quinta-feira, 25 de abril de 2024

No Cinquentenário do 25 de Abril ... a caminhada para a Liberdade

Santarém - Lisboa non stop, à memória do capitão Salgueiro Maia

Ao princípio da madrugada de 25 de Abril de 1974, na parada da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, o capitão Salgueiro Maia proclamou aos seus homens:
Salgueiro Maia, 25 de Abril de 1974

Meus senhores, como todos sabem há diversas modalidades de Estado: os Estados sociais, os Estados corporativos ... e o estado a que chegámos.
Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos!
De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto.
Quem for voluntário, sai e forma!
Quem não quiser sair, fica aqui.

E assim vieram para Lisboa gritar LIBERDADE! Com cravos vermelhos no cano das espingardas!
Por essa mesma altura ... três Zés viviam a sua juventude do modo que o destino, ou os desígnios universais, lhes tinham ditado. O Zé Messias, puto com 10 anos, crescia ali por entre a Graça e Santa Apolónia; daquela manhã, na casa dos avós ... lembra-se que a carrinha não passou para o levar à escola ... e recorda a janela e o rádio onde ouviu a leitura de comunicados que mal entendia ... e um rapaz de cabelo muito comprido, que tinha um quarto alugado no mesmo prédio e que chegou a casa descalço e rouco. Imagens, só as veria dias mais tarde, porque em casa dele, como em tantas outras nesses tempos,
a televisão ainda era uma miragem.
O Zé Rey ... ainda não era Rey ... mas essas são contas de um outro rosário; exactamente 10 anos mais velho que o Zé Messias ... o Zé "da Mouta" já andava por Paris, "agitando" os espíritos, fabricando e distribuindo um jornal de "desobediência". E o Zé Callixto (o "rapaz pacato" da introdução a estas "memórias"), também 10 anos mais velho que o Zé Messias ... tinha acabado de viver os "anos loucos" da sua adolescência. Mas o sonho e a paixão - e a Faculdade de Ciências de Lisboa - já lhe tinham trazido uma companheira para toda a Vida ... uma estrela arraiana; naquele dia 25 de abril de 1974 já estávamos casados; não chumbar garantira-me não ir parar à guerra colonial.
Então e o que liga os três Zés ao 25 de abril e a este blog de memórias que, apesar de serem memórias de uma Vida, são essencialmente ligadas aos instantâneos de ar livre, ao pedestrianismo, às "aventuras" por fragas e pragas...? O que nos ligou foi a ideia do Zé Messias de comemorar os 50 anos do 25 de abril de 74 ... percorrendo a pé o percurso do capitão Salgueiro Maia, de Santarém a Lisboa. A coluna da Escola Prática de Cavalaria saiu de Santarém pela calada da noite; nós, para vir a pé ... teríamos de sair 24 horas antes da manhã do DIA DA LIBERDADE. E o projecto ganhou uma sigla numérica com sabor a épica: era o nosso projecto 50 / 60 / 70 / 80. Sim, simples ... 50 anos (do 25 de abril) / 60 anos (do Zé Messias) / 70 anos (meus e do Zé Rey) / 80 km (a distância a percorrer, mais coisa, menos coisa). Uma insanidade? Não! É que ... "às vezes é preciso desobedecer"... 💓
E assim, pouco depois das nove da manhã de 24 de abril de 2024, os três Zés faziam a partida simbólica da antiga Escola Prática de Cavalaria de Santarém. Logo ali se começou a escrever a história deste nosso tributo ao capitão de abril: por mera coincidência, fomos entrevistados primeiro para a CNN e, já no Parque da Liberdade, para a RTP, neste caso em directo. O que nos movia para semelhante "aventura" foi, naturalmente, o tema central das entrevistas.

Santarém, Escola Prática de Cavalaria, 24.04.2024, 09h25
- Com cravos nas mochilas, três Zés partem "sobre" Lisboa
As televisões estavam já nos preparativos para as comemorações ... e a história do nosso tributo começava ali...
Já à saída da cidade, um primeiro ponto de passagem obrigatório era o monumento em homenagem ao capitão Salgueiro Maia, juntamente com a réplica da Chaimite que comandou a coluna militar em direcção a Lisboa. Já passava das dez da manhã quando começámos a verdadeira "marcha" ... mas tínhamos 24 horas pela frente para chegar ao Terreiro do Paço...

Monumento a Salgueiro Maia, à saída para a Estrada Nacional 3, que havia de o e nos levar a Lisboa
Quinta da Amendoeira, à entrada do Vale de Santarém, 11h10
Ao longo da EN 3
... a "Estrada da Liberdade"
15h35 ... e estávamos a 2 km da Azambuja e a 44 km de Lisboa...
Idealizar um percurso desta natureza (mais de 80 km) e com estes objectivos ... tem de obedecer a alguns critérios. Por um lado, como amantes da Natureza e dos espaços naturais, preferimos sempre os trilhos, os espaços verdes; por outro lado, neste caso deveríamos seguir o mais possível o percurso da coluna de Salgueiro Maia. Optámos por uma mescla das duas "imposições", tendo também em conta evitar zonas perigosas em termos de trânsito automóvel, particularmente quando chegasse a noite.
E assim, com 28 km nos pés, pouco depois das quatro estávamos a atravessar a Azambuja.

Azambuja, 16h05 ... e quase duas horas depois em Vila Nova da Rainha
As paragens, nesta "maratona" pela Liberdade, não podiam ser nem foram muitas. Hidratar e meter "combustível", descansar um pouco quando possível e necessário ... até porque os "pneus" dos "chaimites" (leia-se ... os nossos pés) começavam, como é natural, a denotar o esforço acumulado. Dois dos três Zés nunca tinham percorrido mais de 50 km non stop. Desde a Azambuja que tínhamos deixado a EN 3, para passarmos a acompanhar os trilhos junto à linha do comboio ... pelo Caminho de Fátima e Santiago ... e com uma pausa maior no "Cantinho da Vila" de Vila Nova da Rainha.

