segunda-feira, 3 de março de 2014

Da Vanoise à Malcata ... ou a história de um par de botas...

Em Agosto de 2000 comprei umas botas Meindl em Pralognan-la-Vanoise, em pleno Parque Nacional da Vanoise. Se aquelas botas falassem ... teriam muito para contar, muitas fragas e pragas para descrever...!
Col de Iseran, Parque Nacional da Vanoise, 8.Agosto.2000
Efectivamente, dos Alpes franceses ao Gerês, a Somiedo, a Gredos, à Malcata, às Torres das Ellas, na Gata ... ao longo de sensivelmente uns 10 anos aquelas botas palmilharam as léguas sem fim a que as levei ... ou a que elas me levaram! Quantos quilómetros fizeram? Não sei ao certo, já que só tenho registos GPS desde 2005 ... mas seguramente perto de uns 4 mil quilómetros ... ou mais! Só em finais de 2010 comprei outro par ... quase iguais. Mas as primeiras, as minhas velhas e históricas botas, não foram abandonadas. Passaram a residir permanentemente na "minha" Vale de Espinho, onde, já velhinhas e cansadas, ainda calcorrearam bem as ladeiras e os caminhos da serra!

Sobre Coto de Buenamadre e o vale do Rio del Lago, Parque Natural de Somiedo, 5.08.2006
Travessia do Gerês
em família, 26.07.2008
Torres das Ellas, Serra da Gata, 12.08.2008
Fragas e pragas... da história e das estórias de umas botas...
As ladeiras da Malcata e da Marvana, os lameiros do Côa e do Bazágueda, ainda as viram passar algumas vezes nos últimos anos, já muito velhinhas ... cansadas ... abertas...! Ainda em Janeiro passado elas me levaram aliás à Cascata da Cervigona ... a "princesa" do Xálima! Nesse dia levei uns ténis na mochila ... para o que desse e viesse... J. Ia preparado para lhes fazer o "funeral" por lá, mas apesar de abertas, esfarrapadas ... trouxeram-me de volta a Vale de Espinho e os ténis não saíram da mochila! E, de qualquer modo, sem qualquer razão de queixa das terras de nuestros hermanos ... mas o funeral tinha de ser em terra lusitana ... em terras, claro está ... do Côa e da Malcata!
E é assim que chegamos à caminhada de hoje. Uma caminhada de despedida ... da despedida das minhas velhas botas, as primeiras Meindl, vindas um dia de terras de França, do paraíso da Vanoise ... para virem morrer na serra que, pelos meus pés, um dia elas adoptaram, tal como eu a adoptei há mais de 4 décadas.
Saí de casa, hoje, ainda não tinham batido as nove horas. E saí ... com as minhas velhas Meindl nos pés; seriam elas que me iriam levar ainda à sua última morada! Na mochila ... estavam as suas sucessoras, também Meindl ... que entretanto igualmente já calcorrearam quase as mesmas léguas, nos últimos 3 anos ... mas que apesar de idênticas nunca tiveram a resistência e a capacidade de "sofrimento" das suas irmãs mais velhas. Estas, as "novas" que já são velhas, vão agora passar a residir em Vale de Espinho, substituídas que já foram por umas Bestard que são, presentemente ... a luz dos meus pés... J.

3.Março.2014, 9:00h - Campos de Vale de Espinho
E que local destinaria eu para "túmulo" das minhas botas velhinhas? Naturalmente … o local mais místico e mágico nas memórias e nas lendas das raízes da pequena arraiana que, um dia, há mais de 40 anos, me ligou a Vale de Espinho … as Fontes Lares! As paredes de pedra da velha casa que em Abril de 1973 ainda conheci de pé, hoje em ruínas … decerto eternizarão a memória das muitas fragas e pragas a que aquelas botas me levaram! E assim, numa manhã que parecia anunciar a vinda do Sol e da Primavera já próxima, subi pela enésima vez a velha Quelhe das Pedras, em direcção às encostas da Serra Madeira. Com uma hora de marcha, lá encontrei as mariolas com que há uns meses assinalei o caminho das Fontes Lares.
passado perdido no tempo
Janela aberta ... para um
Primeiro a "casa do Zé Tomé", com as suas janelas abertas para um passado perdido no tempo, logo a seguir a "nossa" velha casa das Fontes Lares, junto à sua velha presa, ao secular carvalho, à nascente de água pura e cristalina, ao "barroco sagrado". Da velha casa só restam ruínas, paredes esboroadas, pilares de pedra que mais parecem monólitos erguidos aos céus. Só a parede mestra se mantém mais ou menos completa, percebendo-se o vértice onde assentava o tecto há muito desaparecido. As giestas e as silvas nascem por entre as memórias que as pedras querem contar.

