domingo, 1 de agosto de 2021

De Santander a Ponferrada, pelos Caminhos de Liébana, Vadiniense e Olvidado (3)

Ao 9º Dia de Caminho, em Cistierna fiz a segunda e última agulha, nesta junção de Caminhos que um dia surgiu no canto dos meus Sonhos. O Caminho Vadiniense tem mais duas etapas, até se juntar ao Francês em Mansilla de las Mulas, mas em Cistierna entrei no Camino Olvidado. O Luis (ver a anterior crónica) já vinha nele desde Bilbao; estava na sua 11ª etapa.

Camino Olvidado
1ª Parte: Montes de León (Cistierna - Fasgar)
Puente de Mercadillo, sobre o Esla, 28.Jul.2021, 7h35
É pouco depois de atravessar o Esla a bifurcação entre os dois Caminhos. Aliás, um painel junto à ponte atesta:
Peregrino que aquí abandonas las Montañas de Vadínia, Buen Camino!
Que las frías aguas del Río Grande siguen corriendo otros dos mil años bajo los cuatro magníficos arcos escarzanos y los peregrinos pisen estas venerables piedras mientras dure la santa memoria del patrón de las Españas
Bifurcação entre o Caminho Vadiniense e o Olvidado, 7h45
Igreja del Salvador, Yugueros
E Capela de Acisa de las Arrimadas
Esta foi a etapa mais fácil do meu périplo; poucos desníveis ... não muito alcatrão ... trilhos sem pedra solta. De destacar a pequena aldeia de Barrillos de las Arrimadas, que recebe os peregrinos dizendo-lhes que estão no "Camino Viejo de Santiago", com diversas esculturas relacionadas com os trabalhos agrícolas, e com o seu Santuário ... de Nossa Senhora dos Remédios.

Barrilos de las Arrimadas, 11h40 - Estou mesmo no Camino Viejo ... e no Santuário de Nª Srª dos Remédios
A bom ritmo ... pouco depois da uma hora estava na simpática e animada vila de Boñar, fim de etapa, com 26 km desde Cistierna. A preço peregrino, o Hostal Nisi foi a escolha acertada; depois de um belo descanso que os pés agradeceram encarecidamente, numa pequena volta lá encontrei o Luis num bar. Era agora o único peregrino que conhecera que estava também no meu Caminho. Mas todos os dias me mantive em contacto com o Calisto e amigo e, principalmente, com os meus ángeles del Camino, a Isi e o Jesus, que aliás me mandaram a foto tirada na véspera, em Cistierna.
Largo central e Igreja da animada vila de Boñar, 28.Jul., 18h40
Com a Isi e o Jesus em Cistierna
(foto enviada no dia seguinte)
E com o Luis em Boñar ... durante um belo jantar
A partir de Boñar, o Caminho Olvidado tem duas variantes: uma menos montanhosa, por La Robla; e outra com maiores desníveis, por Vegacervera e Buiza, tendo esta um pequeno troço comum ao Caminho de San Salvador.
Bifurcação para Vegacervera, 29.07, 8h10
É fácil de prever qual escolheria ... tanto mais que o "pai" dos dois Caminhos me havia previamente desafiado para as etapas de montanha. Cabe aqui, aliás, uma palavra de agradecimento e louvor ao Jose Antonio Cuñarro, incansável mentor e promotor destes dois Caminhos, que tudo fez, ainda antes de eu sair de casa, para conseguir os alojamentos e os contactos que me permitiriam ultrapassar as dificuldades de um Caminho pouco percorrido ... e em tempos de pandemia. Gracias, Jose Antonio Cuñarro, eres grande!
Deixei Boñar antes das 7h00. Atravessei o rio Porma ... e comecei a subir, primeiro para Valdepiélago ... e depois, cruzando o rio Curueño, por trilhos de montanha pura e dura, bordejando as encostas leste de Peña Galicia. 1000m ... 1200m ... 1300m ... e não ia ficar por aí. Nalguns pontos ... parecia que tinha voltado ao Peru e às calçadas incas, a caminho de Machu Picchu. E de vez em quando ouvia os meus pés a dizerem-me ... "bolas, já estávamos um bocadinho melhores ... lá voltámos às pedras"...

Não ... não são as calçadas incas para Machu Picchu ... é o trilho que leva de Valdepiélago a Valdorria
Por trás da aldeia, a Peña Valdorria (1926m alt.)
Aos 1300 metros de altitude, próximo da aldeia de Valdorria, o Olvidado gira para ocidente, passando agora à encosta norte de Peña Galicia ... e subindo quase aos 1500m em menos de 1 km. 22% de inclinação? Sim, mas ... e o piso? As fotos seguintes apenas dão uma ideia...

