Ao 9º Dia de Caminho, em Cistierna fiz a
segunda e última agulha, nesta junção de Caminhos que um dia surgiu no canto
dos meus Sonhos. O Caminho Vadiniense tem mais duas etapas, até se
juntar ao Francês em Mansilla de las Mulas, mas em
Cistierna entrei no Camino Olvidado. O Luis (ver a
anterior crónica) já vinha nele desde Bilbao; estava na sua 11ª etapa.
Camino Olvidado
1ª Parte: Montes de León (Cistierna - Fasgar)
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Puente de Mercadillo, sobre o
Esla, 28.Jul.2021, 7h35
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É pouco depois de atravessar o
Esla a
bifurcação entre os dois Caminhos. Aliás, um painel junto à ponte atesta:
Peregrino que aquí abandonas las Montañas de Vadínia, Buen Camino!
Que las frías aguas del Río Grande siguen corriendo otros dos mil años
bajo los cuatro magníficos arcos escarzanos y los peregrinos pisen estas
venerables piedras mientras dure la santa memoria del patrón de las
Españas
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Bifurcação entre o Caminho Vadiniense e o Olvidado,
7h45
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Igreja del Salvador, Yugueros
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E Capela de Acisa de las Arrimadas
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Esta foi a etapa mais fácil do meu périplo; poucos desníveis ... não muito
alcatrão ... trilhos sem pedra solta. De destacar a pequena aldeia de
Barrillos de las Arrimadas, que recebe os
peregrinos dizendo-lhes que estão no "
Camino Viejo de Santiago", com
diversas esculturas relacionadas com os trabalhos agrícolas, e com o seu
Santuário ... de Nossa Senhora dos Remédios.
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Barrilos de las Arrimadas, 11h40 -
Estou mesmo no Camino Viejo ... e no Santuário de Nª Srª
dos Remédios
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A bom ritmo ... pouco depois da uma hora estava na simpática e animada vila
de
Boñar, fim de etapa, com 26 km desde
Cistierna. A preço peregrino, o
Hostal Nisi foi a
escolha acertada; depois de um belo descanso que os pés agradeceram
encarecidamente, numa pequena volta lá encontrei o Luis num bar. Era agora o
único peregrino que conhecera que estava também no meu Caminho. Mas todos os
dias me mantive em contacto com o Calisto e amigo e, principalmente, com os
meus
ángeles del Camino, a Isi e o Jesus, que aliás me mandaram a foto
tirada na véspera, em Cistierna.
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Largo central e Igreja da animada vila de
Boñar, 28.Jul., 18h40
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Com a Isi e o Jesus em Cistierna (foto enviada no dia
seguinte)
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E com o Luis em Boñar ... durante um belo jantar
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A partir de
Boñar, o Caminho
Olvidado tem duas variantes: uma menos montanhosa, por
La Robla;
e outra com maiores desníveis, por
Vegacervera e
Buiza, tendo
esta um pequeno troço comum ao Caminho de
San Salvador.
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Bifurcação para Vegacervera, 29.07, 8h10
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É fácil de prever qual escolheria ... tanto mais que o "pai" dos dois Caminhos me havia
previamente desafiado para as etapas de montanha. Cabe aqui, aliás, uma
palavra de agradecimento e louvor ao
Jose Antonio Cuñarro, incansável mentor e promotor destes dois Caminhos, que tudo fez, ainda antes
de eu sair de casa, para conseguir os alojamentos e os contactos que me
permitiriam ultrapassar as dificuldades de um Caminho pouco percorrido ... e
em tempos de pandemia.
Gracias, Jose Antonio Cuñarro, eres grande!
Deixei
Boñar antes das 7h00. Atravessei
o rio
Porma ... e comecei a subir, primeiro para
Valdepiélago ... e depois, cruzando o
rio
Curueño, por trilhos de montanha pura e dura, bordejando as
encostas leste de
Peña Galicia. 1000m ... 1200m ... 1300m ... e não ia ficar por aí. Nalguns pontos ...
parecia que tinha voltado ao Peru e às calçadas incas, a caminho de
Machu Picchu. E de vez em quando ouvia os meus pés a dizerem-me ... "
bolas, já estávamos um bocadinho melhores ... lá voltámos às pedras"...
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Não ... não são as calçadas incas para Machu Picchu ... é o trilho que
leva de Valdepiélago a
Valdorria Por trás da aldeia, a
Peña Valdorria (1926m alt.)
