quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Regresso ao Paraíso das terras de Somiedo

Em Agosto de 1997 conheci Somiedo. Passaram-se 23 anos, mas lembro-me como se fosse hoje! Tínhamos uma autocaravana. Contrariamente aos anteriores, naquele dia o céu estava enevoado, ameaçando chuva, mas à medida que nos aproximávamos de Belmonte de Miranda e, passada esta, nos embrenhávamos no apertado vale do rio Pigueña ... a minha sensação era a de estar a entrar num outro mundo, o mundo das montanhas "mágicas", das encostas verdejantes, as montanhas e as encostas de "onde l'agua ñaz", onde pululam xanas, ñuberus e tantas outras figuras da mitologia asturiana. Sentia-me a fazer parte daqueles bosques, protagonista de um "tiempu de mitos", companheiro dos ursos pardos que ainda habitam aqueles bosques e vales encantados. Desde então, quase todos os anos fui a Somiedo, às Ubiñas, às terras de Quirós e de Teverga, às brañas, às memórias dos vaqueiros de alzada, com alunos, com amigos, a dois...! Somiedo, no sudoeste de Astúrias, é, indiscutivelmente uma das minhas "terras natais"!
Sobre o Lago del Valle, Somiedo, 17.Out.2013 ... contemplando o Paraíso. Quanta saudade!
Somiedo, no sudoeste de Astúrias, é, indiscutivelmente ... um pedaço do Paraíso! Mas agora, incrédulo ... há 3 anos que não ia a Somiedo! Parecia-me impossível! Num ano em que comemoro os meus 50 anos de "aventuras" de ar livre ... num ano que nada nem ninguém poderia prever que fosse marcado pela pandemia que assola o Mundo ... as saudades daquelas "minhas" terras eram angustiantes! E surgiu a hipótese de regressar a Somiedo, com a "estrela" que naquele Agosto de 97 também entrou comigo nas montanhas mágicas, mas também com amigos/irmãos: o Zé Messias, a Dina, a Lucy e o João completaram a equipa de seis que, na 2ª feira 21 de Setembro, entrou no Paraíso de Somiedo.
Pola de Somiedo, 21.Set.2020, 18h50: logo à chegada,
fizemos uma pequena incursão pela Senda accesible

22 de Setembro: La Cueta de Babia - Peña Chana - Valle de Lago

Para primeira travessia neste regresso ao Paraíso, há algum tempo que o cume de Peña Chana me chamava. No limite entre Somiedo e Babia, Peña Chana era um dos cumes mais emblemáticos que me faltavam subir. Não sendo dos mais altos (2068m alt.), é contudo dos mais vertiginosos, pelo menos na subida pela vertente leonesa, onde assume o nome de Chagüezos, ou Llagüezos. Bem cedo, antes do pequeno almoço na minha velha conhecida Casa Miño, onde ficámos alojados, começámos por ir pôr um carro em Auteiro, acima de Valle de Lago. E antes das 9h30 estávamos com o outro carro em La Cueta, de onde partimos; a minha donzela, nesta primeira "aventura", ficou a descansar em Pola.

Deixamos La Cueta de Babia e o vale do alto Sil, para subirmos rumo a norte pelo Barranco de los Borras
Majada de Chagüezos, na vertente leonesa de Peña Chana, 10h25
À nossa frente tínhamos a parede que separa Babia de Somiedo, ou seja terras leonesas de terras asturianas. Nas minhas várias incursões, a solo ou acompanhado, já conhecia os cumes a poente (El Muñón, Peña Salgada, por exemplo) e a nascente (Cebolléu, Cuetalbo, Peña Orniz), mas nesta Sierra de Chagüezos era a minha primeira vez. O Zé e a Dina fizeram da majada uma espécie de "acampamento base", a 1745 metros de altitude ... enquanto o trio iniciou a ascensão ao cume de Peña Chana: 320 metros de desnível em menos de 1 km ... talvez o cume mais duro de Somiedo.

Começou a ascensão a Peña Chana: a Majada de Chagüezos vai ficando lá em baixo, a sul
Cume de Peña Chana (2068m alt.), 11h40. Fomos três, os "conquistadores" 😊
Os três "conquistadores" de Peña Chana vistos da
Majada de Chagüezos (Foto: José Manuel Messias)
Peña Chana estava "conquistada"; para mim, o último dos cumes mais emblemáticos de Somiedo. A ideia original era descer pela mesma via de subida ... mas a análise mais cuidada da carta, no agora insubstituível Locus Map, deu-me a ideia de que talvez fosse possível - e mais fácil - descer mais a nascente, primeiro ao longo da cumeada, onde parecia haver pelo menos parte de um trilho ... e onde as curvas de nível eram mais afastadas. Sem certezas, mas foi o que fizemos ... com soberbas panorâmicas agora também a nordeste ... ou seja para o nosso destino. "Avancem cerca de 1 km no track", foi a mensagem enviada aos nossos dois companheiros, entretanto contactados também telefonicamente.

