domingo, 8 de fevereiro de 2015

De Vilar Maior a Vale de Espinho
30 km ... nos 30 anos dos Caminheiros Gaspar Correia

Nas minhas "fragas e pragas" de mais de 40 anos, só comecei a seguir os trilhos dos Caminheiros Gaspar Correia em Outubro de 2002 ... com muita pena minha de não ter entrado mais cedo para esta "família".
Criado em Março de 1985, o grupo completa portanto este ano 30 anos ... e o mais relevante é que, pelo menos uma meia dúzia de carolas que o fundaram e participaram nas primeiras caminhadas ... continuam, 30 anos depois, a palmilhar as serras e os vales deste nosso Portugal e não só! Ora, a comemorar o 30º aniversário, o grupo decidiu que todas as actividades do ano de 2015 deveriam ter uma característica de algum modo relacionada com o número 30. Sendo eu o responsável pela actividade de Fevereiro ... porque não uma caminhada de 30 km ... nas "minhas" terras de Vale de Espinho, nas terras transcudanas?...J
Vilar Maior, 7.02, 12:00h - Vai começar a caminhada transcudana
Tanto nas actividades mensais do grupo como nalgumas extra, já os havia trazido à Raia por diversas vezes, pelo que havia que escolher uma zona e um percurso diferente de qualquer dos anteriores. E foi assim com expectativa e satisfação que aceitaram a proposta de uma travessia linear, de norte para sul, através da Raia Transcudana, entre a aldeia histórica de Vilar Maior e Vale de Espinho.
Como 30 km seria uma jornada dura para muitos dos participantes (orgulhamo-nos de contar com vários septuagenários...), a "aventura" seria efectuada, como foi, em duas "etapas", pernoitando próximo da também histórica vila de Alfaiates. Para além do simbolismo do número 30, os temas desta actividade foram portanto a história, a ruralidade das aldeias e dos campos atravessados, a Natureza no seu esplendor, particularmente nos troços ao longo da Ribeira de Alfaiates, que acompanhámos em grande parte. Mas outro tema era e foi também ... o frio; tal como as previsões apontavam, ao longo de todo o percurso dos dois dias, a temperatura oscilou entre os 3 graus abaixo de zero e os 4 positivos...J.
Já que a intenção é permanecer no "retiro" de Vale de Espinho até depois do Carnaval, o autor destas "fragas" e a sua "pequena arraiana", ela sim filha biológica destas terras, viemos um dia antes do resto do grupo, sexta feira. Com algumas dúvidas num pequeno troço entre o "abrigo" onde seria a pernoita e a barragem de Alfaiates, na própria sexta feira ainda por ali percorri 3 km a procurar e a "desenhar" essa ligação. Sábado, ambos receberíamos o grupo no Sabugal. Mas como as fragas do destino por vezes também rogam pragas ... uma tosse persistente da minha arraiana transformou-se na gripe que este ano tanta gente tem assolado. Só este "filho adoptivo" das terras da Raia comandou portanto as "tropas" Caminheiras, ficando a filha biológica no resguardo da sua Vale de Espinho.
Depois de uma longa e monótona viagem de quase 5 horas de autocarro, desde a grande urbe, a "aventura" só começou pouco antes do meio dia de sábado, em Vilar Maior; como previsto, juntei-me ao grupo no Sabugal. Vilar Maior foi vila e sede de concelho entre 1296 e 1855, mas acredita-se que a primitiva ocupação humana do seu sítio possa remontar a um castro pré-romano, a uma fortificação romana, ou mesmo muçulmana. Integrante do território de Ribacôa, disputado a Leão por D. Dinis, este soberano passou foral à povoação em 17 de Novembro de 1296; a sua posse definitiva para Portugal, entretanto, só foi assegurada pelo Tratado de Alcanices (1297).

Castelo de Vilar Maior
Em Vilar Maior, a caminhada começou pela subida às ruínas da Igreja de Santa Maria e ao histórico Castelo, de onde se domina o vale do Rio Cesarão. Percebe-se também, a poente, o vale da Ribeira de Alfaiates, e a norte, ao fundo, o vale do grande Rio Sagrado para o qual as águas correm: o Cuda ... ou Côa. Já no regresso do Castelo, a Igreja Matriz, ou de S. Pedro, mereceu também uma visita, graças à disponibilidade imediata do seu guardião.

Ruínas da Igreja de Santa Maria do Castelo, Vilar Maior
Acesso ao Castelo de Vilar Maior
Os grifos sobrevoam
o vale do Cesarão
O almoço foi junto às margens do Cesarão, próximo de outro ex-libris, a vulgarmente chamada Ponte Romana de Vilar Maior; o monumento data contudo provavelmente da época medieval, ou terá sido reconstruído, sequencialmente, nos séculos XIII e XIV, podendo ter por base uma construção anterior. Durante o almoço ... o grupo foi testemunha mais uma vez da hospitalidade e do modo de ser raiano: vendo-nos por ali a almoçar, ao ar livre, com aquele estranho "calor" de uma temperatura próxima dos zero graus ... um simpático aldeão dirigiu-se-nos com um garrafão de um saboroso néctar de uva ... inclusive trazendo copos ... distribuindo por todos quantos quiseram "aquecer" um pouco para a jornada que se seguiria. Aqui fica o nosso muito obrigado à gentileza daquele simpático aldeão. É assim a Alma arraiana!