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Aos 1300 metros de altitude, próximo da aldeia de
Valdorria, o
Olvidado gira para
ocidente, passando agora à encosta norte de
Peña Galicia ... e subindo quase aos 1500m
em menos de 1 km. 22% de inclinação? Sim, mas ... e o piso? As fotos seguintes
apenas dão uma ideia...
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Peña Galicia, à esquerda (1630m
alt.). O Caminho passa na base, a 1500m alt.
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No planalto a que o Caminho me levou, a 1500 metros de altitude ... pastavam
vacas. Estava literalmente
entre peñas:
Peña Valdorria, praticamente nos dois mil,
Peña Galicia e
Peña La Pinguera, na casa dos 1600m, de um e outro lado daquele planalto ... onde o trilho de
vez em quando desaparecia. Com a ajuda do GPS e, um pouco mais abaixo, um
tanque de água ... e lá estavam as setas amarelas. Uns minutos antes do meio
dia estava em
Correcillas, minúscula aldeia
onde terminava o trilho e começava a estrada que, duas horas depois, me havia
de levar a
Vegacervera.
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Descida das alturas ... e entro em
Correcillas (1310m alt.)
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Cruzei o rio
Torio entre
Villalfeide e
Vegacervera ... e antes das duas estava nesta última, uma vila de
montanha mais ou menos turística, célebre pelas
Hoces do rio
Porma e pela proximidade das
Cuevas de Valporquero.
O
Jose Antonio Cuñarro tinha-me dado a indicação do
Albergue "El Chaltén", em
Vegacervera, onde reservei a dormida e o jantar, antes de iniciar o Caminho. Mas gosto
sempre de um ou dois dias antes telefonar a confirmar ... só que ninguém me
atendeu o telefone...
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Vegacervera, 29.Jul., 14h00 - Uma
pequena vila turística junto às hoces do rio Torio ... onde iria viver uma pequena "aventura"
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Ao chegar a
Vegacervera e ao "
El Chaltén", constituído por uns quantos
bungallows de madeira ... não
havia ninguém. Voltei a tentar o contacto telefónico ... mas nada. A tarde
estava quente ... pelo que tirei a mochila e sentei-me a descansar e a admirar
o enquadramento paisagístico; esperei, esperei ... e ao fim de quase uma hora
resolvi desistir e ir procurar outro alojamento, à sorte, na pequena vila
turística. No restaurante "
El Molino", lembrei-me de perguntar se não tinham uma cama; disseram-me que não,
perguntaram-me se era peregrino ... e que o albergue era pouco mais acima. Lá
expliquei que já lá tinha estado e o que se passava ... e a simpática senhora
indicou-me onde moravam os responsáveis pelo albergue, ali próximo. Lá fui,
bati à porta ... e apareceu-me uma simpática jovem argentina (fiquei a saber a
razão do nome do albergue...); simpática ... mas que não sabia de nada de
reserva nenhuma.
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Albergue "El Chaltén", Vegacervera, com um belíssimo
pano de fundo
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Segundo a simpática jovem, o telefone para onde eu havia tentado ligar várias
vezes (e para o qual havia feito a reserva, antes do Caminho) ... não existia
... apesar de ser o que está nos contactos do
site
do albergue! Mas dispôs-se a voltar comigo aos
bungallows e que sim,
que claro que poderia ficar. Uff! Respirei de alívio ... e fiquei sozinho a
"tomar conta" de um
bungallow com 10 camas ... e do restante "campo" de
bungallows, vazio. Mais tarde ligou-me, de um outro número, um tal
Pablo ... marido da jovem argentina ... e com modos e simpatia diametralmente
opostos. Confirmou-me que o número para o qual eu havia tentado ligar não
existia; quando eu lhe disse que foi para esse número que fiz a reserva e que
é o número que está no
site
... não sabia! Quanto ao jantar que havia reservado ... não ... "
no cocinamos para tan solo un peregrino". Que simpatia ... que espírito de Caminho.
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Vegacervera, Igreja da
Virgen de las Nieves, 30.Jul. 7h10
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Então para que têm o preço com refeições no
site? Sobre o pequeno almoço, incluído no preço da dormida ... vá lá ... esse
deixaram-mo preparado de véspera ... e esse até era farto e de qualidade.
No dia seguinte saí de Vegacervera com
o Sol a preparar-se para nascer. Esta viria a ser uma das etapas mais curtas,
apenas 21 km, mas de novo uma etapa dura, até porque principalmente entre
Coladilla e Villar del Puerto ... o Caminho está tão
olvidado que desaparece mesmo no mato e em terrenos de cultura.
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Entre Coladilla e Valle de Vegacervera ...
antes de o Caminho desaparecer...