Peña Galicia, à esquerda (1630m alt.). O Caminho passa na base, a 1500m alt.
No planalto a que o Caminho me levou, a 1500 metros de altitude ... pastavam vacas. Estava literalmente entre peñas: Peña Valdorria, praticamente nos dois mil, Peña Galicia e Peña La Pinguera, na casa dos 1600m, de um e outro lado daquele planalto ... onde o trilho de vez em quando desaparecia. Com a ajuda do GPS e, um pouco mais abaixo, um tanque de água ... e lá estavam as setas amarelas. Uns minutos antes do meio dia estava em Correcillas, minúscula aldeia onde terminava o trilho e começava a estrada que, duas horas depois, me havia de levar a Vegacervera.

Descida das alturas ... e entro em Correcillas (1310m alt.)

Cruzei o rio Torio entre Villalfeide e Vegacervera ... e antes das duas estava nesta última, uma vila de montanha mais ou menos turística, célebre pelas Hoces do rio Porma e pela proximidade das Cuevas de Valporquero.
Jose Antonio Cuñarro tinha-me dado a indicação do Albergue "El Chaltén", em Vegacervera, onde reservei a dormida e o jantar, antes de iniciar o Caminho. Mas gosto sempre de um ou dois dias antes telefonar a confirmar ... só que ninguém me atendeu o telefone...

Vegacervera, 29.Jul., 14h00 - Uma pequena vila turística junto às hoces do rio Torio ... onde iria viver uma pequena "aventura"
Ao chegar a Vegacervera e ao "El Chaltén", constituído por uns quantos bungallows de madeira ... não havia ninguém. Voltei a tentar o contacto telefónico ... mas nada. A tarde estava quente ... pelo que tirei a mochila e sentei-me a descansar e a admirar o enquadramento paisagístico; esperei, esperei ... e ao fim de quase uma hora resolvi desistir e ir procurar outro alojamento, à sorte, na pequena vila turística. No restaurante "El Molino", lembrei-me de perguntar se não tinham uma cama; disseram-me que não, perguntaram-me se era peregrino ... e que o albergue era pouco mais acima. Lá expliquei que já lá tinha estado e o que se passava ... e a simpática senhora indicou-me onde moravam os responsáveis pelo albergue, ali próximo. Lá fui, bati à porta ... e apareceu-me uma simpática jovem argentina (fiquei a saber a razão do nome do albergue...); simpática ... mas que não sabia de nada de reserva nenhuma.
Albergue "El Chaltén", Vegacervera, com um belíssimo pano de fundo
Segundo a simpática jovem, o telefone para onde eu havia tentado ligar várias vezes (e para o qual havia feito a reserva, antes do Caminho) ... não existia ... apesar de ser o que está nos contactos do site do albergue! Mas dispôs-se a voltar comigo aos bungallows e que sim, que claro que poderia ficar. Uff! Respirei de alívio ... e fiquei sozinho a "tomar conta" de um bungallow com 10 camas ... e do restante "campo" de bungallows, vazio. Mais tarde ligou-me, de um outro número, um tal Pablo ... marido da jovem argentina ... e com modos e simpatia diametralmente opostos. Confirmou-me que o número para o qual eu havia tentado ligar não existia; quando eu lhe disse que foi para esse número que fiz a reserva e que é o número que está no site ... não sabia! Quanto ao jantar que havia reservado ... não ... "no cocinamos para tan solo un peregrino". Que simpatia ... que espírito de Caminho.
Vegacervera, Igreja da Virgen de las Nieves,
30.Jul. 7h10
Então para que têm o preço com refeições no site? Sobre o pequeno almoço, incluído no preço da dormida ... vá lá ... esse deixaram-mo preparado de véspera ... e esse até era farto e de qualidade.
No dia seguinte saí de Vegacervera com o Sol a preparar-se para nascer. Esta viria a ser uma das etapas mais curtas, apenas 21 km, mas de novo uma etapa dura, até porque principalmente entre Coladilla e Villar del Puerto ... o Caminho está tão olvidado que desaparece mesmo no mato e em terrenos de cultura.
Entre Coladilla e Valle de Vegacervera ... antes de o Caminho desaparecer...

Imagens de um Caminho fabuloso ... mas olvidado. Cercas, arames, campos de cultura, mato ... de tudo me apareceu...
Pouco depois da aldeia de Valle de Vegacervera, o Caminho vai à estrada ... que nunca desejei tanto. É uma estrada secundária, que liga Vegacervera a La Vid; alcatrão ... mas pelo menos sem cercas, arames e mato para desbravar. E troquei até umas palavras com uma simpática aldeã que fazia a sua caminhada matinal ... e que me disse "hace mucho que no pasan aquí peregrinos".

