Ao princípio da madrugada de 25 de Abril de 1974, na parada da
Escola Prática de Cavalaria de Santarém, o capitão
Salgueiro Maia
proclamou aos seus homens:
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Salgueiro Maia, 25 de Abril de 1974
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Meus senhores, como todos sabem há diversas modalidades de Estado: os
Estados sociais, os Estados corporativos ... e o estado a que
chegámos.
Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a
que chegámos!
De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para
Lisboa e acabamos com isto.
Quem for voluntário, sai e forma!
Quem
não quiser sair, fica aqui.
E assim vieram para Lisboa gritar
LIBERDADE! Com cravos vermelhos no cano das espingardas!
Por essa mesma altura ... três Zés viviam a sua juventude do modo que o
destino, ou os desígnios universais, lhes tinham ditado. O Zé Messias, puto
com 10 anos, crescia ali por entre a Graça e Santa Apolónia; daquela manhã, na
casa dos avós ... lembra-se que a carrinha não passou para o levar à escola
... e recorda a janela e o rádio onde ouviu a leitura de comunicados que mal
entendia ... e um rapaz de cabelo muito comprido, que tinha um quarto alugado
no mesmo prédio e que chegou a casa descalço e rouco. Imagens, só as veria
dias mais tarde, porque em casa dele, como em tantas outras nesses tempos,
a televisão ainda era uma miragem.
O Zé Rey ... ainda não era Rey ... mas essas são contas de um outro rosário;
exactamente 10 anos mais velho que o Zé Messias ... o Zé "da Mouta" já andava
por Paris, "agitando" os espíritos, fabricando e distribuindo um jornal de
"desobediência". E o Zé Callixto (o "
rapaz pacato" da introdução a estas "memórias"), também 10 anos mais velho que o Zé
Messias ... tinha acabado de viver os "
anos loucos" da sua adolescência. Mas o sonho e a paixão - e a Faculdade de Ciências de
Lisboa - já lhe tinham trazido uma companheira para toda a Vida ... uma
estrela arraiana; naquele dia 25 de abril de 1974 já estávamos casados; não
chumbar garantira-me não ir parar à guerra colonial.
Então e o que liga os três Zés ao 25 de abril e a este
blog de memórias
que, apesar de serem memórias de uma Vida, são essencialmente ligadas aos
instantâneos de ar livre, ao pedestrianismo, às "aventuras" por fragas e
pragas...? O que nos ligou foi a ideia do Zé Messias de comemorar os 50 anos
do 25 de abril de 74 ... percorrendo a pé o percurso do capitão
Salgueiro Maia, de
Santarém a
Lisboa. A coluna da
Escola Prática de Cavalaria saiu de Santarém pela calada da noite; nós,
para vir a pé ... teríamos de sair 24 horas antes da manhã do
DIA DA LIBERDADE. E o projecto ganhou uma sigla numérica com sabor a épica: era o nosso
projecto
50 / 60 / 70 / 80. Sim, simples ... 50 anos (do 25 de abril) /
60 anos (do Zé Messias) / 70 anos (meus e do Zé Rey) / 80 km (a distância a
percorrer, mais coisa, menos coisa). Uma insanidade? Não! É que ... "
às vezes é preciso desobedecer"... 💓
E assim, pouco depois das nove da manhã de 24 de abril de 2024, os três Zés
faziam a partida simbólica da antiga
Escola Prática de Cavalaria de
Santarém. Logo ali se começou a escrever a história deste nosso tributo ao
capitão de abril: por mera coincidência, fomos entrevistados primeiro para a
CNN e, já no Parque da Liberdade, para a RTP, neste caso em directo. O que nos
movia para semelhante "aventura" foi, naturalmente, o tema central das
entrevistas.
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Santarém, Escola Prática de Cavalaria, 24.04.2024, 09h25
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- Com cravos nas mochilas, três Zés partem "sobre" Lisboa
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As televisões estavam já nos preparativos para as comemorações ... e a
história do nosso tributo começava ali...
