O calor e a secura do verão não são convidativos às grandes caminhadas ... mas uma estadia na raia não seria a mesma sem uma "aventura" das minhas. E porque não ... uma autonomia?
|
Vale de Espinho, 20.08.2016, 21:00h |
Em 2015,
fomos dormir nas "nossas" Fontes Lares, eu e a minha arraiana. Mas há já muito tempo que no canto dos meus sonhos nasceu a vontade de uma noite em plena
Malcata, na serra, mais longe da "civilização". Os pores-do-Sol, tanto quanto é possível ver de
Vale de Espinho, têm estado magníficos. Anteontem ... as cores desta foto deram-me por isso ideias. Vamos ver o pôr-do-Sol ... o nascer da Lua ... e o nascer do Sol? Fiz a proposta à minha "velha" companheira da maior aventura de todas: a vida! Como eu previa, contudo ... preferiu ficar na casa da "branca de neve", como carinhosamente chamamos ao nosso "retiro" de Vale de Espinho. E por isso ... fui só. Disse-me o amigo Valespinhense Tó Maria Esteves, já depois do meu regresso, hoje ... "
És apenas um caminhante, À procura de ti mesmo". Talvez seja isso mesmo!
|
Antes das seis da tarde de domingo, estava a deixar Vale de Espinho ... |
|
... rumo à Lomba |
E assim, à procura de mim mesmo, saí de
Vale de Espinho pelo
Cabeço da Ponte, rumo ao
Coxino e à
Lomba. Ao contrário do habitual, não levava nenhum plano estudado. O objectivo era, apenas, passar a noite num local onde pudesse ver o pôr do Sol e o nascer do Sol. A primeira hipótese seria o
Cabeço do Clérigo, ou do
Crelgo, como lhe chamam em Vale de Espinho. Mas, ainda do
Coxino, já avistava para sul a eternamente misteriosa
Marvana, com o morro de
Monsanto a sobressair-lhe por trás.
|
Ao fundo a Serra da Marvana (1º plano) e o morro de Monsanto (2º plano). São 18:50h, no Coxino (1068m alt.) |
|
Cruz da Lomba, 19:42h |
|
19:57h - Cabeço do Clérigo (ou Crelgo), 1012m alt.: começam as cores do pôr do Sol |
Do Clérigo, eu via toda a cumeada das
Mesas às
Torres das Ellas, por trás da qual o Sol haveria de nascer ... mas não via as colinas da
Malcata, onde o astro rei se estava a recolher, tapadas pelo denso pinhal que ladeia o
Ribeiro Grande. Por isso, avancei célere para sul, rumo à
Escaleriña e ao alto dos
Enamorados. A
Serra da Estrela recortava-se já num horizonte pintado de vermelho.
|
20:12h ... e ele mergulha detrás dos pinhos e dos montes |
|
Um adeus aos últimos raios de luz ...
|
|
... e a Serra da Estrela recorta-se no céu, que se vai cobrir de estrelas...
|
E foi na
Escaleriña que montei a tenda, no cimo mesmo da
Ladeira Grande, que desce para os férteis vales de
Sobrero e de
Pesqueiro. E ali estava, sozinho, na noite já escura e debaixo de um céu repleto de estrelas. Reconhecia-se a Cassiopeia, as Ursas Maior e Menor, a Via Láctea ... a "minha" estrada de Santiago! Pequenas luzinhas movimentavam-se no firmamento, por certo aviões, ou satélites. Depois, sobre as
torres das Ellas, começou a surgir uma claridade. Como que prenunciando o Sol que haveria de nascer quase 8 horas depois ... essa claridade deu lugar a uma majestosa Lua, já não Lua cheia como dias antes, mas majestosa, elevando-se para iluminar o céu e a noite!