Ponte medieval sobre o Rio Cesarão
O adeus a Vilar Maior
E a jornada prosseguiu então pelos velhos caminhos rurais entre Vilar Maior e a aldeia do Escabralhado. Ainda com o Castelo de Vilar Maior à vista e pouco a montante do Cesarão ... um pequeno "incidente" ficou para a história deste dia: embora comunicando-nos por rádio entre a frente e a cauda do grupo, a certa altura pareceu-nos ver, mais abaixo e mais perto do rio, um pequeno grupo de "outros" caminheiros. Uns bons 2 km mais à frente, contudo ... a "cauda" dos nossos caminheiros não respondia ... e só então constatámos que os "outros" ... eram nossos! O "pelotão" parou, portanto ... este "comandante" das tropas foi andando para trás, os rádios lá entraram em contacto ... e todos concluímos que aqueles 9 intrépidos desbravadores de outros caminhos tinham ido desbravar trilhos mais próximos do velho Cesarão; já estavam ... a mais de 5 km do grupo. Eu ... fiz mais 4 km de ida e volta até ao cruzamento de caminhos onde tinham seguido em frente; os desbravadores de novos trilhos ... fizeram uns 7 km a mais!


Pouco depois deste ponto ... houve 9 "tresmalhados" ...
... mas depois lá se reuniram as tropas...J
Uma hora depois ... estávamos de novo todos reunidos ... com alguns dos que haviam ficado parados quase enregelados. O frio era o anunciado, mas o dia, contrariamente ao previsto, continuou sempre de um cinzento carregado, aquele cinzento a que na raia se costuma chamar o "ar de neve" ... que se concretizou sob a forma de pequeníssimos e leves farrapos. São estas estórias que fazem a história das nossas "aventuras"...J
Às três da tarde - mais de uma hora depois do que havia previsto - estávamos a entrar na aldeia com o curioso nome de Escabralhado, onde igualmente havia passado na minha "maratona pelas aldeias da raia", em Maio passado. Aldeia quase fantasma, onde nessa altura tinha visto uma única habitante, com as suas cabras, desta vez vimos três aldeãs ... a evidenciarem a necessidade de comunicarem com os mais de 40 forasteiros que, por momentos, aumentaram a população da aldeia.

Entrada em Escabralhado
De Escabralhado descemos à Ribeira de Alfaiates ... e que belas imagens ribeirinhas foram saciando a nossa sede de as descobrir. Mais uma hora e estávamos na Rebolosa. Com 9,6 km percorridos desde Vilar Maior, parte do grupo preferiu neutralizar junto à igreja matriz e ao café ... o que permitiu aos restantes recuperar, a partir dali, grande parte do atraso motivado pelo "incidente" dos 9 "desbravadores"...J.

Descida para a Ribeira de Alfaiates
Ribeira de Alfaiates, entre Escabralhado e Rebolosa
De novo maioritariamente ao longo da Ribeira de Alfaiates, os quase 5 km da Rebolosa a Alfaiates foram feitos numa hora. Às cinco da tarde estávamos assim a entrar na histórica vila, pela Igreja de S. Miguel.
Vila riquíssima em história, Alfaiates é ainda hoje terra soberba, mátria de corajosas gentes e lugar de riquezas naturais e arquitectónicas. As marcas do tempo estão em cada dobrar de esquina, mau grado a perca dos avultados testemunhos de outrora. Séquitos de dois reinos ali foram em cortejo, rente à provecta Igreja de São Sebastião, hoje da Misericórdia, para aí se proceder a nobre enlace. A formosíssima Infanta Maria, filha de D. Afonso IV e neta de D. Dinis, casava com El Rei Afonso XI de Castela; corria o ano de 1327 e ainda apenas haviam passado três décadas sobre o Tratado de Alcanices, que de Riba Côa fez solo português. Houve festa de arromba, a selar o elo real que deixava promissor o relacionamento entre os dois reinos.
Alfaiates à vista
No portal da Igreja Matriz de Alfaiates ... não falta a vieira de Santiago. E dela seguimos caminho para as ruínas do Castelo, onde a incúria deixou levar uma das fortalezas mais preciosas que houve em RibaCôa, onde o poeta e heróico governador daquela praça, Brás Garcia de Mascarenhas, assentou arraiais e congeminou investidas para afugentar ocasionais invasores.
Igreja de São Sebastião, ou da Misericórdia, Alfaiates
Castelo de Alfaiates
Quase às cinco e meia da tarde, com o cinzento do dia a declinar, 16 heróicos resistentes optaram por manter viva a chama de chegar a pé ao nosso "refúgio" de pernoita; os restantes ... foram recolhidos pelo (auto)"carro vassoura"...J. E o "refúgio" ... foi a Residencial e Hostal "Pelicano", à qual chegámos pelo velho caminho rural que cruza a Ribeira de Alfaiates e segue parcialmente ao longo do seu afluente Ribeiro da Balsa. Gerida por um simpatiquíssimo casal, o "Pelicano" foi igualmente o local da habitual e original festa de Carnaval da "família" Caminheira Gaspar Correia...J