No Caminho de Fátima / Santiago ... e são já 21h25 quando chegamos a Vila Franca de Xira
O Sol pôs-se ao atravessarmos a lezíria ... e às nove e meia estávamos em Vila Franca, com 47 km nos pés. Já "só" faltavam cerca de 38, mais coisa menos coisa. Das poucas opções, ou única, optámos por jantar num bar junto à Estação da CP; uma sopa razoável, uns pregos rijos para dois Zés ... e uma pizza que até soube bem a este Zé mas a qual ficou a "trabalhar" cá dentro até alta madrugada.
Três peregrinos pela Liberdade, no painel alusivo ao Caminho de Santiago,
Alhandra, 23h20

Às 22h55 ouvimos a 1ª senha do Movimento das
Forças Armadas ... "E depois do adeus"...
Alverca, 25.04.2024, 01h05
Entre Alhandra e Alverca ... entrámos no dia 25 de Abril! A 2ª senha do MFA, a histórica "Grândola Vila Morena", teve um episódio digno de registo. Por lapso, fiz o Zeca Afonso cantar a Grândola antes da hora, e, vá-se lá saber como ou porquê ... o telemóvel calou-se 5 ou 6 segundos depois. Talvez Salgueiro Maia lhe tenha dito, lá do "alto", que ainda não eram horas. Quando depois, às 00h21, o voltei a "chamar" ... não houve interrupção. Estava dada a senha definitiva que confirmou o início simultâneo das operações em todo o País e o avanço das forças sublevadas sobre os seus objectivos.

A longa noite avançava ... e nós com ela. Foz do Trancão, 04h25 ...
... e na zona de Braço de Prata o dia começa a despontar, são 06h50
O nosso avanço era cada vez mais lento; o peso das "armas" era grande. Mas se tivéssemos andado mais rápidos ... não teríamos assistido ao avanço da coluna militar ao longo da Avenida Infante D. Henrique, na zona de Xabregas. Lá iam as tropas, com força e convicção, rumo ao Terreiro do Paço!

A Marcha "sobre" Lisboa avançava convicta ... e 23 horas
depois da partida estávamos no Terreiro do Paço
Exactamente 23 horas depois de partirmos de Santarém ... com 83 km nos pés doridos e sofridos ... chegávamos ao Terreiro do Paço! E chegávamos ao Terreiro do Paço ... à hora a que começavam as comemorações, com o hino nacional cantado a plenos pulmões. Para nós três - especialmente para o Zé Messias - tivemos também a surpresa de termos a Dina a receber-nos e, ainda para mais, com um belo "miminho" de recepção! Obrigado Dina ... obrigado Amigos!

Terreiro do Paço, 08h50 ... 50 anos depois do 25 de Abril ... 23 horas e 83 km depois de Santarém
Ao largo, no Tejo, lá estavam as fragatas que também fizeram história há meio século. E nós ... do Terreiro do Paço ainda tivemos pernas e vontade para subir ao Largo do Carmo e "ver" prender Marcelo Caetano e seus companheiros de regime. Afinal, foi no Carmo que se concretizou a conquista final da LIBERDADE! Não podíamos deixar de lá ir ... fechando a "aventura" com 85 km nos pés!

Largo do Carmo, 09h10 ... no fim do nosso tributo a Salgueiro Maia
... e com a Dina acompanhar-nos desde o Terreiro do Paço
E de novo com os mesmos repórteres da CNN
com que havíamos estado em Santarém
Clique para ampliar, ou aqui para ver no Wikiloc

Foi com sentida e natural emoção que o único dos três Zés que, ainda adolescente, partiu para terras de França, foi entrevistado de novo no final, pelo mesmo repórter da CNN que nos havia entrevistado em Santarém. A vida do Zé "da Mouta" dava um livro ... que aliás ele tem escrito e devia publicar. São testemunhos como o dele que mais choram e gritam LIBERDADE! São testemunhos como o dele que mais dão valor às conquistas de Abril e às portas que Abril abriu!
E foi também com sentida e natural emoção ... que nos despedimos. A nossa gesta evocou, à nossa maneira, a memória do grande capitão Salgueiro Maia ... "a memória sem fim".


Viva a  LIBERDADE!  25 de Abril SEMPRE !

1 comentário:

Zé Rey disse...

Amigo, sendo um dos três participantes nesta homenagem ao grande Salgueiro Maia, só posso dizer que também és ENORME, a tua descrição da nossa caminhada a três em reconhecimento a um homem e à liberdade que ele e os seus nos conseguiram obter 🙏
Que mais dizer .. que em tempos oportunos cada um de nós deu o seu contributo para que as coisas mudassem.
No que me diz respeito, tendo ido para França em 1969, com 15 anos de idade, foi de lá que contribuí a agitar os espíritos, ajudando a fabricar e distribuir um jornal de desobediência, em português, que distribuímos na região parisiense, à comunidade portuguesa.
Como sabes (pelo telefonema que fiz, antes de sairmos de Santarém), o título do jornal era : "A Voz do Povo", já era na altura um título premonitório.
Mas como poderia eu, sendo ou sentindo-me um puro produto Salazarista, ficar da braços cruzados ...
A resistência do homem é um estado natural quando se sente oprimido.
Por aqui vou parar, apesar de haver sempre que contar, mas a nossa caminhada já nos permitiu de conversarmos bastante sobre este assunto.
Um ENORME abraço sentido, viva a liberdade e o 25 de Abril sempre.