De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal
interior
SEXTA-FEIRA, 21 DE JULHO DE 2034 - MONTES DE LEÓN |
Hoje escrevo de madrugada. A salinha de convívio do Albergue, ontem à noite
cheia da partilha de histórias e de estórias de peregrinos, às dez da noite já
não tinha ninguém. Eram quatro e meia da manhã quando para aqui vim, em
silêncio. O sono dissipara-se ... talvez porque lá longe, no "ninho" ... a
minha peregrina me chamava. O sono também lhe tinha voado, dei por ela
online, chamei-a ... e voámos ambos, mais rápidos do que a luz, para os
braços virtuais de uma conversação só nossa.
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18.07.2034, 06h55 - N'O Cebreiro, o
nevoeiro denso da véspera libertava gradualmente os vales. À minha frente, tinha o vale encantado de Valcarce. |
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18.07, 14h20 - Cruzado o Río Burbia, entro em
Villafranca del Bierzo. Um grupo de peregrinos, na ponte, segue para os montes de onde venho ... os montes d'O Cebreiro |
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Igreja de Santiago de Villafranca del Bierzo e o Albergue de Peregrinos "Ave Fénix" |
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Entre os odores e os sabores da ceia, as palavras do Jato tecem um labirinto de histórias e memórias... |
A história começa com o Séc. XX, quando um incêndio devastou o pouco que restava do hospital de San Lázaro, onde centenas de peregrinos eram atendidos desde a Idade Média. A minha avó Generosa já era conhecida por acolher os pobres. Quis comprar o que restava do hospital, mas não foi possível. Mesmo assim, já nos anos trinta, os meus avós usavam uma casa para acolher os peregrinos, sob a máxima cristã de «alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos e dar abrigo aos peregrinos».
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Quatro décadas depois, o resto da história é conhecida:
Jesús Arias conseguiu ocupar o antigo local do hospital de San Lázaro e
construiu um pavilhão para continuar a tradição familiar. No início dos anos
oitenta, começou a atender os peregrinos que passavam por Villafranca,
quando ninguém o fazia antes. Dedicou o pavilhão e uma estufa para os alojar.
Nada cobrava. Mas nos anos noventa, devido ao descuido de um peregrino belga,
o albergue incendiou-se ... e foi assim que surgiu o actual "Ave Fénix". Tal como a personagem mítica, a hospedaria renasceu das cinzas, sobre as
ruínas do primitivo Hospital de San Lázaro. Jesús Arias contou
com a colaboração directa de peregrinos e de voluntários de todo o mundo. E se
mais razões não houvesse ... só a história de Jato e do "Ave Fénix" seriam suficientes para os ter sentido como um dos momentos e um dos locais
mais altos dos meus Caminhos Peregrinos.
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No dia seguinte estava em Ponferrada - 19.07.2034, 14h30 |
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Molinaseca, 20.07.2034
Peregrinos a caminho de Santiago, entreMolinaseca e Riego de Ambrós |
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Riego de Ambrós, típica aldeia Berziana, 20.07.2034, 10h30 |
Manjarín
- e para mais, desta vez, chegando lá antes de chegar à Cruz de Ferro - é um daqueles lugares que nunca mais se esquecem. 2 km antes da
Cruz de Ferro (ou 2 km depois...), situam-se ambos nos pontos mais altos do
Caminho Francês, aproximadamente a 1500 metros de altitude.
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O Refúgio Templário de Manjarín há 18 anos, como |
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eu o recordava do Caminho Francês, em 17.05.2016 |
A história de Manjarín esteve sempre associada ao Caminho de
Santiago. Pelo menos no Séc. XVI tinha um hospital de peregrinos, para os
apoiar naquelas duras e difíceis paisagens montanhosas. Com o declínio das
peregrinações nos três séculos seguintes, foi desaparecendo como lugar
habitado.
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Tomás Martinez de Paz ... o último templário... |
É impossível falar de Manjarín sem falar de Tomás Martínez Paz, mais
conhecido no mundo dos peregrinos por Tomás el Templario, devido à sua dedicação aos preceitos hospitalários da antiga ordem dos
Templários. No início dos anos 90 do Séc. XX, Manjarín era um cenário
inóspito de casas em ruínas e solidão. A Tomás, pareceu-lhe o lugar ideal para
prestar apoio e dar guarida aos peregrinos ... e ali construiu em 1993 um
humilde
Refúgio Templário, que se transformou rapidamente num dos grandes ícones do Caminho, conhecido
em meio mundo. Tomás mantinha-o aberto inclusive no inverno. Conheci-o
pessoalmente no
Caminho Francês, há 18 anos. Transbordava abnegação, paixão, entrega ... amor ágape!
