A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (4)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
SÁBADO, 29 DE JULHO DE 2034 - TRAVESSIA DA MESETA
Sexta feira, 21 de julho, saí de Rabanal del Camino bem cedo ... e bem cedo estava em Astorga, a velha Asturica Augusta, capital da Maragatería e dos maragatos, nome e povo cuja origem parece apontar para uma ascendência germânica, de populações convertidas ao Islão quando da islamização da Península; a junção dos termos moro e godo seria a base do termo maragato.
Astorga, a velha Asturica Augusta, 21.07.2034, 12h40: Catedral e Palácio Episcopal, o Palácio de Gaudí
Astorga estava repleta de turistas e de peregrinos, até porque ali conflui uma das variantes da Via da Prata; mal conseguia selar a credencial, na Catedral. Mais uma vez, nessa fila de peregrinos, a "bandeira" do Jerusalem Way na minha mochila causou interrogações e admiração. A Sophie e o Robert, belgas, contaram-me que fizeram em 2026 Namur - Roma, pela Via Francigena desde Reims, seguramente uma experiência fabulosa. Falei-lhes do meu Caminho de Assis, há já 11 anos, os olhos brilharam-lhes de curiosidade. No final de um razoável menu peregrino a três, não só tínhamos novos contactos como também uma boa ligação, forjada nas palavras e nos sorrisos partilhados.

Mas não saí de Astorga sem ir à Igreja do Perpétuo
Socorro ... onde senti a atracção nos olhos de Santiago
A Igreja do Perpétuo Socorro é uma igrejinha singela ... mas que na simplicidade dos seus traços já em 2016 me chamara, no Caminho Francês. Aqueles olhos de Santiago parecem vivos ... parecem aquecer a alma. "Serei eu capaz de levar esta Cruzada?" ... perguntei. "Segue o teu Caminho, dia a dia, passo a passo; ouve a tua voz e a voz do Universo que te guia" ... pareceu-me ouvir ... e segui jornada.
Antes das 17h00 estava em Hospital de Órbigo e na sua Puente del Paso Honroso, sobre o rio Órbigo
No dia seguinte cruzava o Bernesga e chegava a León. Convento de S. Marcos, 22.07.2034, 15h40
Em La Virgen del Camino, cerca de 6 km antes de León, o "conta quilómetros" marcava os primeiros 300 km de Cruzada ... e entretanto estou perto dos 500. Desde o Caminho do Norte, que percorri em 2025 desde San Vicente de la Barquera, que não fazia um Caminho tão longo. Mas o que são 500 km, comparados com o desafio que me falta?
Umas boas sandálias fazem milagres... 😃
Claro que toda esta "velha carcaça" agradece as horas de repouso que procuro dar-lhe, claro que os músculos agradecem as massagens que faço a mim próprio; os pés, esses ... abençoam os vários cuidados com que todos os dias os mimo, desde a boa camada de creme pela manhã, quando caminho de botas e meias, às sandálias com que tenho intervalado as etapas. Pois ... há 13 anos, em 2021, no meu primeiro Caminho a solo, o Caminho Transcantábrico, descobri que umas boas sandálias de trekking fazem milagres...
Catedral de León, 22.07.2034, 16h05: estava feito cerca de 1/3 do Caminho na Península Ibérica...
Em León ... tinha um encontro marcado. Conheci o Paco Reina em 2017, no Caminho Primitivo. Poucas vezes nos encontrámos depois, mas temo-nos mantido sempre em contacto. Quando em 2022 o Paco fez o Caminho Português Central desde Lisboa, "raptei-o" em Sacavém,
Sacavém, 03.10.2022 ... quando "raptei" o Paco do Caminho
para vir almoçar em minha casa, e devolvi-o de novo no Caminho dos Peregrinos, na várzea do Trancão. Mas, rapaz da minha idade, além de peregrino o Paco também tem sido, quase todos os anos, hospitaleiro voluntário no Albergue do Mosteiro de Santa María de Carbajal, em León, carinhosamente conhecido como das Monjas Carbajalas. E foi de braços abertos que me recebeu, registou e carimbou a minha credencial, na azáfama habitual da entrada do albergue, de que tão bem me lembrava do Caminho Francês.
E uma calorosa recepção nas "Carbajalas", 22.07.2034
A minha Credencial do Caminho de Jerusalém ia ficando mais rica...
23.07.2034, 08h30 - León já ficou para trás ... espera-me uma semana de Meseta ... e de alguma chuva...