Já na estrada, junto às Hoces de Villar e com a simpática aldeã que me disse que ali ... "hace mucho que no pasan peregrinos". Na foto de baixo, a aldeia de Villar del Puerto.
O Caminho Olvidado volta a sair da estrada junto ao cemitério de Villar del Puerto ... mas o trilho praticamente desaparecia de novo, coberto de mato. Depois do que tinham passado antes, com matos e cercas ... os meus pés olharam para o aspecto do trilho e disseram-me ... "vai pela estrada". Tive pena ... mas obedeci-lhes; perdi a passagem por dentro do desfiladeiro das Hoces de Villar e um bosque de faias antes de Ciñera ... mas o Caminho precisa mais cuidado nesta etapa, apesar de tudo fabulosa.

As Hoces de Villar ... vistas da estrada que me levou à vila de La Vid, no vale do Bernesga
Junto à Igreja de La Vid ... houve que tratar dos pés. Cortar partes soltas de Compeeds, pomada regeneradora, ligadura a envolver parte do pé esquerdo. E entretanto ... até a bota direita reflectia já a dureza deste conjunto de Caminhos; a membrana Goretex já estava à vista, a estrurura externa da bota começara a ceder. Trata-se de umas boas botas Bestard Android, com menos de dois anos e menos de mil km ... mas provavelmente para este Caminho eu deveria ter levado as minhas velhas botas de montanha Bestard Top Performance ... que nunca levei para nenhum Caminho de Santiago.
Subida da encosta entre La Vid e Buiza; difícil, troços de grande declive ... mas pelo menos havia trilho.
O objectivo seguinte era Buiza, pequena aldeia de montanha ... já minha conhecida do Caminho de San Salvador, que percorri em 2017. Um troço de novo com algumas dificuldades, entre La Vid e Buiza ... tanto mais que na parte inicial da descida para Buiza o trilho e as setas voltaram a desaparecer; mas pelo menos não havia mato nem cercas ... pelo que o GPS me conduziu facilmente.

Descida para Buiza, acompanhado de dezenas e dezenas de borboletas ... e em Buiza, no mesmo local de uma foto de 2017
O célebre lobo de Buiza, escultura
metálica igualmente conhecida de há 4 anos
De Buiza a Pola de Gordón é um troço original nos Caminhos de Santiago: dois Caminhos coincidem ... em sentidos contrários. O Caminho de San Salvador prossegue para norte, rumo à Catedral de S. Salvador de Oviedo, enquanto que o Caminho Olvidado ruma a sul. Como o albergue de Buiza ainda está encerrado, rumei a sul, terminando a etapa na Pensión Rabocán ... mais uma vez indicada pelo Jose Antonio Cuñarro.

Um belo jantar na Pensión Rabocán
À beira do rio Casares, afluente do Bernesga, perto do cruzamento de Buiza para Pola de Gordón ... a Pensión Rabocán é um esplêndido local para repouso, seja para turistas ou para peregrinos, a quem dá apoio a preços especiais. O jantar ... divinal, como as fotos ilustram. E quando perguntei se me poderiam deixar o pequeno almoço preparado, para sair antes das sete ... disseram-me logo que estariam a pé para o servir. Tão parecido com a antipatia e ausência do Pablo do "El Chaltén", em Vegacervera! E ainda fiquei a saber que a Rabocán é gerida ... por pai, mãe e duas filhas.
12° Dia ... um dia em que quase tudo aconteceu ao sabor do improviso. É assim o Caminho...
Pola de Gordón, rio Bernesga, 31.Jul.2021, 7h15
Ainda à noite, na véspera, Santiago disse-me: "amanhã não vás pelo track do Caminho". E eu, depois das peripécias dos troços em que o Caminho desaparecia ... improvisei; arranjei uma variante minha: com base nos mapas do Locus, liguei as duas variantes do Camino Olvidado ... e não me arrependi. A subida ao Pico Fontañan foi qualquer coisa de espectacular!
À conquista do Pico Fontañán (1634m alt.), entre Pola de Gordón e Olleros de Alba ... numa variante pessoal
A descida para Olleros de Alba foi igualmente fabulosa, ao encontro do desfiladeiro do rio Olleros. O traçado do Caminho Olvidado poderia passar por ali; não creio que haja fortes razões históricas para que não o seja. Pelas 10h30, em Olleros de Alba, estava na variante A do Olvidado, vinda de La Robla.

