A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (3)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
SEXTA-FEIRA, 21 DE JULHO DE 2034 - MONTES DE LEÓN
Hoje escrevo de madrugada. A salinha de convívio do Albergue, ontem à noite cheia da partilha de histórias e de estórias de peregrinos, às dez da noite já não tinha ninguém. Eram quatro e meia da manhã quando para aqui vim, em silêncio. O sono dissipara-se ... talvez porque lá longe, no "ninho" ... a minha peregrina me chamava. O sono também lhe tinha voado, dei por ela online, chamei-a ... e voámos ambos, mais rápidos do que a luz, para os braços virtuais de uma conversação só nossa.

18.07.2034, 06h55 - N'O Cebreiro, o nevoeiro denso da véspera libertava gradualmente os vales.
À minha frente, tinha o vale encantado de Valcarce.
Deixei O Cebreiro na alvorada do sexto dia de Caminho. Aquele lugar tem mistério, tem energia, tem uma mística e até uma música especial ... talvez uma música celestial. À medida que descia o vale de Valcarce, ia ouvindo e cantando o velho cântico ... "Tous les matins nous prenons le Chemin, tous les matins nous allons plus loin...". Só que, desta vez ... jour après jour eu me afasto de Santiago.
18.07, 14h20 - Cruzado o Río Burbia, entro em Villafranca del Bierzo.
Um grupo de peregrinos, na ponte, segue para os montes de onde venho ... os montes d'O Cebreiro
Em Villafranca del Bierzo tinha reservado o afamado Albergue "Ave Fénix". Tinha ficado com pena de não o ter conhecido há 18 anos, quando do Caminho Francês. Entretanto ouvi e li opiniões de quem o adorou ... e de quem o abominou; uma razão mais para o querer ajuizar por mim.
Igreja de Santiago de Villafranca del Bierzo e o Albergue de Peregrinos "Ave Fénix"
Assim que pousei no "Ave Fénix", senti que aquelas paredes respiram história. Depois de uma pequena volta e dos momentos de meditação na Igreja de Santiago, conheci o "pai" daquele peculiar albergue - Jesús Arias (Jato). Senti logo que tinha ali muito para ouvir e muito a aprender, mas foi só durante a ceia comunitária (por inscrição, 13 dos mais de 60 peregrinos alojados quiseram-na) que mais uma vez o Tempo e o Espaço pareceram diluir-se num plasma etéreo e cativante. Seis anos mais velho do que eu, a voz do Jato, como já os seus pais e avós eram conhecidos,
Entre os odores e os sabores da ceia, as palavras
do Jato tecem um labirinto de histórias e memórias...
como que criava um estado de consciência alterado, onde as fronteiras entre o material e o espiritual são ténues. E ouvíamos...

A história começa com o Séc. XX, quando um incêndio devastou o pouco que restava do hospital de San Lázaro, onde centenas de peregrinos eram atendidos desde a Idade Média. A minha avó Generosa já era conhecida por acolher os pobres. Quis comprar o que restava do hospital, mas não foi possível. Mesmo assim, já nos anos trinta, os meus avós usavam uma casa para acolher os peregrinos, sob a máxima cristã de «alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos e dar abrigo aos peregrinos».