Saí das Carbajalas pelas 07h00. O Paco fez questão de estar na minha despedida. Como ele costuma dizer ... "Un abrazo es la expresión física del alma ... el alma se sirve de los brazos como sus herramientas físicas, para esa transferencia de amor.". Continua a ser Feliz, Paco Reina. És grande!
O céu, um manto azul e branco nos dias anteriores, vestia-se agora de cinzento, prenunciando a chuva que se aproximava. A memória da primavera de 2016 era a de campos coloridos e vibrantes, uma promessa de vida que agora parecia um sonho distante. Tinha uma semana de Meseta à minha frente!
Mansilla de las Mulas, 12h05 - Cruzo o Esla, num dos raros momentos em que a chuva amainou
Como além do espírito e da alma também é preciso alimentar o corpo ... almocei bem, no simpático El Horreo de Mansilla de las Mulas, com duas italianas e um irlandês ... os quatro à espera que a chuva tivesse piedade dos peregrinos.
Reforço alimentar para os 7 km que faltavam...
"Soaked by the rain, our spirits lifted by hope ... the journey goes on", dizia-nos o Finnian ("Encharcados pela chuva, mas com os espíritos fortalecidos pela esperança ... a jornada continua"). E é isso mesmo ... o Caminho é Viver cada dia com alegria e prazer, ter a certeza que o pior já passou ... o Caminho não é a chuva nem o Sol ... o Caminho não é o chão que pisamos ... o Caminho somos nós ... está dentro de nós.
Terminei essa etapa em Reliegos, no excelente Albergue "La Parada". A roupa suja e a lavada mas ainda húmida agradeceu as máquinas de lavar e secar ... e, apesar do bom almoço, o estômago também agradeceu o bom menu peregrino do próprio albergue, até porque assim ainda deu para descansar e gozar o agradável fim de tarde que ainda se pôs. A chuva estava a dar tréguas...
Ao contrário de 2016, no dia seguinte não passei por Burgo Ranero. Segui o conselho do Gronze: "los peregrinos que valoren más la soledad que los servicios pueden tomar la variante por Calzadilla de los Hermanillos" ... e foi o que fiz, sempre al revés, claro. E não me arrependi. Retomei o Caminho principal em Calzada del Coto ... onde não pude deixar de reviver duas imagens memoráveis de há 18 anos...
Um pobre peregrino à porta do Albergue "San Roque" ... e uma
foto "histórica" no Bar Xanadu, Calzada del Coto,12.05.2016
Mas pouco depois, na minha Cruzada, estava a entrar em Sahagún, uma vez cruzado o rio Cea, 24.07.2034, 15h10
Sahagún, junto ao Santuário da Virgem Peregrina e Centro Geográfico do Caminho Francês de Santiago
Arco de San BenitoSahagún, 24.07.2034, 15h45
Em Sahagún estava no centro geográfico ... do Caminho Francês. Optei pelo Albergue de Peregrinos de la Santa Cruz, que começou por ser uma hospedaria do Mosteiro Beneditino da Santa Cruz, mas actualmente os peregrinos são recebidos por uma comunidade de padres maristas. À entrada, um grande cartaz cativa desde logo:

Queremos dar al peregrino que se acerca a nuestro albergue una acogida cercana, cálida y cristiana. Y sentimos la acogida como una entrega al hermano que nos encontramos en el camino.

É sem dúvida um dos melhores albergues que já conheci, com dormitórios de apenas 4 camas e, querendo, inclusive com quartos privados. Às cinco da tarde, os peregrinos são convidados a participar num encontro de conversa tranquila e descontraída, em que os hospitaleiros oferecem café, sumos, bolachas e doces e em que se partilham vivências e experiências dos Caminhos. Entre tantas nacionalidades e outras tantas histórias, nesse encontro conheci a Sophia, uma brasileira de 41 anos que já percorreu vários Caminhos de Santiago, incluindo o Francês desde León, em 2030. Este ano chegou a Sahagún ... vinda de Madrid; efectivamente, o Caminho de Madrid entronca no Francês em Sahagún. Mas a Sophia foi de Madrid a Sahagún ... para continuar pelo Caminho Francês em sentido contrário, de modo a percorrer o que não fez em 2030. Imagine-se a admiração e a satisfação, minha e dela, ao encontrarmos alguém a caminhar no mesmo sentido que nós. Desde Sahagún temos caminhado grande parte do tempo juntos. Como um eco distante, claro que a figura da Sophia me evoca a memória da Stella, a peregrina brasileira com quem partilhei as últimas etapas do Caminho de Inverno, em 2022 ... uma alma que, pouco depois de chegarmos juntos ao Obradoiro, se dissolveu como que por magia, deixando apenas um rasto de mistério, um enigma que a razão busca decifrar. Esse continua a ser, 12 anos depois, um dos maiores enigmas dos meus Caminhos...