Descida do Pico Fontañán ao longo do desfiladeiro de Olleros ... e em Olleros de Alba reentrava no Caminho
Por Carrocera e Otero de las Dueñas, pouco depois do meio dia estava em La Magdalena, onde tinha alojamento reservado no albergue/hostal "El Crucero". Uma das minhas preocupações desde antes de iniciar o Caminho era a etapa do dia seguinte: 47 km, de La Magdalena a Fasgar, já que pelo meio nem o Jose Antonio Cuñarro tinha conseguido alojamento; para o estado dos meus pés ... 47 km era assustador. Mas, tendo chegado cedo ... resolvi avançar até Riello ... recorrendo a um táxi para regressar a La Magdalena, táxi esse que, no dia seguinte, me foi repor em Riello. Baralhados? Releiam, nesse caso... 😜. Foi a solução para não pôr em risco as etapas seguintes, fazendo de qualquer modo o percurso por inteiro. Assim ... os pés disseram-me que faziam as 4 etapas que lhes faltavam deste duríssimo Caminho. Que remédio tinham eles ... mesmo sem saberem o que ainda iam passar... 👣
O Rio Luna em La Magdalena, 31.Jul., 13h25
17 km sem história, por Villayuste e Lago de Omaña
Um selo para a Credencial original, em Lago de Omaña
Igreja de Riello, 17h05
E no Bar "Villamor", em Riello, com a muito simpática Mar, que ali recebe carinhosamente os peregrinos
O troço de La Magdalena a Riello (17 km) foi contudo o troço mais monótono do Camino Olvidado. Estradões, aldeias fantasmas - VillayusteLago de Omaña e Oterico - linhas de água secas ... e nem vivalma. Em Riello, aí sim, o Jose Antonio Cuñarro tinha-me recomendado o Bar "Villamor" e a sua gentil Mar ... que faz uma festa aos peregrinos que chegam. Que pena não haver onde dormir em Riello ... e antes das seis da tarde estava de regresso a La Magdalena, com 38 km nos pés ... e com a estranha sensação de fazer em 20 minutos o que tinha feito em mais de três horas.
Antes das sete e meia da manhã do dia seguinte, 1 de Agosto ... estava de novo em Riello.
La Omañuela, 8h30 -  Ia começar a subir o curso do rio Omaña, na Reserva dos Vales de Omaña y Luna
A etapa do primeiro dia de Agosto foi caracterizada pelos vales dos rios Omaña e Vallegordo, afluente do primeiro. Particularmente depois da aldeia de Omañuela ... senti-me uma vez mais num conto de fadas, com paisagens ribeirinhas fabulosas e o maravilhoso som da água corrente.

Imagens de um Paraíso: rio Omaña, entre Omañuela e El Castillo
Vegarienza: já aqui existiu um albergue ... e que esplêndido local não seria
Ermida do Santo Cristo do Camino Olvidado
Ermida de Santa Ana
Posada de Omaña
Cruzando o rio Vallegordo em Posada de Omaña.
A seguir a esta foto ... o telemóvel caiu no rio... ; valências de um telefone IP68/69K...
Continuo através do Paraíso ...
... para terminar a etapa em Fasgar, com um bom albergue instalado na antiga Escola Primária da aldeia
No dia seguinte seria por ali ...
Com 28 km percorridos, às duas horas estava em Fasgar, minúscula aldeia onde existe o Albergue, um pequeno bar e uma Casa Rural que também serve refeições. Grande parte da tarde foi para repouso, tanto mais que sabia que a etapa seguinte era dura ... não sabia era quanto...
Outros peregrinos ... não tinha voltado a ver.
... mesmo com a bota direita a mostrar
também ela a dureza do Caminho...
O Calisto e o seu amigo espanhol já tinham chegado a Mansilla de las Mulas, a Isi e o Jesus a León; o Luis, o único que conheci que estava no Olvidado ... não mais soube dele depois de Boñar. A Fasgar chegou sim uma peregrina checa que partilhou comigo o albergue, mas que levava uma tenda e nalgumas etapas ficava sozinha "on the wild", disse-me; voltaria a vê-la dois dias depois ... tinha mesmo ficado "on the wild".
Faltavam-me três etapas para a meta que me havia proposto a mim próprio: Ponferrada. A primeira foi talvez a etapa mais dura do Caminho Olvidado ... mas também sem dúvida a etapa rainha!

(Escrito entre 10 e 12 de Agosto, após o regresso)

1 comentário:

mosca disse...

Interessantíssima a forma como consegues transferir "para o papel" os momentos fantásticos a que te propões. Parabéns Zé. Venha de lá a 4ª parte! Abraço do tamanho das tuas aventuras.