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Já à saída da cidade, um primeiro ponto de passagem obrigatório era o
monumento em homenagem ao capitão
Salgueiro Maia, juntamente com a réplica da Chaimite que comandou a coluna militar em
direcção a Lisboa. Já passava das dez da manhã quando começámos a verdadeira
"marcha" ... mas tínhamos 24 horas pela frente para chegar ao Terreiro do
Paço...
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Monumento a Salgueiro Maia, à saída para a Estrada Nacional 3,
que havia de o e nos levar a Lisboa
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Quinta da Amendoeira, à entrada do Vale de Santarém, 11h10
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Ao longo da EN 3 |
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... a "Estrada da Liberdade"
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15h35 ... e estávamos a 2 km da Azambuja e a 44 km de
Lisboa...
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Idealizar um percurso desta natureza (mais de 80 km) e com estes objectivos
... tem de obedecer a alguns critérios. Por um lado, como amantes da Natureza
e dos espaços naturais, preferimos sempre os trilhos, os espaços verdes; por
outro lado, neste caso deveríamos seguir o mais possível o percurso da coluna
de Salgueiro Maia. Optámos por uma mescla das duas "imposições", tendo também
em conta evitar zonas perigosas em termos de trânsito automóvel,
particularmente quando chegasse a noite.
E assim, com 28 km nos pés, pouco depois das quatro estávamos a atravessar a
Azambuja.
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Azambuja, 16h05 ... e quase duas horas depois em
Vila Nova da Rainha
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As paragens, nesta "maratona" pela Liberdade, não podiam ser nem foram muitas.
Hidratar e meter "combustível", descansar um pouco quando possível e
necessário ... até porque os "pneus" dos "chaimites" (leia-se ... os nossos
pés) começavam, como é natural, a denotar o esforço acumulado. Dois dos três
Zés nunca tinham percorrido mais de 50 km
non stop. Desde a Azambuja
que tínhamos deixado a EN 3, para passarmos a acompanhar os trilhos junto à
linha do comboio ... pelo Caminho de Fátima e Santiago ... e com uma pausa
maior no "Cantinho da Vila" de
Vila Nova da Rainha.
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No Caminho de Fátima / Santiago ... e são já 21h25 quando chegamos a
Vila Franca de Xira
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O Sol pôs-se ao atravessarmos a lezíria ... e às nove e meia estávamos em
Vila Franca, com 47 km nos pés. Já "só" faltavam cerca de 38, mais
coisa menos coisa. Das poucas opções, ou única, optámos por jantar num bar
junto à Estação da CP; uma sopa razoável, uns pregos rijos para dois Zés ... e
uma
pizza que até soube bem a este Zé mas a qual ficou a
"trabalhar" cá dentro até alta madrugada.
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Três peregrinos pela Liberdade, no painel alusivo ao Caminho de Santiago, Alhandra, 23h20
Às 22h55 ouvimos a 1ª senha
do Movimento das Forças Armadas ... "E depois do adeus"...
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Alverca, 25.04.2024, 01h05
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Entre
Alhandra e
Alverca ... entrámos no dia
25 de Abril! A 2ª senha do MFA, a histórica "
Grândola Vila Morena", teve um episódio digno de registo. Por lapso, fiz o Zeca Afonso cantar a
Grândola antes da hora, e, vá-se lá saber como ou porquê ... o telemóvel
calou-se 5 ou 6 segundos depois. Talvez Salgueiro Maia lhe tenha dito, lá do
"alto", que ainda não eram horas. Quando depois, às 00h21, o voltei a "chamar"
... não houve interrupção. Estava dada a senha definitiva que confirmou o
início simultâneo das operações em todo o País e o avanço das forças
sublevadas sobre os seus objectivos.
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A longa noite avançava ... e nós com ela. Foz do Trancão, 04h25
...