Mas ainda no Albergue de Sahagún, o momento mais alto foi a originalíssima ceia comunitária, na qual os hospitaleiros confeccionam o primeiro prato e os peregrinos compartilham o que trazem.
Ceia comunitária no Albergue de Peregrinos de la Santa Cruz, em Sahagún (vídeo extraído do site)
Saímos de Sahagún ... em Dia de Santiago, 25 de julho! Pela primeira vez neste Caminho tinha alguém a caminhar no mesmo sentido que eu. E entrávamos em força nas estepes cerealíferas e quase planas da Tierra de Campos, um deserto fronteiriço, durante a ocupação muçulmana da Península, entre os cristãos, a norte, e os muçulmanos a sul.
A Sophia avança determinada na estepe cerealífera
da Tierra de Campos, em Dia de Santiago, 25.07.2034
Em meados do século IX começou a ser repovoada, constituindo-se como fronteira natural entre Leão e Castela.
Ambos sabíamos que até Burgos teríamos alguma monotonia, na travessia da Meseta. excepto um ou outro ponto icónico que também ambos sabíamos quais eram. Apesar de ser a primeira vez que cruzava estes campos, a Sophia é como eu ... não gosta de vir sem se ter inteirado o mais possível sobre as terras e locais para onde vai. Mas a monotonia da paisagem - bem diferente do verde vivo da primavera de 2016 - foi quebrada pela tagarelice permanente em que caminhávamos. "Entre o silêncio das pedras" (obrigado, Luís Ferreira), íamos contando a vida um do outro. De início, a Sophia dava-me ... 70 anos ... no máximo, dizia ela, quando me disse que tinha 41. Riu a bom rir quando eu lhe disse ... quando tu nasceste já eu tinha quase a idade que tu tens agora! Não pode, não pode, repetia ela... 😂
No Albergue "Camino Real", Calzadilla de la Cueza, 25.07.2034 ... onde comemorámos o Dia de Santiago
Igreja de Santa María del Camino, em Carrión de los Condes, 26.07.2034, 12h05
E em Villalcázar de Sirga, 15h10: a monumental Igreja de Santa María La Blanca, a “Capela Sistina do românico-ogival”
Nestas duas etapas, dias 25 e 26, tinha optado por ficar em albergues que conhecia de 2016, do Caminho Francês. Mas sobre o Albergue "Amanecer", em Villarmentero de Campos, avisei a Sophia do ambiente um pouco "hippie", que nunca mais esqueci. "Nossa, que legal! " ... respondeu logo ela, sorridente. E acrescentou: "Eu adoro conhecer lugares com essa pegada mais livre e descontraída ".
Albergue "Amanecer", Villarmentero de Campos, 26.07.2034
E o "Amanecer" estava praticamente como me lembrava do Caminho Francês ... numa versão mais limpa e cuidada. Se já o recomendava, para quem gosta de conhecer uma forma mais alternativa de estar no Caminho, agora que bisei reforço a recomendação.
Não sei se o hospitaleiro holandês de 2016 deixou de o ser, agora é a Naïma, francesa, que, tal como ele, toca viola, canta, prepara a ceia comunitária, tudo! A máquina do Tempo parecia ter-nos levado de regresso aos anos 60 e à sublimação do espírito da "paz e Amor".
E precisamente numa de liberdade, depois de uma noite bem dormida, na quinta feira acordei cedo e ... quis ver o Amanecer literalmente. A Sophia tinha-me dito "Não precisa se preocupar em ficar junto o tempo todo. A gente se encontra no Caminho, viu?"
E o Universo brindou-me com um espectacular Amanecer nos campos Palentinos, 27.07.2034, 07h10
Ermida de S. Miguel, próximo de Población de Campos, 08h30
Frómista, 10h15: Igreja de San Martín de Tours, Séc. XII
A Igreja de S. Martín, em Frómista, é um dos melhores exemplos de arquitectura românica do Caminho de Santiago. Estaria ali sentado há uns 15 ou 20 minutos a ouvir o silêncio, quando senti uma mão pousada no ombro. Era a Sophia, que afinal tinha saído pouco depois de mim.
