sexta-feira, 3 de maio de 2019

De Vale de Espinho a Santiago ... pelo Caminho das Estrelas (2)

Pouco passava das cinco e meia da manhã quando deixámos o Seminário Maior de Lamego. A iluminação pública era suficiente ... e o pequeno almoço foi no pequeno jardim entre a Sé e o Museu da cidade; parte da broa e dos bolos que o Zé Rey nos deixara foram logo consumidos ... porque tudo é peso na mochila... Uma hora depois, o Sol nasceu a caminho de Souto Côvo, por trás das serranias.
Nascer do Sol entre Lamego e Souto Côvo, 30.Abril.2019, 6h35
Do Douro a terras Flavienses
Vilarelho da Raia, 3 de Maio
Acompanhando o curso do rio Varosa e já por vezes com o Marão no horizonte, pouco depois das oito e meia da manhã estávamos a cruzar o Douro na ponte pedonal de Peso da Régua. É na Régua que o Caminho de Torres se separa do Caminho Português do Interior. O primeiro segue o Douro, rumo a Mesão Frio e depois Amarante e Guimarães; o "nosso" ... trepa as encostas vinhateiras de Santa Marta de Penaguião, sempre para norte. Esta viria a ser a etapa mais acidentada do nosso Caminho: cerca de 1400 metros de acumulado, nos 38 km que nos separavam de Vila Real.
Vale do Varosa e ao fundo o Douro e a Régua - 30.Abril, 8h25
E ao 6º dia cruzámos o Douro, na Régua. O Caminho prossegue em Trás-os-Montes...
As pontes sobre o Douro e a panorâmica já da margem direita, no Peso da Régua
Entre a Régua e Santa Marta de Penaguião, o calor fez questão de se juntar às pendentes a vencer e ao muito alcatrão. A sinalização do Caminho Português Interior começou também a revelar-se muito deficiente, obrigando a uma permanente atenção ao GPS, o que mesmo assim não evitou pequenos enganos e respectivas correcções. "Eu pensava que o Caminho ia pelo meio dos vinhedos", dizia-me a Paula ... e Santiago fez-lhe a vontade, principalmente a partir de São Miguel de Lobrigos.
S. Miguel de Lobrigos, 30.Abril, 10h30
Ao longo das encostas vinhateiras das terras de Penaguião
Descida para o rio Aguilhão, pelo chamado caminho dos torneiros
A minha mochila ia mais pesada que o habitual ... ainda tínhamos muita coisa da merenda com que o Zé Rey nos brindara. Quando pela terceira vez atravessámos o Aguilhão, afluente do Corgo, num local paradisíaco ... fizemos stop para um almoço de broa, chouriço, presunto, o bom vinho que também nos oferecera, laranjas ... e o delicioso bolo de noz ... com direito aos pés de molho em água gélida!
Foi neste "restaurante" e com esta vista, nas margens do Aguilhão, que comemos grande parte dos manjares dos deuses que o Zé Rey e a Maria nos tinham dado em Lamego... 😊. Obrigado! 😁🤗
Depois ... depois havia que subir de novo, passando próximo do Albergue de Bertelo, rumo ao alto de Santa Bárbara
Dos poucos albergues existentes, o Albergue de Bertelo já o conhecia de quando, em Janeiro de 2015, ali reunimos um grupo de amigos para uma actividade pedestre no Marão. Recorrermos a ele no nosso Caminho significaria contudo mais um dia; o nosso destino era Vila Real ... e a próxima paragem seria na aldeia da Cumieira. "Há aqui onde se beba um branquinho fresquinho?", perguntámos a um habitante. Respondeu com sotaque brasileiro mas dizendo que era português ... e levou-nos ao café da prima, o Café Cruzeiro, junto ao cruzeiro da aldeia ... e em frente do Café Celeiro. Ficámo-nos por um sumo e uma Coca Cola; quando íamos pagar, já estava pago ... "e que Santiago vos proteja!"
Cumieira, onde bebemos um sumo e uma Coca Cola ... e que Santiago vos proteja!...
O monumental viaduto da A24: Vila Real estava próxima,
no Caminho Interior Português para Santiago
Pouco depois das 17h00 atravessávamos o Corgo e entrávamos em Vila Real
No centro de Vila Real, a Residencial Bem Estar é uma boa opção para Peregrinos e não só ... à falta de albergue ou outro tipo de apoio. A dureza da jornada não nos afastou muito dali, visitando apenas a - Igreja de S. Domingos. Um meu "velho" colega do velho Passos Manuel, há muito radicado em Vila Real, ainda foi ter comigo ao bar da Bem Estar ... e brindámos um Favaios aos quase 50 anos em que nos conhecemos! Obrigado, Rui Cortes! No dia seguinte ... seguíamos para terras de Aguiar.
Entre Adoufe e Escariz, 1.Maio.2019, 7h45
Entre a Serra do Alvão, a sudoeste, e as serras da Falperra e da Padrela, a leste, as duas etapas seguintes, sempre rumo a norte, levavam-nos às terras de Aguiar e a Chaves, subindo também o curso do Rio Corgo, desde Vila Real. Por alturas de Adoufe, ainda na manhã fresca, a noroeste via-se a típica aldeia de Lamas de Olo, a que ainda em Janeiro regressei ... 20 anos depois. E num Caminho em que continuávamos só nós e Santiago, as histórias e estórias sucediam-se: na pequena aldeia de Benagouro, a Dª Mercedes contava-nos, orgulhosa, que o neto também tinha ido a Santiago, mas de bicicleta; e no Café Pinheiro, na mesma aldeia ... o Sr. Fernando ofereceu-nos o pequeno almoço!
Casa onde viveu Camilo Castelo Branco, em Vilarinho de Samardã, 1.Maio, 10h05
Descida para o vale do Rio Corgo
A travessia do vale do Corgo é fabulosa, a partir de Vilarinho de Samardã, junto à casa onde viveu Camilo Castelo Branco e ao imponente eucalipto plantado pelo Padre Luís Castelo Branco, sobrinho neto do escritor. Mas, mais uma vez, a sinalização do Caminho Português do Interior é quase ausente; na tortuosa descida para o vale, ainda tivemos de voltar a subir um pequeno troço, ao apercebermo-nos pelo GPS que não estávamos no trilho certo. O rio atravessa-se por um passadiço metálico e a encosta contrária sobe-se por um estradão que nos leva à Ecopista do Corgo, precisamente no apeadeiro de Samardã, no traçado da velha linha ferroviária que ligava Vila Real a Chaves.