|
E aqui, sob as estrelas e a Lua ... foi o meu leito desta fabulosa noite de verão |
|
22:30h - Nasce a Lua, grande e mágica, primeiro com |
|
sombras a cobri-la, depois mais alta e mais limpa. |
Embalado pelo cantar dos ralos e pelos ruídos da noite ... adormeci ... talvez sonhando que alguma das estrelas daquela viagem no tempo fosse a da minha mãe, ou, quem sabe ... do pai da minha pequena estrela arraiana, daquele que "vejo" sempre nas minhas deambulações nesta
Malcata que é, seguramente, um pouco minha! Apenas um leve despertar nocturno (eram 3:50h) ... e quando acordei já havia luminosidade de um novo dia a despontar. O Sol ... tinha marcado encontro para 5 minutos antes das 7h
|
22.08.2016, 6:23h - Bom dia! |
|
6:42h - Sobre o Espiñazo e as Ellas ... há uma luz que se anuncia ... |
|
6:50h / 6:55h ... e aí vem ele, o rei Sol, imponente e em força! |
|
7:00h - o jovem Sol ilumina as terras de Pesqueiro e da Marvana |
Assim que o astro rei se ergueu, logo percebi que o dia iria ser um dos mais quentes. O que fazer? Onde ir? Apesar de dizer frequentemente que nestas "minhas" terras conheço todos os buracos, claro que existirão sempre cantos e recantos ainda desconhecidos ... como as ladeiras e o vale do
Arroyo de los Enamorados, afluente do rio
Sobrero. O nome refere-se, claro, aos amores proibidos de Fernando e Beatriz, cuja história já várias vezes contei nas "
páginas" destas minhas memórias.
|
Quase uma hora depois: o fabuloso vale de Pesqueiro, coroado pela Marvana, à direita |
Em dias de calor, a tarde nunca é aconselhável. O "pacto" que havia feito com a namorada (quase 43 anos de casamento não excluem que se continue a falar de namoro...) era, portanto, almoçar no nosso "retiro" de
Vale de Espinho, pelo que tinha sensivelmente seis horas para a continuação da "aventura". Seriam suficientes, em princípio, para ir conhecer
Los Enamorados e a sua foz no rio
Sobrero e regressar pelo
Piçarrão ou por
Curral Fidalgo. Em princípio ... mas sem certeza; as cartas não mostravam uma passagem da foz dos
Enamorados ao longo do
Sobrero, apesar de toda aquela zona ser de velhos olivais e, portanto, previsivelmente, de fácil acesso. E por isso ... desci a ladeira...
|
8:20h - E desço às terras de Los Enamorados |
A
Ladeira Grande conduz às já velhas conhecidas terras da
Florida, para sul. Mas, ainda a meia encosta, um pequeno estradão inflecte para nordeste e acompanha o vale do
Arroyo de los Enamorados. Foi esse portanto que segui, à descoberta, sempre a descer ... esperando encontrar passagem. O estradão conduziu-me realmente a um primeiro olival, na margem esquerda dos
Enamorados; mas era preciso passar a ribeira ... completamente rodeada por densos silvados! Na carta, uma variante ao estradão levava mesmo junto à foz dos
Enamorados ... mas esse caminho, se realmente existiu, já foi engolido pelo pinhal e muitos
fieitos daquelas encostas. Mesmo assim, guiado pelo GPS, deu para seguir o seu traçado; cheguei mesmo junto à foz dos
Enamorados ... mas Fernando e Beatriz preferiram guardar os seus segredos num emaranhado intransponível de silvas e carqueja. Os bastões ainda funcionaram como arma de desbravamento. A poucos metros de mim, eu ouvia correr a água ... ou seriam as lágrimas abundantes daqueles que deixaram os seus amores para sempre ligados aos nomes destas terras? Do outro lado do
arroyo e do
Sobrero eram visíveis mais olivais ... mas aquele silvado era mesmo intransponível!