Quatro décadas depois, o resto da história é conhecida: Jesús Arias conseguiu ocupar o antigo local do hospital de San Lázaro e construiu um pavilhão para continuar a tradição familiar. No início dos anos oitenta, começou a atender os peregrinos que passavam por Villafranca, quando ninguém o fazia antes. Dedicou o pavilhão e uma estufa para os alojar. Nada cobrava. Mas nos anos noventa, devido ao descuido de um peregrino belga, o albergue incendiou-se ... e foi assim que surgiu o actual "Ave Fénix". Tal como a personagem mítica, a hospedaria renasceu das cinzas, sobre as ruínas do primitivo Hospital de San Lázaro. Jesús Arias contou com a colaboração directa de peregrinos e de voluntários de todo o mundo. E se mais razões não houvesse ... só a história de Jato e do "Ave Fénix" seriam suficientes para os ter sentido como um dos momentos e um dos locais mais altos dos meus Caminhos Peregrinos.
No dia seguinte estava em Ponferrada - 19.07.2034, 14h30
Ponferrada, capital da comarca de El Bierzo. Ponferrada e o seu imponente Castelo Templário. Por ali passei no Caminho Francês, em 2016, ali terminei o Camino Olvidado, em 2021 e ali comecei o Caminho de Inverno, no inverno de 2022. Ponferrada é sem dúvida um ícone dos Caminhos de Santiago. E em Ponferrada optei pelo Albergue Paroquial de San Nicolás de Flüe, um albergue de donativo situado junto à Capela de Nuestra Señora del Carmen, do Séc. XVII, onde conheci o Pablo, um jovem de Murcia que, apesar dos seus 32 anos, já conta com alguns milhares de quilómetros nos Caminhos de Santiago, incluindo o Caminho de Levante, que parte de Valencia e atravessa a Península de leste a noroeste. Com ele participei na oração e benção dos peregrinos, na Capela, e com ele jantei também, na acolhedora sala do albergue. Encontrámos um Maruxa a bom preço no supermercado próximo, que acompanhou bem os salgados que igualmente tínhamos comprado à tarde. O jantar selou um convívio que só não se prolongou no Caminho ... porque vamos em sentidos opostos.
    Molinaseca, 20.07.2034
Peregrinos a caminho de Santiago, entre
Molinaseca e Riego de Ambrós
Riego de Ambrós, típica aldeia Berziana, 20.07.2034, 10h30
O oitavo dia de Caminho era, até agora, o que reunia mais locais emblemáticos. Nesta fase inicial da minha Cruzada, eu sabia que O Cebreiro e a Cruz de Ferro seriam os locais que mais me marcariam. O Cebreiro já o deixei para trás, levo comigo a sua essência gravada na alma ... mas o dia 20 de julho, além da Cruz de Ferro, também tinha Molinaseca ... também tinha a autêntica "viagem no tempo" que é a aldeia berziana de Riego de Ambrós ... também tinha Manjarín ... e ainda tinha Foncebadón!
Manjarín - e para mais, desta vez, chegando lá antes de chegar à Cruz de Ferro - é um daqueles lugares que nunca mais se esquecem. 2 km antes da Cruz de Ferro (ou 2 km depois...), situam-se ambos nos pontos mais altos do Caminho Francês, aproximadamente a 1500 metros de altitude.
O Refúgio Templário de Manjarín há 18 anos, como
eu o recordava do Caminho Francês, em 17.05.2016
A história de Manjarín esteve sempre associada ao Caminho de Santiago. Pelo menos no Séc. XVI tinha um hospital de peregrinos, para os apoiar naquelas duras e difíceis paisagens montanhosas. Com o declínio das peregrinações nos três séculos seguintes, foi desaparecendo como lugar habitado.
Tomás Martinez de Paz ...
o último templário...
É impossível falar de Manjarín sem falar de Tomás Martínez Paz, mais conhecido no mundo dos peregrinos por Tomás el Templario, devido à sua dedicação aos preceitos hospitalários da antiga ordem dos Templários. No início dos anos 90 do Séc. XX, Manjarín era um cenário inóspito de casas em ruínas e solidão. A Tomás, pareceu-lhe o lugar ideal para prestar apoio e dar guarida aos peregrinos ... e ali construiu em 1993 um humilde Refúgio Templário, que se transformou rapidamente num dos grandes ícones do Caminho, conhecido em meio mundo. Tomás mantinha-o aberto inclusive no inverno. Conheci-o pessoalmente no Caminho Francês, há 18 anos. Transbordava abnegação, paixão, entrega ... amor ágape!
