No
Prólogo
que publiquei no passado dia 19, a caminho de Santander (a caminho do
Caminho...) falei do Sonho que me levou a pesquisar a História de velhos
Caminhos de peregrinação que atravessam as montanhas cantábricas ... e a
preparar este que foi o meu primeiro Caminho de Santiago a solo.
Passados 16 dias ... cheguei a Ponferrada ... e ao fim da minha
"missão". Foram 438 km, 12 mil metros de desníveis acumulados; atravessei os
Picos de Europa desde Santander; venerei o Lignum Crucis em Santo
Toribio de Liébana; percorri os velhos caminhos Vadinienses; atravessei
os Montes de León desde Cistierna, pelo Caminho Olvidado ... nalguns
troços tão olvidado que o trilho desaparecia; e cheguei, por fim, às
terras templárias de El Bierzo.
Se sofri? Sem dúvida que sim. Os meus pés foram a prova viva desse sofrimento.
Este foi, sem nenhuma dúvida, o Caminho de Santiago mais duro de quantos já
percorri.
Se gostei? Não ... adorei! E adorei tudo. Foi o meu primeiro Caminho de
Santiago sozinho ... só eu ... e eu ... numa fabulosa viagem interior, uma
catarse purificadora ... o expurgar de fantasmas e de ilusões. Sem dúvida que
subi a Montanha ... segui uma luz lá no alto ...
ouvi uma voz que me chama...
Num Caminho de Santiago ... nunca estamos sozinhos. Para trás ficaram as
muitas borboletas multicores que quase todos os dias esvoaçavam ao pé de mim
... as aves que ouvia ... o gado com quem eu "conversava" ... os cães que me
saudavam ... como aquele cão místico nas Horcadas de Valcavao ... que
talvez fosse a encarnação de Santiago...
Para trás ficaram também outros peregrinos e muitos lugareños, pessoas
boas que contribuíram para as histórias e estórias deste meu primeiro e
fabuloso Caminho a solo. Nas crónicas que se seguem ... vou procurar descrever
o indescritível.
(Escrito a 8 de Agosto, após o regresso)
Camino Lebaniego
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Albergue "Santos Mártires", Santander ... o 1º Albergue da minha 1ª Peregrinação a
solo
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Cheguei a
Santander ao início da tarde do dia 19. Santander fica no
Caminho do Norte, mas é a Paróquia do Santíssimo Cristo da Catedral de Santander que emite a
Credencial do
Caminho Lebaniego, pelo que se pode dizer que os Caminhos de Liébana começam na capital da
Cantábria. O
Albergue "Santos Mártires"
colocou o primeiro
sello ... e fui fazer um "aquecimento" pelas ruas e
praias de Santander.
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Santander, Praia del Sardinero, 19.Jul.2021, 15h50
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E como todos os Caminhos têm as suas histórias e estórias ... a primeira
deu-se logo neste dia prévio, no Albergue. "
Não és o Callixto?", ouvi
de alguém a olhar para mim; fixei os olhos e respondi: "
Sou ... e tu não és o Calisto?". E éramos realmente o Callixto e Calisto 🤣. Já em 2018 nos tínhamos
encontrado por acaso, na Mealhada, durante o
Caminho Português; coincidências e desígnios do Caminho...
A primeira etapa era uma das maiores, até
Santillana del Mar. Saí cedo de Santander,
antes de o Sol nascer, embora nos dois primeiros dias mal tenha visto o
astro-rei. Poucos peregrinos, mas alguns.
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Rio Pas e ponte medieval em Oruña, entre Santander e
Torrelavega, 20.Jul., 9h50
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Igreja de Santiago, próximo de Rumoroso
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Rio Saja, entre Barreda e Vispieres, a caminho de Santillana
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E ... Santillana del Mar, a jóia
arquitectónica da Cantábria ... mas também a vila das três
mentiras: não é Santa ... nem
é llana (plana) ... nem tem mar...
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Santillana fervilhava de turismo ... felizmente tudo muito
disciplinado e controlado, no que à pandemia diz respeito. Os Albergues de
Santillana, tanto o público como privados na vila, estavam ainda encerrados
por precaução ou tinham preços proibitivos, pelo que tinha reservado
previamente um albergue a dois quilómetros, o Albergue/Hostel "
Pico de Santillana". Que remédio tive se não ficar ... mas não fiquem neste espaço! Além da
total antipatia dos responsáveis, enquanto uns se mantêm fechados por
precaução ... este albergue faz ocupação total ... o que confirmei no turismo
em Santillana que é obviamente proibido, em pandemia. Pedi o livro de
reclamações ... não mo trouxeram. Valeu-me a simpatia dos outros 5 ocupantes
da camarata de 6 onde fiquei; "
todos estamos vacunados", disseram-me;
do mal o menos ... mas no dia seguinte saí antes das cinco da manhã...
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Igreja barroca de San Martín de Tours,
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Cigüenza, 21.Jul.2021, 7h15
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Falta pouco para Santiago...