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Imagens de um Caminho fabuloso ... mas olvidado. Cercas,
arames, campos de cultura, mato ... de tudo me apareceu...
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Pouco depois da aldeia de
Valle de Vegacervera, o Caminho vai à estrada
... que nunca desejei tanto. É uma estrada secundária, que liga
Vegacervera a
La Vid; alcatrão ... mas pelo menos sem
cercas, arames e mato para desbravar. E troquei até umas palavras com uma
simpática aldeã que fazia a sua caminhada matinal ... e que me disse "
hace mucho que no pasan aquí peregrinos".
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Já na estrada, junto às Hoces de Villar e com a simpática
aldeã que me disse que ali ... "hace mucho que no pasan peregrinos". Na foto de baixo, a aldeia de Villar del Puerto.
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O Caminho
Olvidado volta a sair da estrada junto ao cemitério de
Villar del Puerto ... mas o trilho praticamente desaparecia de
novo, coberto de mato. Depois do que tinham passado antes, com matos e cercas
... os meus pés olharam para o aspecto do trilho e disseram-me ... "
vai pela estrada". Tive pena ... mas obedeci-lhes; perdi a passagem por dentro do
desfiladeiro das
Hoces de Villar e um bosque de faias antes de
Ciñera ... mas o Caminho precisa mais cuidado nesta etapa, apesar de
tudo fabulosa.
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As Hoces de Villar ... vistas
da estrada que me levou à vila de
La Vid, no vale do
Bernesga
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Junto à Igreja de
La Vid ... houve que
tratar dos pés. Cortar partes soltas de
Compeeds, pomada
regeneradora, ligadura a envolver parte do pé esquerdo. E entretanto ... até a
bota direita reflectia já a dureza deste conjunto de Caminhos; a membrana
Goretex já estava à vista, a estrurura externa da bota começara a ceder.
Trata-se de umas boas botas
Bestard Android, com menos de dois anos e menos de mil km ... mas provavelmente para este
Caminho eu deveria ter levado as minhas velhas botas de montanha
Bestard Top Performance ... que nunca levei para nenhum Caminho de Santiago.
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Subida da encosta entre
La Vid e
Buiza; difícil, troços de grande
declive ... mas pelo menos havia trilho.
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O objectivo seguinte era
Buiza, pequena
aldeia de montanha ... já minha conhecida do
Caminho de San Salvador, que percorri em 2017. Um troço de novo com algumas dificuldades, entre
La Vid e
Buiza ... tanto mais que na parte inicial da
descida para
Buiza o trilho e as setas voltaram a desaparecer; mas
pelo menos não havia mato nem cercas ... pelo que o GPS me conduziu
facilmente.
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Descida para Buiza, acompanhado de
dezenas e dezenas de borboletas ... e em
Buiza, no mesmo local de uma foto de
2017
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O célebre lobo de Buiza, escultura
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metálica igualmente conhecida de há 4 anos
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De
Buiza a
Pola de Gordón é um troço original nos
Caminhos de Santiago: dois Caminhos coincidem ... em sentidos contrários. O
Caminho de
San Salvador prossegue para norte, rumo à Catedral de
S. Salvador de Oviedo, enquanto que o Caminho
Olvidado ruma a sul.
Como o albergue de
Buiza ainda está encerrado, rumei a sul,
terminando a etapa na
Pensión Rabocán
... mais uma vez indicada pelo
Jose Antonio Cuñarro.
À beira do rio
Casares, afluente do
Bernesga, perto do
cruzamento de
Buiza para
Pola de Gordón ... a
Pensión Rabocán
é um esplêndido local para repouso, seja para turistas ou para peregrinos, a
quem dá apoio a preços especiais. O jantar ... divinal, como as fotos
ilustram. E quando perguntei se me poderiam deixar o pequeno almoço preparado,
para sair antes das sete ... disseram-me logo que estariam a pé para o servir.
Tão parecido com a antipatia e ausência do Pablo do
"El Chaltén", em
Vegacervera! E ainda fiquei a saber que a
Rabocán
é gerida ... por pai, mãe e duas filhas.
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12° Dia ... um dia em que quase tudo aconteceu ao sabor do improviso.
É assim o Caminho... Pola de Gordón, rio Bernesga, 31.Jul.2021,
7h15
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Ainda à noite, na véspera, Santiago disse-me: "
amanhã não vás pelo track do Caminho". E eu, depois das peripécias dos troços em que o Caminho desaparecia ...
improvisei; arranjei uma variante minha: com base nos mapas do
Locus, liguei as duas variantes do
Camino Olvidado ... e não me arrependi.