A velha Casa das Fontes Lares. As giestas e as silvas nascem por entre as memórias...
O dia, que amanhecera soalheiro, tornara-se mais cinzento e frio. Um vento cortante soprava das alturas do Melhano e da Serra de Aldeia Velha. Só então troquei as velhas Meindl pelas suas sucessoras, que levara na mochila. Num exercício de equilibrismo, trepei as ruínas da parede nascente; na esquina, enchi as defuntas com pedras pequenas da própria parede, para fazer de lastro; cada bota ficou a pesar uns 5 quilos! Com o cuidado imposto pela eventual derrocada, transportei-as até ao vértice da parede mestra … e ali as depositei, expostas à inclemência da Natureza e dos tempos que se avizinham. Uma pedra maior de cada lado … e recua antes que caias nas silvas ou nas pedras espalhadas pelo que outrora foi a sala!

No alto das velhas paredes de pedra ... ali jaz desde hoje o meu velho par de botas...
As minhas botas, velhas, cardadas, que palmilharam léguas sem fim … ali ficaram para a posteridade, respirando o ar puro da serra, contemplando o "barroco sagrado" e o carvalho secular, vendo correr a água que brota da nascente "divina" … nestas "minhas" terras de Vale de Espinho!

Adeus ... minhas velhas botas, que tantas fragas e pragas andaram...
Deixei as Fontes Lares pelo Seixel, rumo ao caminho que desce do Cabeço Melhano. Nuvens escuras ameaçavam baptizar a jovem sepultura das minhas velhas companheiras de tantas e tantas "aventuras". Cruzei o caminho e rumei à Malhada Alta, bebendo a água da ribeira dos Urejais na velha e grande Quinta que se estende até terras do Soito, também ela de muros e ruínas perdidas nas memórias das gentes de Vale de Espinho e do Soito. Já a rumar a sul, pelas onze e meia a promessa das nuvens escuras cumpriu-se, sob a forma de granizo que fazia doer na cara! Felizmente não durou muito, intervalava de quando em vez com boas abertas e até com algum Sol, enquanto eu avançava por entre os altares de pedra do "reino" dos Urejais, cruzando o caminho novo do Soito, rumo ao caminho velho que ao Soito também levava.

Por entre os altares de pedra do "reino" dos Urejais...
Pouco depois do meio dia estava na Có Pequena. O velho cruzeiro lá estava … como que indicando-me, hoje, a direcção das Fontes Lares e do altar onde um dia passou a descansar um par de botas…

Cruzeiro da Có Pequena
E Vale de Espinho, do Areeiro
Com pouco mais de 10 quilómetros percorridos, entrei em Vale de Espinho pelo Areeiro. O "funeral" das minhas velhas Meindl estava realizado…


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3 comentários:

António mousinho disse...

Já tens mais um motivo para ires às Fontes Lares! Lá deixaste mais um símbolo...

Maria da Terra Quente disse...


Zé Xalmas,

Este é o único funeral que tem uma beleza ímpar!

Ana Cardinal

Fsantos disse...

Caro José Carlos Calixto - Xalmas
Como eu o compreendo. Pois este ano lá para os lados do Curral do Pinhõ e descendo para a Ponte das Servas no regresso do Poço Azul, também eu iniciei a despedida das minhas. A minha companheira de andanças no mesmo dia e caminho, já perto das Cascatas do Arado também iniciou a despedida das dela.
F Santos