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Praia de Luaña, entre Cobreces e Comillas
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Comillas, uma bela cidade à beira mar, 10h30
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Este pequeno troço entre
Luaña e
Comillas foi o único
em que vi o mar cantábrico, num litoral muito escarpado ... em que os
desníveis começavam a contar. E entrei em Comillas com um jovem casal espanhol
a quem o Universo pareceu querer ligar-nos; viria a chamar-lhes mais tarde
os
ángeles del Camino. A Isi e o Jesus estavam no Caminho do Norte
desde Irún ... a caminho de vários Caminhos...
Em Comillas, o
Parque de Sobrellano traz-nos o
Capricho de Gaudí
à Cantábria ... e trouxe-me uma meia hora de descanso a meio da manhã, ao
sabor de uma Coca-Cola com gelo.
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Parque de Sobrellano, Comillas, 21.Jul.2021, 10h35
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Coca-Cola e 1906 ... dois ícones do Caminho... 🙂
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Próximo de Ceceno, entre Comillas e San Vicente
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E a jornada prossegue pelos bosques de Oyambre
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San Vicente de la Barquera à
vista, cruzando a respectiva ria
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Antes das duas da tarde estava no
Albergue "El Galeón", em
San Vicente de la Barquera, bonita
vila piscatória onde verdadeiramente começa o
Caminho Lebaniego. Tinha feito 70 km em dois dias. Os meus pés acusavam o muito alcatrão,
associado ao constante sobe e desce ... mas ainda deram para uma pequena volta
pela vila, castelo e a belíssima Igreja de
Nuestra Señora de los Ángeles.
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22 de Julho: ao terceiro dia, começava verdadeiramente o Caminho
Lebaniego
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Actualmente, a maioria dos guias do
Caminho Lebaniego conduz os peregrinos para a
Senda fluvial do rio Nansa. Não duvidando da beleza da referida rota, essa opção acrescenta contudo
quase 9 km à distância a percorrer ... o que convenhamos que é muito,
particularmente num Caminho caracterizado pela dureza e pela exigência física.
Assim, já antes do meu primeiro passo, ainda em casa, optara pelo traçado
anterior, por
Gandarilla e
Bielva, cruzando o Nansa na
Puente El Arrudo, próximo de
Cades. Entre
Bielva e
Cades, durante uma breve paragem de
descanso, um habitante interpelou-me para me felicitar ... dizendo-me que
aquele é que é o Caminho certo, tradicional. Fiquei satisfeito!
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"Rendas" naturais e quadros de verde...
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A "Casona del Nansa" (onde lá foi mais uma Coca-Cola) e o Rio Nansa, junto à
Puente El Arrudo
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Depois de
Cades ... foi como se tivesse deixado este mundo e este
tempo. Peregrinos ... desde San Vicente que não via nenhum. As pequenas
aldeias ... cada vez se foram tornando mais pequenas, mais rurais, com menos
gente. Acompanhei as gargantas do rio
Lamasón, afluente do Nansa, até
Sobrelapeña ... e continuei a subir
rumo a
Lafuente,
Burió,
Los Pumares.
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Despedida do Nansa, próximo de Sobrelapeña
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Tudo começava a ser fabulosamente agreste e "selvagem". Eu estava a
começar ... a subir a Montanha...
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Sempre que havia água o cantil agradecia ... mas os pés
também...
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Lafuente ... nenhuma aldeia
aqui é mais que meia dúzia de casas...
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Entre
Lafuente e
Los Pumares subi trezentos metros de
desnível em pouco mais de 2 km ... sendo que depois de
Burió a pista empinou a valer. Mas, vá
lá ... a padroeira da minúscula aldeia de
Burió ... é a "minha"
Santa Eulália... 😀. Os pés, cansados de tanto alcatrão (embora em estradas
secundárias e de paisagens fabulosas) ... passaram para as pedras resvaladiças
de um trilho a subir a bom subir ... por vezes com intervalos de cimento nos
troços mais íngremes...
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Lafuente, vista da subida para Burió, 14h10
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Burió ... uma minúscula aldeia
com Santa Eulália por padroeira
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E na empinada subida entre
Burió e
Los Pumares ... completei os
meus primeiros 100 km neste Caminho
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Um pobre peregrino aguarda que lhe abram o
Albergue de Cicera ... onde fui o único candidato a 20 camas... Na foto
acima, para lá de Cicera já se percebe o Desfiladeiro de
La Hermida, um dos mais célebres dos
Picos de Europa
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Antes das três da tarde estava em
Cicera,
com 34 km desde
San Vicente de la Barquera ... e os pés a pedirem
repouso. Os calcanhares já aparentavam formar as "famosas"
ampollas,
mas ... nada que um bom banho não tenha minimizado. E jantar, em
Cicera? Hmm ... umas compras simples na
tienda/bar ... aquecidas
no micro ondas do albergue ... e foi a melhor das iguarias. Deitei-me cedo ...
creio que sonhei com fadas e duendes ... a pulular nos bosques da manhã
seguinte.
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Tenho muita cama por onde escolher ... e por onde estender a roupa
lavada...