A espectacular panorâmica da cumeada de Sobre el agua e a descida de Peña Chana para nordeste
O acompanhamento do Locus não falhou; a descida foi efectivamente bem mais fácil do que a subida. E pouco depois da uma da tarde reuníamos os 5 "aventureiros" no Collado Sobre el Agua, onde almoçámos. Estávamos no Paraíso ... quase a entrar em terras já minhas conhecidas, de outras incursões vindas também de La Cueta de Babia, mas pelo vale do Sil. Há já 14 longos anos, desci também à braña de Murias Chongas, voltando contudo para terras de Babia.
Collado Sobre el Agua, passagem de terras leonesas para terras asturianas
Braña de Murias Chongas, vista do "estreito" de La Paredina, com os picos de La Mortera em fundo
Braña de Murias Chongas, ou Murias Llongas, 13h45
Já em terreno meu conhecido, de Murias Chongas (ou Llongas) descemos para o vale do Rio del Lago (margem sul), para logo subirmos até ao Lago del Valle ... que nunca vi com tão pouca água. Bem sei que é Setembro ... mas mesmo assim...😔. Lá em cima, lá estavam os Picos Albos ... Peña Orniz ... por onde três de nós andámos há 3 anos ... a minha última incursão em terras de Somiedo.

Descida para o Lago del Valle, que nunca tinha visto com tão pouca água. Normalmente, a água chega ao paredão onde estou.
E do lago para baixo ... já perdi a conta às vezes que percorri o caminho que desce para L'Auteiru e para Valle de Lago. 6 km sem história ... mas com paisagem de que nunca me cansarei. Este vale é, sem dúvida ... um pedaço do Paraíso, dentro do Paraíso de Somiedo...

Descida do Lago del Valle até L'Auteiru, com o "farol" da Peña Furada a guiar-nos
Travessia La Cueta - Peña Chana - L'Auteiru
(Clique no mapa para ampliar e neste link para o Wikiloc)
Às quatro e meia estávamos junto ao carro, com 16 km percorridos desde La Cueta. Mas, como se sabe ... uma caminhada não se mede em quilómetros...; em quilómetros mede-se sim ... os quase 30 km que tivemos de fazer, de carro ... para regressar a La Cueta buscar o outro... 😂

As caminhadas dos dois dias seguintes ... já as fiz várias vezes, bem como a minha "estrelita arraiana". Mas, mais uma vez, não nos cansamos daqueles paraísos; fizemos por isso de guias, ambos, aos nossos 4 companheiros desta semana ... astur/leonesa/transmontana.


23 de Setembro:
Llamardal - Mumián - Pola


Para 4ª feira agendámos a caminhada mais fácil e mais curta, a Ruta da Braña de Mumián, desde Llamardal. Demo-nos ao luxo de começar quase às dez da manhã, já que estamos a falar de apenas 10 km de percurso maioritariamente descendente. Sempre com a meteorologia a nosso favor, o vale de Somiedo abriu-se-nos esplendoroso na primeira parte, para a seguir à braña nos deliciarmos com as sombras e as cores do bosque de La Enramada.

Ruta de la Braña de Mumián, 23.Set.2020: primeira parte, a meia encosta do vale de Somiedo
Brañas de Mumián, nas alturas entre os vales de Somiedo e do Rio del Valle
Tons, cores, mistérios e magias do Bosque de La Enramada, entre a braña de Mumián e Coto de la Buenamadre
13h30 e estávamos em Coto de Buenamadre. A mesa ao lado da capela ... estava à nossa espera ... e quase logo a seguir estava também à nossa espera a já nossa "velha" amiga Rosalía, que no jardim dos seus Apartamentos Rurales Buenamadre faz sempre questão de nos brindar com uma sidra e algo mais! Obrigado, Rosalía; a tua "Afición, pasión, vida rural" ... é mesmo "l´elixir d´amore"...

Apartamentos Rurales Buenamadre ...
e os 6 "exploradores" com a nossa amiga Rosalía

O troço final, entre Coto e Pola de Somiedo, partiu como sempre do que resta da Igreja de San Miguel de Llera, ao lado da Rosalía. Íamos na esperança de encontrar um dos ursos que por vezes ela vê das janelas, mas não tivemos essa sorte. A população de ursos em Somiedo está felizmente estável e até nalgum crescimento. E pouco depois das quatro da tarde estávamos em Pola. Desta vez eram apenas 7 km até Llamardal ... buscar o outro carro.

Descida de Coto de la Buenamadre a Pola de Somiedo ... e estava terminada a 2ª jornada no Paraíso

24 de Setembro: Cordal de La Mesa

Reservámos o terceiro e último dia em Somiedo para um dos percursos mais belos do Paraíso, que já não percorria há uns anos: o Cordal de La Mesa, entre o alto de San Lorenzo e a "aldeia mágica" de Saliencia ... mais uma das "minhas" aldeias, que conheci há exactamente 20 anos, quando em Abril de 2000 pela primeira vez ali levei grupos de alunos ... extasiados com o paraíso a que os levara.