Eclusas do Canal de Castilla em Frómista
Curiosamente, estávamos ambos na 15ª etapa, já que ela tinha feito Madrid - Sahagún em 12 dias, os mesmos que eu desde Santiago. Coincidências ... mas pelo menos até Burgos não mais nos largámos.
Em Frómista, o Caminho começa a acompanhar (ou acaba, no sentido nascente) o Canal de Castilla, durante cerca de três quilómetros. O canal foi uma importante obra de engenharia civil do século XVIII, que foi utilizada tanto para o transporte de mercadorias como para a distribuição de água de rega. O canal proporciona sem dúvida uma paisagem muito mais apelativa do que a estepe cerealífera, de que já estávamos saturados.
Mas o ponto mais alto desta longa travessia da Meseta esperava-nos no final desta etapa, ao cruzar o rio Pisuerga, à saída da Província de Palencia.
Canal de Castilla, entre Frómista e Boadilla del Camino, últimas terras Palentinas
Ponte sobre o rio Pisuerga (Puente de Itero, ou Puente Fitero), 27.07.2034, 14h30
A Puente de Itero liga a Província de Palencia à de Burgos. Foi edificada por ordem de Afonso VI de Leão, no Séc. XI, e remodelada no Séc. XVII. Junto à ponte, existia um antigo Hospital de Peregrinos do Séc. XII, cuja Igreja foi dedicada a S. Nicolau - a Ermida de San Nicolás di Puente Fitero, já citada nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio. Nos passados anos 90, a Ermida foi cedida à Confraternita di San Jacopo de Perugia, restaurada e reconvertida em Albergue, mantido por voluntários, principalmente italianos, que oferecem hospitalidade segundo a mais genuína tradição.
Albergue / Refúgio na Ermida de San Nicolás de
Puente Fitero
... uma experiência espiritual inolvidãvel
Em 2016, Puente Fitero tinha sido um dos pontos altos do Caminho Francês, mas não nos alojámos. Agora, desenhei as etapas por forma a que fosse possível passar lá aquela que foi sem dúvida uma experiência inolvidável! Quando falei nessa hipótese à Sophia ... a resposta dela fez-me estremecer:

     Uau! Que coincidência!
     Eu também tinha anotado Ponte Fitero!
     Parece que o Universo conspira a nosso favor!

Será que ... conspira mesmo?...
Ficar em San Nicolás di Puente Fitero é, por si só, uma viagem no Tempo. A origem da Ermida encontra-se possivelmente nos séculos XII e XIII, filiada à Ordem dos Cavaleiros de São João, mais tarde conhecida como Ordem de Malta. Os Cavaleiros de São João estariam encarregados de manter a ponte em boas condições, facilitando a passagem dos peregrinos e oferecendo-lhes a sua hospitalidade. Actualmente, entre abril e outubro, os hospitaleiros oferecem cama, jantar e pequeno almoço aos peregrinos dispostos a viver esse tempo nas condições materiais de há séculos; não há electricidade ... há velas; em troca ... vive-se uma experiência espiritual mágica.
Às 18h00 foi a ancestral cerimónia do lava pés ... e se eles agradecem aqueles bálsamos e aquelas mãos dóceis! E às 19h00 a ceia comunitária, simples mas farta. A lotação estava completa, doze peregrinos de cinco nacionalidades, em que sobressaíam os italianos, com três jovens seminaristas e um casal na casa dos 60 anos. Depois ... às seis da manhã toca o sino; toca a fazer a higienezinha (os duches e servicios são fora da Ermida) ... e toca para o café, as tostas com azeite ou compotas, os deliciosos bolinhos de mel e amêndoa. Sair de lá custa! Puente Fitero é um oásis de tranquilidade e de paz, na mais pura simplicidade.