Apeadeiro de Samardã e ecopista ao longo do vale e da antiga Linha do Corgo
Na ecopista o avanço torna-se bem mais rápido, mas o piso de terra que cobriu a antiga linha férrea ... um pouco antes da aldeia de Tourencinho dá lugar ao alcatrão! Opção aberrante, num aproveitamento que se quer destinado à utilização pedestre e ciclista. Mas pronto, são opções.
Estávamos já no concelho de Vila Pouca de Aguiar; é justo referir que a sinalização do Caminho Interior melhorou substancialmente. E este era também o dia ... em que pela primeira vez, este ano, íamos ficar num Albergue! Em Parada de Aguiar, a antiga Escola Primária foi convertida em Albergue ... o Albergue de Santiago! E como sabíamos que tinha cozinha, comprámos algumas coisas no minimercado associado ao Café Central de Tourencinho, 7 km antes.
Albergue de Santiago,
Parada de Aguiar, 17h00
A Dª Adelaide, hospitaleira encarregada do Albergue, abriu-nos as portas e entregou-nos as chaves ... éramos os únicos Peregrinos. "Mas ainda ontem cá esteve um português. E outro dia dois franceses", disse-nos. Banho, lavar e estender roupa, dois dedos de conversa com a simpática aldeã do pequeno café da aldeia ... e passado um pouco a Paula estava a confeccionar um opíparo jantar para os dois.

Em Parada de Aguiar, embora só os dois, fazíamos,
finalmente ... vida de Albergue
A minha missão é sempre lavar a loiça... 😋

No livro de registos do Albergue, confirmámos que realmente na véspera tinha estado um português, de seu nome Carlos Duarte. Estava portanto adiantado um dia em relação a nós ... mas o Universo havia de fazer com que nos encontrássemos...
2.Maio.2019, 8h35, pouco antes das Pedras Salgadas
O dia seguinte não tem muita história e, apesar da extensão percorrida (40 km), a dificuldade é bem menor do que noutras etapas anteriores. Atravessámos Vila Pouca de Aguiar e as Pedras Salgadas, optando por seguir a Ecopista do Corgo até pouco depois de Sabroso de Aguiar.
Pedras Salgadas ... estações de comboio que já viram melhores dias...
Em Oura, pouco antes de Vidago e já com 20 km nos pés, a Tasca do Telmo permitiu reforçarmos energias para o "deserto" que se avizinhava, já que nos 15 km a seguir a Vidago não há nenhum café ... nem praticamente vivalma. De referir que os Bombeiros de Vidago acolhem Peregrinos, contrariamente à maioria das corporações actualmente. Bem hajam!