Do alto de San Lorenzo, partimos para a fabulosa travessia do Cordal de La Mesa, 24.Set.2020
Um amigo neste troço inicial ... a lembrar o "meu" Mastín
Depois de deixarmos um carro em Saliencia, a "equipa" rumou ao alto de San Lorenzo (1352m alt.), entre terras de Teverga e terras de Somiedo ... onde o vento quase nos arrastava, mesmo sob um Sol esplendoroso. Fomos subindo para Piedraxueves (1541m); próximo das pastagens, embora sozinho, um dócil mastín guardador de gado veio ter connosco e connosco criou empatia ... a recordar-me o meu companheiro de Outubro de 2013, quando um outro mastín percorreu comigo os 21 km de La Cueta de Babia a Valle de Lago, subindo comigo a Peña Orniz ... numa caminhada que eu pensava fazer a solo.
Puerto de Piedraxueves (1541m alt.), 10h50
Em Piedraxueves entrávamos na parte mais plana do Cordal. Na secular rota transumante entre terras asturianas e leonesas, estas pastagens de altitude continuam a ter gado ... e verde ... muito verde. Mais à frente, havia um desafio que já me é habitual lançar aos grupos que aqui trago: a subida ao cume de Peña Michu (1766m alt.). Debruçado sobre o Parque das Ubiñas - La Mesa e o vale de Saliencia, Peña Michu é um autêntico miradouro natural. Ao fundo, a sudeste, desenhava-se a mole inconfundível de Peña Ubiña ... onde um dia o Universo me segurou, na única queda em meio século de "aventuras".

A caminho de Peña Michu, com camurças a vigiarem-nos
No cume de Peña Michu, com o vale de Saliencia aos pés e Peña Ubiña recortada no horizonte
A Braña de La Corra foi o ponto de reencontro dos três "montanheiros" de Peña Michu e dos três que optaram pela tranquilidade do percurso do Cordal. Foi também ali que almoçámos, como brañeiros nos seus teitos bem preservados, junto ao caminho que dali desce para a aldeia de Arbellales.

Braña de La Corra ... virámos brañeiros Somedanos...
E a jornada prosseguia, sucedendo-se agora à nossa esquerda as vertentes do Alto del Cuerno e da Peña Negra e à direita as panorâmicas sublimes para o vale de Saliencia, por vezes por entre bosques que acompanham as diversas linhas de água. O dia continuava esplendoroso, mas a sul e poente víamos acumularem-se nuvens escuras com algum tom de ameaça...
Somos gnomos, fadas e duendes da floresta ... num autêntico momento zen, nos bosques de Ordiales
Ultrapassada a Peña Negra, onde o caminho volta a subir para o Collado de Sedernia ... a Lucy "descobriu" uma casa que me era desconhecida, na vertente virada para Teverga. "Vamos ver?" ... e fomos, claro, eu e ela, enquanto os restantes prosseguiam. Sem qualquer identificação, a casa lá está, nova, fechada ... com camaratas visíveis através das janelas! Que maravilha! Tenho de saber a que entidade pertence ... e de fazer planos para lá irmos dormir...

A casa "misteriosa" na vertente de Teverga do Colláu Sedernia (1630m alt.)
Descida para o Colláu de la Magdalena ... com a caminhada a aproximar-se da descida final para Saliencia
Ao fundo tínhamos os picos de La Mesa e de Fonfría, que agora já tapavam as Ubiñas. Uma chuva miudinha começou a cair das nuvens cinzentas que se haviam aproximado ... e foi de capas vestidas que descemos a íngreme ladeira das Morteras de Saliencia. Mas, por entre as nuvens ... o Sol de vez em quando espreitava um pouco; S. Pedro não nos abandonara...
Colláu de la Magdalena e os habituais cavalos nos pastos de altitude
A belíssima mas dura descida da Magdalena para as Morteras de Saliencia ... e para a aldeia "mágica"
Pouco depois das 16h30 estávamos em Saliencia. Quantas memórias, quantas vezes já ali comecei ou acabei caminhadas, quantos convívios no "velho" Albergue de Saliencia, com alunos, com amigos, desde os tempos do "velho" Roberto...; Saliencia é também, de certo modo ... mi tierrina.
Ruta do Cordal de La Mesa, entre San Lorenzo e Saliencia
Estavam a acabar estes três dias de regresso ao paraíso de Somiedo. Um paraíso onde nunca me canso de voltar ... onde nunca me canso de repetir trilhos ... de descobrir novos ... de subir aos cumes ... de Viver a magia de Somiedo. Hei-de voltar ... Somiedo ainda tem muito para me revelar; aliás ... ainda um dia quero ter um encontro com um urso... 😊
No dia seguinte regressaríamos a Portugal ... mas, com a mesma equipa ... os dias de "aventura" ainda não tinham terminado...

2 comentários:

Zé Pereira disse...

Gostei imenso UM texto muito bem escrito, aliás como os outros que escreve.




Raul Fernando Gomes Branco disse...

Palavras para quê?!Tanta beleza - és um sortudo! Um abraço.