|
8:30h - Aqui já há olivais ... mas não há saída. Lá atrás, no meio de denso silvado, corre o Arroyo de los Enamorados |
Às nove e meia da manhã, depois de uma hora em busca de uma passagem escondida no mistério dos
Enamorados, tive de ponderar. Poderia dar a volta pela
Barroca de La Porquera e
Rascaderos, para subir pelo
Pizarrón ... ou poderia regressar pelo mesmo caminho. Nunca gosto de repetir um trajecto de regresso, mas as pouco mais de três horas de que dispunha, a pouca água que já tinha e o calor ... não me deixaram dúvidas. Pelo que ... a
Ladeira Grande estava de novo à minha frente.
|
9:30h ... e estou de regresso à Ladeira Grande |
|
Subindo ... rumo à Lua...! |
O pequeno local onde havia passado a noite como que me saudou no regresso, talvez admirado de me ver por ali de novo. Até à
Cruz da Lomba, a única variante foi o trilho que rodeia o
Cabeço do Clérigo, mais protegido do Sol que se estava a tornar implacável. A partir daí, seria o caminho directo de
Vale de Espinho, pela
Quinta do Passarinho e
Nabo da Cresta.
|
Às onze horas já estava em terra de castanheiros ... em terras de Vale de Espinho ... a "minha" aldeia! |
Ao bater do meio dia estava em
Vale de Espinho, junto ao Campanário que dias antes tinha recebido a inauguração do velho painel de azulejos do Mestre-Escola, em boa hora restaurado e devolvido à sua beleza e tradição.
|
Ao bater do meio dia ... back to Vale de Espinho |
E, a tempo do almoço, regressei ao ninho. Apesar do calor abrasador, vinha com os pulmões e a alma cheios destes ares inconfundíveis, com as imagens e os sons da noite na serra como que ainda gravados, bem fundo, nas memórias e nos sonhos. Poucas horas depois outro amigo, natural desta aldeia que adoptei e me adoptou, descrevia-me com um portento de poema que me levou às lágrimas...
Tu, Zé
Tu falas com as estrelas
Falas à noite, ao vê-las
Desvendas o teu segredo
Peito aberto e sem medo.
Tu, Zé
Dormes na mata ao relento
Falas com a chuva e o vento
Ouves cantos e gemidos
Dos teus entes mais queridos.
Tu, Zé
Eu não sei o que procuras
No meio destas loucuras
Será que lá, lá mais além
Há uma alma dalguém?
Sim, Zé
Alguém que só tu persegues
E por demais que o negues
Não te deixa descansar.
Sim, Zé
Alguém que te viu nascer
Por ti sofreu, te deu ser
Nunca deixou de te amar!
(José Antunes Fino)
O Zé Fino escreveu-me este portento em
homenagem à minha Mãe. Em homenagem à minha Mãe, sim, que nas minhas catarses também procuro ... mas todo este seu belo poema se aplica também, excepto na última quadra, à minha constante procura do meu saudoso Zé Malhadas, ou "Malhadinhas", pai do meu amor raiano, a quem tanto devo do que sou, ou do que penso ser ... ou do que quero ser. Aqui ... na "minha" Malcata ... nestes ares, sons e cheiros ... é ele que procuro, é ele que descubro em cada lâmina de xisto, em cada estrela do fabuloso céu que ontem vivi. A ele dediquei, também, a minha primeira travessia da Malcata, há 10 anos, pelo percurso que ele seguia de e para o quartel, em Penamacor. A ele dediquei e dedico as minhas "aventuras" mais significativas ... aqui ... nestas "minhas" terras da raia!
Postscriptum:
Já publicado este artigo no "fragas", o amigo Zé Fino acrescentou mais uma quadra ao seu belíssimo poema, quadra essa que não poderia deixar de igualmente aqui acrescentar:
Sim, Zé
Mas também alguém que te deu
Tal donzela envolta em véu
Que jamais deixará de te amar!
Obrigado mais uma vez.
Vale de Espinho é também, cada vez mais ... minha!
1 comentário:
Mais uma das tuas! Esta terminou de forma maravilhosa... Que lindas e ricas rimas... Posso dedicar também à minha mãe? Ou às mães de todos nós!
Enviar um comentário