A subida ao
Pico Fontañan foi qualquer coisa de espectacular!
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À conquista do Pico
Fontañán (1634m alt.), entre
Pola de Gordón e Olleros de Alba ... numa
variante pessoal
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A descida para
Olleros de Alba foi igualmente fabulosa, ao
encontro do desfiladeiro do rio
Olleros. O traçado do Caminho
Olvidado poderia passar por ali; não creio que haja fortes razões
históricas para que não o seja. Pelas 10h30, em
Olleros de Alba, estava
na variante A do
Olvidado, vinda de
La Robla.
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Descida do Pico Fontañán ao
longo do desfiladeiro de Olleros ... e em
Olleros de Alba reentrava no Caminho
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Por
Carrocera e
Otero de las Dueñas, pouco depois do meio
dia estava em
La Magdalena, onde tinha alojamento reservado no albergue/hostal "
El Crucero". Uma das minhas preocupações desde antes de iniciar o Caminho era a etapa
do dia seguinte: 47 km, de
La Magdalena a
Fasgar, já que
pelo meio nem o
Jose Antonio Cuñarro tinha conseguido alojamento; para o estado dos meus pés ... 47 km era
assustador. Mas, tendo chegado cedo ... resolvi avançar até
Riello ... recorrendo a um táxi para regressar a
La Magdalena, táxi esse que, no dia seguinte, me foi repor em
Riello. Baralhados? Releiam, nesse caso... 😜. Foi a solução para não
pôr em risco as etapas seguintes, fazendo de qualquer modo o percurso por
inteiro. Assim ... os pés disseram-me que faziam as 4 etapas que lhes faltavam
deste duríssimo Caminho. Que remédio tinham eles ... mesmo sem saberem o que
ainda iam passar... 👣
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O Rio Luna em
La Magdalena, 31.Jul., 13h25
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17 km sem história, por
Villayuste e
Lago de Omaña
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Um selo para a Credencial original, em Lago de Omaña
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Igreja de Riello, 17h05
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E no
Bar "Villamor", em Riello, com a muito simpática
Mar, que ali recebe carinhosamente os peregrinos
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O troço de
La Magdalena a
Riello (17 km) foi contudo o troço mais
monótono do
Camino Olvidado. Estradões, aldeias fantasmas -
Villayuste,
Lago de Omaña e
Oterico - linhas de água secas
... e nem vivalma. Em
Riello, aí sim,
o
Jose Antonio Cuñarro tinha-me recomendado o
Bar "Villamor" e a sua gentil
Mar ... que faz uma festa aos peregrinos que chegam.
Que pena não haver onde dormir em
Riello ... e antes das seis da
tarde estava de regresso a
La Magdalena, com 38 km nos pés ... e com a
estranha sensação de fazer em 20 minutos o que tinha feito em mais de três
horas.
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Antes das sete e meia da manhã do dia seguinte, 1 de Agosto ... estava
de novo em Riello.
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La Omañuela, 8h30 - Ia começar
a subir o curso do rio Omaña, na
Reserva dos Vales de Omaña y Luna
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A etapa do primeiro dia de Agosto foi caracterizada pelos vales dos rios
Omaña e
Vallegordo, afluente do primeiro.
Particularmente depois da aldeia de
Omañuela ... senti-me uma vez mais num
conto de fadas, com paisagens ribeirinhas fabulosas e o maravilhoso som da
água corrente.
Outros peregrinos ... não tinha voltado a ver.
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... mesmo com a bota direita a mostrar também ela a dureza do
Caminho...
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O Calisto e o seu amigo espanhol já tinham chegado a
Mansilla de las Mulas, a Isi e o Jesus a
León; o Luis, o único
que conheci que estava no
Olvidado ... não mais soube dele depois de
Boñar. A
Fasgar chegou sim uma peregrina checa que partilhou
comigo o albergue, mas que levava uma tenda e nalgumas etapas ficava sozinha
"
on the wild", disse-me; voltaria a vê-la dois dias depois ... tinha
mesmo ficado "
on the wild".
Faltavam-me três etapas para a meta que me havia proposto a mim próprio:
Ponferrada. A primeira foi talvez a etapa mais dura do Caminho
Olvidado ... mas também sem dúvida a etapa rainha!
(Escrito entre 10 e 12 de Agosto, após o regresso)
1 comentário:
Interessantíssima a forma como consegues transferir "para o papel" os momentos fantásticos a que te propões. Parabéns Zé. Venha de lá a 4ª parte! Abraço do tamanho das tuas aventuras.
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