Os campos próximos de Pereira de Selão e a Capela de Santiago em Redial, entre Vidago e Chaves
Entre Redial e S. Pedro de Agostém ... já com Chaves no horizonte (15h00)
Descendo suavemente para o vale do Tâmega, só já a menos de 3 km de Chaves encontrámos um Café, a Casa Costa, em Outeiro Jusão. À conversa, ficámos a saber tratar-se de uma taberna tradicional mantida pela mesma família ... há mais de 55 anos. E pouco depois das cinco da tarde entrávamos em Chaves, onde a Residencial Bom Caminho recebe ... a preço de Peregrino.
Chaves, Ponte de Trajano, sobre o Tâmega - 2.Maio.2019, 19h10
O centro histórico de Chaves estava ali a dois passos, cruzando o Tâmega pela Ponte de Trajano, erguida entre fins do sec. I e o início do sec. II d.C..
A par das termas, constitui um dos melhores legados romanos da antiga Aquae Flaviae. Por ali demos uma pequena volta e por ali jantámos. E como este Caminho foi um Caminho de surpresas ... até a cantora Ágata encontrámos. Não, não estava a caminhar ... estava a jantar na "nossa" Residencial Bom Caminho!
O dia seguinte ... seria o dia da nossa entrada na Galiza.
E o Sol nasce para a última manhã portuguesa do Caminho: à saída de Chaves, junto ao Tâmega, 3.Maio.2019, 6h50
A seguir à aldeia de Outeiro Seco ... segue-se uma fastidiosa zona industrial e muito alcatrão. Por isso mesmo, o estudo da carta tinha-me aconselhado uma alternativa, depois de passar a A24. A opção foi muito bem vinda, já que cruzámos uma bela zona arborizada, por caminhos de terra. Antes das nove da manhã estávamos em Vilarelho da Raia, última aldeia portuguesa ... onde há bem pouco tempo eu tinha vivido, com os Caminheiros Gaspar Correia ... uma noite de contrabando! 😊
O Centro Social de Vilarelho estava em manutenção, mas o Bar Alambique estava aberto ... e ali nos despedimos de Portugal. Quase logo a seguir ... a Galiza esperava-nos.
Vilarelho da Raia, 8h55: no Centro Social e Desportivo,
onde há menos de um mês ... fui contrabandista!
Igreja de Santiago, em Vilarelho da Raia
Às 9h45 portuguesas (10h45 espanholas) do 9º dia ... o nosso Caminho entrava na Galiza
Terminámos portanto a parte portuguesa do nosso Caminho 2019 ... tendo visto um único Peregrino (e por poucos minutos). Se os nossos anteriores Caminhos se caracterizaram pelo bulício dos Albergues, pela partilha de experiências e vivências, pelo convívio com outros e outras como nós, das mais diversas nacionalidades ... se particularmente no Caminho Primitivo tínhamos mesmo feito amizades que ainda hoje perduram ... neste Caminho, até à raia de Chaves ... fomos nós connosco ... foi uma vivência de dois Amigos/Irmãos 24 horas por dia ... com Santiago a guiar-nos ... com Santiago a colocar no nosso Caminho pessoas boas, sãs, simples, genuínas. A parte portuguesa deste Caminho, para além das paisagens fabulosas, para além da dureza e da exigência física ... podemos caracterizá-la como o Caminho do contacto com as populações, do conhecimento da dureza do trabalho ... num Portugal profundo e tantas vezes esquecido. Foi, a todos os níveis, um Caminho diferente.
Clique para ver o álbum completo
(Escrito em casa, depois do Caminho, ao longo dos dias 16 e 17 de Maio)       
Continua

3 comentários:

disse...

Como sempre, mais uma excelente reportagem. Andava para te colocar uma questão,mas depois de passar por aqui obtive a resposta. perguntava se quando partes para a aventura, tens as coisas todas programadas, principalmente dormidas, a resposta está na soberba descrição com que nos delicias.
Um abraço amigo, quando for grande também quero ser...

João J. Fonseca.

Rui Cortes disse...

Espetáculo grande colega e amigo...agora já sei os trilhos que fizeste por esta zona. Muitos parabéns por mais esta tua aventura (é mais do que uma mera caminhada, é uma aventura e peras!!)e...por me motivares. O teu Blog é fabuloso. E já me fez atrasar uma hora no relatório que tenho de elaborar...que inveja não te acompanhar...

Raul Fernando Gomes Branco disse...

Li com uma atenção e consegui inserir-me na aventura, tal foi o prazer da leitura da reportagem! Um abraço.