Travessia da
Ribeira de Alfaiates
E se a primeira "etapa" destes 30 km comemorativos dos 30 anos do grupo terminaram à porta do "Pelicano" ... a segunda "etapa" à porta começou, às 9 horas da manhã ... com três graus abaixo de zero! Atravessados os campos entre a estrada da Nave e a do Soito, uma vez cruzada esta última dirigimo-nos à barragem de Alfaiates ... na Ribeira de Alfaiates. O carvalhal "mágico" que a bordeja, até aos Moinhos do Janadão e aos campos de Pevide, pôs todos a sonhar com os duendes e as fadas que pareciam querer brotar das folhas que pisávamos, dos líquenes que pareciam rendas nos ramos dos carvalhos, das águas da ribeira. Numa manhã de novo cinzenta e gélida, até o estalar da lama congelada que pisávamos nos parecia transportar para algum reino fantasmagórico...

8.Fev., 9:15h - Tinha começado a segunda etapa da travessia ... com 3ºC abaixo de zero...
Ao longo das margens da Ribeira de Alfaiates ... e do seu carvalhal "mágico"...
Às dez e meia da manhã estávamos no Soito, junto ao Cruzeiro de S. Brás. Faltava a Malhada Alta, a encosta sul da Serra do Homem de Pedra, os mil metros de altitude do ponto mais alto desta travessia. A manhã continuava cinzenta ... e o que nos esperava na serra era completamente fabuloso e mágico!

Soito ...
... e subida à encosta sul da Serra do Homem de Pedra
As copas das árvores ... foram pintadas de branco...
Mais uma vez ... a Natureza brinda-nos com magia em estado puro!
Da Malhada Alta descemos aos Urejais, dos Urejais subimos à Có Pequena ... e na Có Pequena estávamos a dois quilómetros do final desta fabulosa travessia. Pelo "meu" velho caminho do Areeiro ... poucos minutos antes da uma da tarde estávamos no largo das velhas Eiras ... na "minha" Vale de Espinho! Tínhamos completado quase 14 km desde o "Pelicano" ... exactamente 30 km desde Vilar Maior! A primeira coisa que fiz foi vir ao encontro da "pequena arraiana" engripada; a "praga" infelizmente continuava, recomendando uma visita ao Centro de Saúde e uma consulta cuidada ... que felizmente revelou tratar-se de um "ataque terrorista" do vírus que este ano se instalou em tantos hospedeiros!

Sobre o vale dos Urejais
Chegada ao cruzeiro da
Có Pequena ... apetece-me voar...!
Dez minutos antes das 13h, com 14 km feitos desde Alfaiates e 30 desde Vilar Maior ... entramos em Vale de Espinho
Mas o fim de semana não terminou ... sem um belo almoço na TrutalCôa. Tínhamos seguido e cruzado o Cesarão, a Ribeira de Alfaiates, a Ribeira dos Urejais ... não podíamos deixar de almoçar debruçados sobre o Côa, no qual todos eles vertem as suas águas ... e onde me faltava levar a "família" Gaspar Correia, das várias vezes que degustaram as especialidades das "minhas" terras de RibaCôa...J. E, não sei porquê, sabendo que o que lhes preparei, com gosto, esmero e amizade, das várias vezes que os trouxe à Raia, foi sempre do seu agrado e encanto ... fiquei com a sensação agradável ... que esta talvez tenha sido, até, aquela de que globalmente mais gostaram! Se não estiver enganado ... esse é o maior e melhor prémio para o empenho que sempre ponho no que faço ... para quem gosto de o fazer! Bem hajam, amigos e companheiros dos Caminheiros Gaspar Correia!

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3 comentários:

António Mousinho disse...

Gostei de ler esta reportagem, fiel e apaixonada, das nossas aventuras pelas terras de RibaCôa!
Para cereja em cima do bolo, havíamos de ter uma paisagem gelada e deslumbrante, protagonizada pelos carvalhos vestidos de branco!
Obrigado Zé Callixto.

Miguel Bento Lopes disse...

Prosa poética. Callixto no seu melhor. Grande abraço

Anónimo disse...

Excelente reportagem, como sempre.
Abraço amigo
João J. Fonseca.