Infelizmente, problemas de saúde obrigaram-no a fechar o Refúgio em 2022, por
tempo indeterminado, aguardando ajuda para a sua renovação, que infelizmente
nunca chegou. Ontem ... Manjarín sem o
Refúgio de Tomás pareceu-me despido e insípido, apesar da magnificência da
paisagem sobre os Montes de León. Mas
Manjarín continua a ser um lugar mágico ...
e então que dizer do que senti ao ver,
nas velhas placas que o Tomás juntou e que ainda se conservam ... "JERUSALÉM 5000 km"?... 💗
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Jerusalém 5000 km ... em linha recta... ♋ |
Caía a uma da tarde quando cheguei à Cruz de Ferro! À medida que subia,
desenhavam-se em mim as imagens da madrugada de espesso nevoeiro em que lá
cheguei em 2016. Pouco passava das seis e meia. Nesse dia, desafiara os meus
companheiros de Caminho para sairmos de
Rabanal del Camino ainda de noite. Aquela
Cruz mística parecia chamar-me! Ontem, não era madrugada nem havia nevoeiro. O
dia estava limpo e o Sol quente ... mas à medida que me aproximava senti uma
corrente fria percorrer-me a espinha. Como que levado por mãos invisíveis,
ainda a uma distância razoável da Cruz, agarrei uma pedra ... e depositei-a no
humilladoiro que, felizmente, volta a rodear a base da Cruz, depois das
impensadas e inqualificáveis obras da década passada, felizmente interrompidas
graças à
intervenção dos peregrinos.
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Cruz de Ferro (1498m alt.), 20.07.2034 ... um dos locais mais icónicos do Caminho Francês de Santiago |
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Capela dedicada a Santiago, construída nos anos 80 do Séc. XX... com os novos "arruamentos" das polémicas obras dos anos 20 |
Por se tratar do ponto de passagem mais alto das montanhas de León para a Galiza - dois mundos geográficos e culturais muito diferentes - e pela extrema dificuldade para os peregrinos, especialmente no inverno, a Cruz de Ferro adquiriu uma dimensão transcendente, como um mundo que acabava e outro que começava. Ao deixarem uma pedra, muitas vezes trazida dos seus lugares de origem, os peregrinos libertam-se dos seus pecados mas deixam também uma oferenda ao Universo, um sinal de gratidão por terem chegado até ali. Depois de muitas dificuldades, outro mundo se abre para o viajante, tanto numa direcção como na outra.
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Eu ... segui na outra ... e pouco depois estava em Foncebadón, um povoado que renasceu com o Caminho |
E a etapa terminou em Rabanal del Camino. Ao oitavo dia desta Cruzada e exceptuando o Seminario Menor em
Santiago, foi a primeira vez que fiquei num albergue onde já me alojara. Há 18
anos, no
Caminho Francês, o Albergue "La Senda" foi o ponto de partida para a madrugada da Cruz de Ferro ... ontem foi o
ponto de chegada! Estou a terminar a descida dos Montes de León. E vão
sendo horas de partir. Já ouço o bulício habitual dos peregrinos mais
madrugadores, ávidos de subirem à mítica Cruz de Ferro ... que
contudo, ao contrário d'O Cebreiro, não teve em mim o impacto daquela
madrugada de há 18 anos. Agora espera-me Asturica Augusta -
Astorga - e a longa travessia da Meseta.
Publicado em 11.10.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
Algumas personagens são ficcionadas. Qualquer semelhança
com pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
Algumas imagens foram editadas por Inteligência
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expressa do autor.
2 comentários:
A saga continua, por enquanto são as memórias dos teus caminhos anteriores que vais revivendo, mas chegará o momento em que tudo será “ vivido” por ti numa experiência que tu próprio criarás.
Bom caminho🙏
Quantos kilómetros nesta etapa?
Graça, esta crónica refere-se a três etapas. Penso que te estejas a referir à última, que foram 32 km.
As etapas também estão publicadas, em https://porfragasepragas.blogspot.com/p/jway.html
Até as podes ver num mapa 😊
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