Infelizmente, problemas de saúde obrigaram-no a fechar o Refúgio em 2022, por tempo indeterminado, aguardando ajuda para a sua renovação, que infelizmente nunca chegou. Ontem ... Manjarín sem o Refúgio de Tomás pareceu-me despido e insípido, apesar da magnificência da paisagem sobre os Montes de León. Mas Manjarín continua a ser um lugar mágico ... e então que dizer do que senti ao ver,
Jerusalém 5000 km ... em linha recta... ♋
nas velhas placas que o Tomás juntou e que ainda se conservam ... "JERUSALÉM 5000 km"?... 💗
Caía a uma da tarde quando cheguei à Cruz de Ferro! À medida que subia, desenhavam-se em mim as imagens da madrugada de espesso nevoeiro em que lá cheguei em 2016. Pouco passava das seis e meia. Nesse dia, desafiara os meus companheiros de Caminho para sairmos de Rabanal del Camino ainda de noite. Aquela Cruz mística parecia chamar-me! Ontem, não era madrugada nem havia nevoeiro. O dia estava limpo e o Sol quente ... mas à medida que me aproximava senti uma corrente fria percorrer-me a espinha. Como que levado por mãos invisíveis, ainda a uma distância razoável da Cruz, agarrei uma pedra ... e depositei-a no humilladoiro que, felizmente, volta a rodear a base da Cruz, depois das impensadas e inqualificáveis obras da década passada, felizmente interrompidas graças à intervenção dos peregrinos.
Cruz de Ferro (1498m alt.), 20.07.2034 ... um dos locais mais icónicos do Caminho Francês de Santiago
No cume do Monte Irago, a Cruz de Ferro é um dos lugares mais conhecidos e carregados de simbolismo de todos os Caminhos jacobeus. Já no Séc. XII o próprio Codex Calixtinus se lhe refere, como Portus montis Iraci.
Capela dedicada a Santiago, construída nos anos 80 do Séc. XX...
com os novos "arruamentos" das polémicas obras dos anos 20
Atribui-se ao eremita Gaucelmo a colocação da primeira Cruz, em finais do Séc. XI, sobre um amontoado de pedras já existente desde tempos imemoriais.
Por se tratar do ponto de passagem mais alto das montanhas de León para a Galiza - dois mundos geográficos e culturais muito diferentes - e pela extrema dificuldade para os peregrinos, especialmente no inverno, a Cruz de Ferro adquiriu uma dimensão transcendente, como um mundo que acabava e outro que começava. Ao deixarem uma pedra, muitas vezes trazida dos seus lugares de origem, os peregrinos libertam-se dos seus pecados mas deixam também uma oferenda ao Universo, um sinal de gratidão por terem chegado até ali. Depois de muitas dificuldades, outro mundo se abre para o viajante, tanto numa direcção como na outra.
Eu ... segui na outra ... e pouco depois estava em Foncebadón, um povoado que renasceu com o Caminho
E a etapa terminou em Rabanal del Camino. Ao oitavo dia desta Cruzada e exceptuando o Seminario Menor em Santiago, foi a primeira vez que fiquei num albergue onde já me alojara. Há 18 anos, no Caminho Francês, o Albergue "La Senda" foi o ponto de partida para a madrugada da Cruz de Ferro ... ontem foi o ponto de chegada! Estou a terminar a descida dos Montes de León. E vão sendo horas de partir. Já ouço o bulício habitual dos peregrinos mais madrugadores, ávidos de subirem à mítica Cruz de Ferro ... que contudo, ao contrário d'O Cebreiro, não teve em mim o impacto daquela madrugada de há 18 anos. Agora espera-me Asturica Augusta - Astorga - e a longa travessia da Meseta.

Publicado em 11.10.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
Algumas personagens são ficcionadas. Qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
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2 comentários:

Graca disse...

A saga continua, por enquanto são as memórias dos teus caminhos anteriores que vais revivendo, mas chegará o momento em que tudo será “ vivido” por ti numa experiência que tu próprio criarás.
Bom caminho🙏
Quantos kilómetros nesta etapa?

José Carlos Callixto disse...

Graça, esta crónica refere-se a três etapas. Penso que te estejas a referir à última, que foram 32 km.
As etapas também estão publicadas, em https://porfragasepragas.blogspot.com/p/jway.html
Até as podes ver num mapa 😊