Despedida do lugar mágico de San Nicolás de Puente Fitero, 28.07.2034, 07h40
Depois de Puente Fitero, a história das duas etapas seguintes ... foi uma história de algumas trovoadas de verão ... uma história de um sucessivo veste e despe das capas de chuva ... mas também uma história de muita partilha. Caminhámos sempre a par, a Sophia e eu, contando um ao outro vivências marcantes da vida. "Quando a minha mãe faleceu, senti como se o mundo tivesse desabado, até porque tinha acabado de sair de um relacionamento complicado ", contou ela. Eu já lhe tinha falado do meu casamento de há mais de 60 anos, dos meus filhos, das minhas netas e netos, mas também das
Castrojeriz, Colegiata de Santa María del Manzano, 10h10
nuvens negras que assombraram a minha vida durante 10 anos, na última década do século passado, da perda do pai da minha estrela, do meu Caminho Francês, em 2016, que iniciei num aniversário da partida dele, do meu Caminho de 2019, que inteiramente lhe dediquei ... transportando comigo um pedaço de terra da sua Vale de Espinho e que permanece em Santiago de Compostela, bem próximo da Catedral. Também lhe falei da perda da minha mãe e do Caminho que lhe ia dedicar ... o único que até hoje me vi obrigado a interromper, em terras de Ourém. Também lhe falei de Amor, dos meus conceitos de Amor, que aliás não são meus, já os filósofos da Grécia Antiga os definiam. Falei-lhe do Amor Philia, a Amizade profunda, aquela que me une e à minha companheira de uma Vida àqueles a que chamamos os nossos "Manos Velhos" ... dois deles há mais de 60 anos, outros há mais de 40 ... sempre sem qualquer atrito, sempre baseado na lealdade, na camaradagem, na necessidade de presença mútua. Mas também lhe falei de desilusões ... que só existem porque criamos ilusões ... falei-lhe do meu primeiro Caminho de Santiago a solo ... o Caminho do expurgar dos fantasmas de uma ilusão ... fantasmas que deixei ao seguir "uma luz lá no alto" ... nas Montanhas Cantábricas...
A Sophia ouvia-me em silêncio, enquanto caminhávamos. Até que, emocionada, disse baixinho: "Às vezes é nas piores situações que a gente descobre quem realmente somos. E olha só a gente aqui, caminhando por este caminho tão antigo, buscando um novo começo..." ... enquanto, 4 quilómetros depois, chegávamos a outro ponto forte do Caminho, as ruínas do Mosteiro de San Antón,
Ruínas do Mosteiro, ou Convento de San Antón, 4 km depois de Castrojeriz, 11h45
O Mosteiro de San Antón foi fundado pelo Rei Afonso VII no Séc. XII e governado pelos "antonianos", que se dedicavam a cuidar dos doentes que chegavam pelo Caminho de Santiago, especialmente aqueles que tinham contraído o "fogo de San Antón", ou fogo sagrado, uma doença muito comum na Idade Média, especialmente em regiões onde o centeio era um alimento básico.
A vieira e o 𝝉 (thau)
A doença era provocada pelo fungo Claviceps purpurea, que produz alcaloides tóxicos, que provocam alucinações, convulsões, vómitos e outros sintomas. Eram famosas as cerimónias realizadas pelos monges antonianos para abençoar vários objetos, às quais compareciam muitos fiéis. Entre outros objectos, abençoavam a cruz de Tau, ou Thau - a letra grega 𝛕 - usada pelo fundador da ordem em memória da libertação dos primogénitos hebreus, que marcaram as portas com este símbolo. O Tau libertou da pestilência todos os que o usavam. O 𝛕 viria a ser também ... a "assinatura" de S. Francisco de Assis. A Sophia já me perguntara pelos diversos thaus que trago comigo, na mochila ... e até na pele ... símbolos e "estigmas" que só entraram na minha Vida com os Caminhos de Santiago.
Almoçámos naquele verdadeiro momento perdido no continuum Espaço / Tempo. Tínhamos comprado uma tortilla e uma garrafa de um saboroso Tempranillo em Castrojeriz e aproveitámos o abrigo das ruínas, embora ainda fosse cedo. Aliás no Mosteiro de San Antón, à semelhança da Ermida de Puente Fitero, há também acolhimento de peregrinos, dinamizada pela Fundación San Antón, em condições idênticas ... mas era cedo para terminarmos ali a etapa...
Hontanas, Igreja da Imaculada Conceição,14h10
Com 29 km percorridos, terminámos a etapa em Hornillos del Camino, no simpático Albergue El Alfar, do qual saímos hoje bem cedo, para um "passeio matinal" de 20 km até Burgos.
Tardajos, 29.07.2034, 09h30 -
Estávamos às portas de Burgos
Rio Arlanzón, na Puente de los Malatos, Burgos, 12h05
Entrámos no centro histórico de Burgos pela Puente de los Malatos. No Séc. XIII, existia junto à ponte um pequeno hospital que acolhia os peregrinos com lepra, a que chamavam os malatos.