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... e na zona de Braço de Prata o dia começa a despontar,
são 06h50
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O nosso avanço era cada vez mais lento; o peso das "armas" era grande. Mas se
tivéssemos andado mais rápidos ... não teríamos assistido ao avanço da coluna
militar ao longo da Avenida Infante D. Henrique, na zona de
Xabregas.
Lá iam as tropas, com força e convicção, rumo ao
Terreiro do Paço!
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A Marcha "sobre" Lisboa avançava convicta ... e 23 horas
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depois da partida estávamos no Terreiro do Paço
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Exactamente 23 horas depois de partirmos de
Santarém ... com 83 km
nos pés doridos e sofridos ... chegávamos ao
Terreiro do Paço! E
chegávamos ao Terreiro do Paço ... à hora a que começavam as comemorações, com
o hino nacional cantado a plenos pulmões. Para nós três - especialmente para o
Zé Messias - tivemos também a surpresa de termos a Dina a receber-nos e, ainda
para mais, com um belo "miminho" de recepção! Obrigado Dina ... obrigado
Amigos!
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Terreiro do Paço, 08h50 ... 50 anos depois do 25 de Abril ...
23 horas e 83 km depois de Santarém
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Ao largo, no
Tejo, lá estavam as fragatas que também fizeram história
há meio século. E nós ... do
Terreiro do Paço ainda tivemos pernas e
vontade para subir ao
Largo do Carmo e "ver" prender Marcelo Caetano e
seus companheiros de regime. Afinal, foi no Carmo que se concretizou a
conquista final da
LIBERDADE! Não podíamos deixar de lá ir ... fechando a "aventura" com 85 km nos pés!
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Largo do Carmo, 09h10 ... no fim do nosso tributo a
Salgueiro Maia ... e com a Dina acompanhar-nos desde o Terreiro do Paço
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E de novo com os mesmos repórteres da CNN com que havíamos estado
em Santarém
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Foi com sentida e natural emoção que o único dos três Zés que, ainda
adolescente, partiu para terras de França, foi entrevistado de novo no final,
pelo mesmo repórter da CNN que nos havia entrevistado em Santarém. A vida do
Zé "da Mouta" dava um livro ... que aliás ele tem escrito e devia publicar.
São testemunhos como o dele que mais choram e gritam LIBERDADE! São testemunhos como o dele que mais dão valor às conquistas de Abril e às
portas que Abril abriu!
E foi também com sentida e natural emoção ... que nos despedimos. A nossa
gesta evocou, à nossa maneira, a memória do grande capitão
Salgueiro Maia ... "
a memória sem fim".
Viva a LIBERDADE! 25 de Abril SEMPRE !
1 comentário:
Amigo, sendo um dos três participantes nesta homenagem ao grande Salgueiro Maia, só posso dizer que também és ENORME, a tua descrição da nossa caminhada a três em reconhecimento a um homem e à liberdade que ele e os seus nos conseguiram obter 🙏
Que mais dizer .. que em tempos oportunos cada um de nós deu o seu contributo para que as coisas mudassem.
No que me diz respeito, tendo ido para França em 1969, com 15 anos de idade, foi de lá que contribuí a agitar os espíritos, ajudando a fabricar e distribuir um jornal de desobediência, em português, que distribuímos na região parisiense, à comunidade portuguesa.
Como sabes (pelo telefonema que fiz, antes de sairmos de Santarém), o título do jornal era : "A Voz do Povo", já era na altura um título premonitório.
Mas como poderia eu, sendo ou sentindo-me um puro produto Salazarista, ficar da braços cruzados ...
A resistência do homem é um estado natural quando se sente oprimido.
Por aqui vou parar, apesar de haver sempre que contar, mas a nossa caminhada já nos permitiu de conversarmos bastante sobre este assunto.
Um ENORME abraço sentido, viva a liberdade e o 25 de Abril sempre.
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