas do Montejo ficariam um pouco aquém do Olival da Relva, no fértil vale do Bazágueda, a poente da raia.
"Os lados são cortados perpendicularmente e o sombreado do fundo não deixa perceber a continuidade das galerias laterais. Conta-se ter caído para essa cova um cão, quando em corrida de caça, saindo depois crivado de mordeduras de serpente, a uma centena de metros, para o lado do rio. As galerias de saída foram aterradas pela quadrilha do Montejo e só ele lhe conhecia o segredo. .... E porque pessoa alguma, da actual geração, se atreveu a explorar essas inacessíveis covas, talhadas a pique, penetrando as entranhas da terra ... a lenda continua."
"Caçadas aos Javalis", "Canto Nono", pelo Dr. Framar, Casa Véritas, Guarda
Do cume da Marvana, as três princesas do vale do Xálima: da esquerda para a direita, Valverde, as Ellas e San Martín
E da Marvana desci ao vale do rio Torto. Pouco passava das 11 horas e já com 20 km nos pés, cruzei-o exactamente no ponto em que começa a fazer fronteira entre os dois países, até desaguar no Bazágueda, que lhe continuará a missão. Já em zona bastante mais plana, seguiu-se o Madrão; já por aqui tinha andado há uns anos ... mas de "burro" ... o meu velho UMM. Pouco depois estava no Safurdão, na estrada que liga Penamacor a Valverde del Fresno.
Fronteira, junto ao rio Torto
Madrão de Cima

O objectivo seguinte era a Senhora do Bom Sucesso, célebre local de romaria, já a sul da estrada Penamacor - Valverde, com a Serra de Penha Garcia, ou Serra do Ramiro, a dominar a panorâmica a sul ... e a inspirar um projecto que há muito paira na minha agenda de "aventuras"...
Senhora do Bom Sucesso: ao fundo, a Serra de Penha Garcia, ou Serra do Ramiro
Caminhando agora para poente, por belos caminhos rurais, cheguei à barragem do Bazágueda, um local paradisíaco que igualmente me faltava conhecer. Não fossem já duas horas da tarde e as horas de luz escasseassem ... e os 30 km que já tinha nos pés pediam ali um bom descanso, em tão belo e aprazível local.

Barragem do
Bazágueda
E que bem que aqui se passaria a tarde, nas margens do Bazágueda...
A ideia original era regressar a Vale de Espinho de novo pela serra, mas 2 factores pesaram na resolução ali tomada: o percurso de regresso seria todo conhecido, ao longo do vale do Bazágueda e subindo depois às Ginjeiras e Basteiros; e a jornada totalizaria sensivelmente 60 km ... o que obrigaria a umas quantas horas de marcha nocturna. Assim, optei por rumar a Penamacor, onde facilmente a opção rodoviária me trouxe de volta às terras de Riba-Côa.
Este belo dia terminou assim com 41 km percorridos ... não muito aquém do meu máximo pessoal até hoje. Projectos para outras "aventuras" de "longo curso"? Sim, claro ... vários... J
Álbum de fotos completo
desta jornada

1 comentário:

JORGE FIGUEIREDO SANTOS disse...

Mais uma janela aberta sobre a nossa sempre emocionante paisagem rústica. Será, que nas tuas fotos de amanheceres reconheces a mítica côr rosicler da aurora? Abraço!