E chegámos a Burgos à hora de almoço
de um sábado, 29.07.2034
Claro que eu já conhecia o Albergue da "Casa del Cubo", do Caminho Francês. Foi para lá que nos dirigimos, quer para deixarmos as mochilas como porque, apesar de bem grande, o Albergue tinha aberto ao meio dia e é sempre bastante concorrido. Tínhamos percorrido sensivelmente 490 km desde Santiago e 450 km desde Madrid, ambos em 17 etapas. Sahagún tinha sido o ponto de encontro destas duas almas vindas dos dois lados do Atlântico, mas que falam ambos a língua de Camões. Ambos sentíamos que Burgos era uma meta que tínhamos atingido, um marco importante no Caminho com que tínhamos sonhado.
Uma vez registados no Albergue e deixadas as mochilas, demo-nos ao luxo de almoçar frente à imponente Catedral de Santa María, no cativante Restaurante Don Nuño. Foram chegando outros peregrinos, até porque a tarde prometia ser quente e soalheira, depois das chuvadas de ontem. A Sophia ficou contente ao ver duas brasileiras, sensivelmente da idade dela, acabadas de chegar de Madrid ... de autocarro, para começarem amanhã a Caminho de Santiago. Um grupo de sete italianos, três raparigas e quatro rapazes, também conseguiu mesa próximo de nós ... e este almoço acabou por ser comunitário, já que todos escolhemos um muito bom "Menu Peregrino" com dois pratos, bebida, sobremesa, pão e café por 20 €, o que podemos considerar um bom preço, atendendo à qualidade, à localização e ao facto de ser sábado, em que acrescem 4 € em relação à semana.
Almoço no Don Nuño, em Burgos, frente à Catedral ... alimento para o corpo e para o espírito
A imponente Basílica / Catedral de
Santa María
, Burgos
Depois do almoço, passeámos um pouco pelo centro histórico e visitámos a Catedral. Para a Sophia é a primeira vez em Burgos, maravilhada com aquela joia da arquitectura gótica que, de certo modo, conta a história da Fé e da cultura espanholas. A Catedral de Burgos é uma das maiores da Europa, inspirada nas grandes catedrais góticas francesas, como Chartres e Reims.
Mas a vida de um peregrino também se rege pelas obrigações logísticas; havia roupa para lavar e secar. Juntámos a roupa dos dois e fizemos uma máquina, no Albergue; até as minhas pobres calças foram à barrela! Enquanto esperávamos, falei com a minha estrelita pela terceira vez hoje. Sim, raro é o dia em que falamos menos de 3 ou 4 vezes ... mas esta foi com imagem, o que raramente acontece, dada a "tradicional" "alergia" dela às tecnologias. A Sophia ri-se, sempre que eu lhe digo que a Lala tem um "teleimóvel". Felizmente ela sabe que um celular em Portugal se chama telemóvel... 😂
Também fui adiantando as linhas com que vos relato estes 9 dias de travessia da Meseta Ibérica, desde Rabanal del Camino, fez ontem uma semana. Já saí de casa há mais de duas ... e não há Igreja em que eu entro em que não peça força aos Céus, força principalmente para a grande companheira que deixei em casa, a grande peregrina do maior dos Caminhos ... o da Vida.
Amanhã deixamos Burgos. França vai ficando mais perto. Contamos caminhar a dois pelo menos mais uma semana ... mas a nós já nos parece que sempre caminhámos juntos ... que já nos conhecíamos antes de nos conhecermos. Quando conversamos com outros peregrinos, uns ficam-se pela expressão de perplexidade, ao verem um velho e uma jovem a caminhar al revés; outros devem imaginar-nos pai e filha ... ou avô e neta, sei lá... 😏; outros, como o Matteo, do grupo de italianos com quem almoçámos, perguntam aberta e directamente ... Ma cosa vi tiene insieme? È la prima volta che fate il cammino insieme? ("Mas, o que os une? É a primeira vez que fazem o Caminho juntos?") ... e ficam muito admirados quando lhes respondemos que só nos conhecemos há menos de uma semana ... que o Universo nos uniu em Sahagún na segunda feira passada! E o Universo é Inteligente... 🙏

Publicado em 17.10.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
A maioria das personagens são ficcionadas. Qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
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