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Sexta feira, 23 de Julho. Acordei cedo ... as montanhas em redor de
Cicera estavam "cacimbentas"; caía
aliás uma morrinha ligeira. Onde andariam o Calisto e o seu amigo espanhol?
Onde estariam a Isi e o Jesus? Sabia que estariam também no Caminho Lebaniego,
mas possivelmente mais para trás.
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Cicera, 23.Jul.2021, 6h30 da manhã: ainda da janela do albergue ... vejo os
montes cobertos de nuvens
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Aqueci o café com leite trazido de véspera da
tienda, comi
uns
sobaos que igualmente tinha comprado. A morrinha já tinha
parado. Santiago estava comigo ... e zarpei para o meu 4º Dia de Caminho ... e
que Caminho! Um estreito e sinuoso
sendero deixou para trás o vale
de
Peñarrubia e entrou nos bosques que tinham povoado os meus
sonhos. Sempre a subir, por entre a ramagem às vezes percebia-se a poente o
desfiladeiro de
La Hermida, atravessado pela
estrada vinda da costa cantábrica para
Potes e para os Picos de
Europa, que várias vezes percorri nos anos 80 e 90 ... do século passado.
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Imagens de um Sonho real ... vivido ... sentido. Entre
Cicera e
Lebeña, nas encostas da margem
direita do rio Deva e do desfiladeiro de
La Hermida
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Pouco depois das dez estava em
Lebeña,
pequena aldeia já próxima do rio
Deva, tornada famosa pela sua Igreja
mozárabe de
Santa María de Lebeña, principal
monumento pré-românico da Cantábria.
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Lebeña e a sua Igreja Mozárabe
de Santa María de Lebeña, no
profundo vale do rio Deva
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Dos menos de 500 metros de altitude de
Cicera tinha começado por subir
aos mais de 800 ... descido aos pouco mais de 200 de
Lebeña e do
Deva. Já na margem esquerda do desfiladeiro ... iria voltar a subir
para
Allende e
Cabañes ... para voltar a descer para o
alto
Deva e para
Potes. Para
além dos desníveis acumulados, o piso quando não era de alcatrão ... era
maioritariamente de pedra solta. Começava seriamente a temer pelos meus pés;
os calcanhares estavam a entrar em sofrimento...
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O Rio Deva, a pequena aldeia
de Allende, já na margem esquerda:
janelas sobre o desfiladeiro de La Hermida
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Cabañes, mais uma pequena aldeia de
montanha,
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encravada nos limites entre Cantábria e Astúrias
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Lá em baixo, no vale do Deva, ainda se vê Lebeña
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O vale de Liébana, visto ainda das
terras altas de Cabañes e Pendes
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Ermida de San Francisco de Assis, entre Pendes e o rio
Deva
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Ponte sobre o Deva em Tama, 14h20: pouco faltava já
para Potes
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Pelas três da tarde entrava em
Potes, capital de
Liébana. O
Albergue Municipal
é mesmo no centro, junto à
Torre del Infantado e ao rio
Deva; 60 lugares, várias
camaratas; chegariam outros peregrinos ... mas na minha camarata fiquei
sozinho; banho e repouso ... que os pés bem precisavam.
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Potes, 23.Jul.2021, 15h05 - Várias
vezes aqui vim com alunos, com a família, com amigos ... no século
passado...
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Potes, 18h15 - Um pequeno passeio
pelas ruas próximas do centro ... e a pôr os pés de molho no rio
Deva
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Potes tinha bastante movimento
turístico, a lembrar um qualquer verão antes da pandemia. Neste pequeno
passeio ... umas sandálias numa montra como que me chamaram; "
umas sandálias de trekking, abertas, seriam a solução para o atrito na
parte traseira dos calcanhares" ... "
mas devem custar uma pequena fortuna". Entrei ... as sandálias
tinham muito bom aspecto ... só tinham o meu número ... e custavam ... 35€ 😲.
Calcei-as ... impecáveis. Seguramente ... foi Santiago quem ali colocou
aquelas sandálias, àquele preço! E no dia seguinte saí de sandálias ... e saí
com o Calisto e o Zé Cabrera, o espanhol amigo dele. Apareceram quando eu
estava a jantar ... tinham vindo de
Cades ... e feito mais de 40
km ... quase totalmente pela estrada! Coisas do Caminho...
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A primeira meta estava cumprida:
Santo Toribio de Liébana,
24.Jul.2021, 9h20
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O Lignum Crucis, o maior pedaço conhecido da Cruz de Cristo
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Tinham decorrido apenas 4 dias e umas horas ... mas eu já sentia que talvez
nunca tivesse estado num Caminho tão duro fisicamente. Seria por estar
sozinho? Não me parecia. O que sentia nos pés nada tinha que ver com o
problema que me obrigou a parar em 2015,
em Ourém. A dor era por vezes intensa ... mas o Caminho era fabuloso ... e Santiago
dizia-me ao ouvido ... "
tu consegues"...
E assim ... continuei...
(Escrito a 8 e 9 de Agosto, após o regresso)
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