domingo, 14 de setembro de 2025

Pirenéus a dois... ou uma nostalgia com mais de 40 anos... (3)

No dia 12 deixámos Nerín... e mudámos de país. Saímos do "país" de Sobrarbe... saímos de Aragão... saímos de Espanha... e entrámos em terras da Baixa Navarra... França. Quando desenhei o programa deste périplo pirenaico, além do regresso ao paraíso de Ordesa e Monte Perdido, relatado nas crónicas anteriores, quis-lhe associar também... os Caminhos de Santiago nos Pirenéus.
Caminho Aragonês e Baixa Navarra
Mas a jornada daquela sexta feira foi tudo menos uma mera ligação entre dois pontos. Não sei se se pode recordar o futuro... mas lembram-se que eu percorri o Caminho Aragonês... em 2034? Pois é, pouco depois das dez da manhã estávamos em Castiello de Jaca - a 835 km de Santiago - e pouco depois na mundialmente famosa Estação Ferroviária de Canfranc, transformada em hotel de luxo. Tal como naquele futuro ficcionado, estávamos como que a percorrer o Caminho Aragonês al revés.
Castiello de Jaca, 12.09.2025, 10h30 ... e na Estação
Ferroviária de Canfranc... a Royal Hideaway Hotel
Não sabíamos se havíamos de ficar na Estação...
...ou apanhar o comboio... 😂
Devido à dificuldade de escolha... optámos por beber um chocolate quente com churros 😂... e continuámos a subir o vale do Rio Aragón, rumo a Somport, visitando antes as ruínas do antigo Hospital de Santa Cristina, importante centro de acolhimento de peregrinos durante a Idade Média.
Ruínas do antigo Hospital de Peregrinos
de Santa Cristina, pouco antes de Somport
Sob a bênção de Santa Maria de Somport, 12h15
Tinha começado um "mergulho" na vertente francesa, descendo o vale d'Aspe
O Caminho Aragonês, ou variante aragonesa, que muitos consideram que começa em Somport, na realidade tem a sua origem no Caminho de Arles, ou Via Tolosana, usado por peregrinos do sul de França e de Itália. Era a única das quatro rotas de peregrinação que era percorrida por peregrinos em ambas as direcções, no sentido de Compostela ... ou de Roma. Um deles fui eu... no futuro... 😐
Ao descer a Gave d'Aspe, continuámos portanto em Caminho de Santiago - ou de Roma - pelo menos até Accous, em que inflectimos para ocidente, paralelos à fronteira, por estradas de montanhas bucólicas, em que predominavam as ovelhas, cavalos... e nevoeiro.
Floresta de Irati, embora ainda sem as cores outonais que celebrizaram aquela magnífica floresta de faias e abetos
A meio da tarde chegámos a este paraíso à beira do Nive, o rio de Saint Jean-Pied-de-Port ✨💫
Sim... ali à direita é a sala de refeições do Logis 💖
Tal como tínhamos estado três noites em Nerín, tínhamos reservado igualmente três noites neste autêntico "retiro", quase desligados do mundo cada vez mais louco em que vivemos. Embora administrativamente pertença à Nouvelle-Aquitaine, o nome da povoação mais próxima - Esterençubi - evidencia bem as profundas raízes bascas desta região pirenaica, histórica e culturalmente denominada Baixa Navarra. As fronteiras políticas, como em tantos outros locais do planeta, são apenas isso mesmo: políticas.
O termo "Baixa Navarra" - Nafarroa Beherea, em basco - vem da divisão histórica do antigo Reino de Navarra, que existiu entre os séculos IX e XVI. O reino estendia-se de ambos os lados dos Pirenéus, abrangendo partes do que hoje é o norte de Espanha - Alta Navarra - e o sul de França - Baixa Navarra.
Esterençubi, pequena e bela cidadezinha nas margens do Nive, 13.09.2025, 11h15
Na senda das nascentes do Nive e da Gruta de Harpea
Sábado, 13 de setembro, foi dia de inteiro relax. E no domingo... tínhamos as nascentes do Nive para descobrir. Os mapas assinalam um local, próximo do nosso Logis, como Sources de la Nive, acessível numa curta caminhada de pouco mais de 1 km. Mas os mesmos mapas também assinalam que a linha de água vem de mais acima. E assim... na manhã de domingo fomos à descoberta...
Pequena caminhada a dois às Sources de La Nive, na manhã de domingo, 14.09.2025
O local assinalado como Sources de la Nive situa-se no meio de uma frondosa floresta, um pouco a sul do nosso Logis. O local é bem aprazível mas, como as cartas mostram, as águas já vêm de bem mais acima. Na realidade, o Nive - Errobi, em basco - não tem uma única nascente, resulta da confluência de vários cursos de água que descem dos altos vales junto à fronteira espanhola. Há quem veja em Errobi uma metáfora para a própria língua basca: fluida, resistente, profundamente enraizada na paisagem, como que levando consigo os nomes, os sons e os silêncios da Baixa Navarra.
A minha parceira optou por regressar à "base", mas eu ainda segui a solo pelo trilho que sobe aquele verdejante vale!
No fundo do vale, o mapa já assinala a linha de água com o topónimo Harpeko Erreka, ou seja, o riacho de Harpea, já que outro local que surge destacado nas cartas é a Grotte d'Arpea - Harpeako leizea - situada ainda a uns bons 3 km. Até porque os franceses almoçam cedo e a minha arraiana me esperava... resolvi descer também. Só fui até onde termina a linha azul no registo à esquerda... mas também porque sabia que, à tarde... o Logis dispunha de bicicletas eléctricas ao dispôr dos hóspedes 💖
E assim foi: a meio da tarde e a solo, subi até à linha de fronteira e à fantástica Gruta d'Arpea, com fabulosas paisagens de montanha.
Armado em ciclista (mas numa boa eBike...), subi aos céus e à fronteira... de uma mesma Navarra, um mesmo País Basco!
A caminho da Gruta d'Arpea, sob os picos de Errozate e Mendizar, formando um anticlinal em forma de “V” invertido.
Desde tempos pré-históricos, a Gruta de Arpea foi usada como refúgio pastoral, protegida dos ventos e rodeada por nascentes. A sua forma geológica revela camadas de rocha com cerca de 40 milhões de anos, cada uma representando ciclos de tempo com cerca de 20.000 anos. No seio daquela paisagem, parecia que estava a viver um arquivo do Tempo, um abrigo de memórias líquidas e pétreas.
Onde o rio Sonha...
Dizem que antes de o Errobi correr entre as pedras, ele escutou histórias...
Na dobra de Harpea, onde a montanha se abre como um livro antigo,
vivem as lâmias, mulheres de água e silêncio, com pés
que não são de gente e olhos que lembram o tempo antes do tempo.
Ao cair da tarde, penteiam os cabelos com pentes de ouro,
sentadas à beira dos regatos que ainda não têm nome.
Quem passa e escuta o murmúrio pensa que é o vento,
mas é o rio a aprender a falar.
Harpeako leizea não é apenas gruta... é ventre.
Ali, entre estratos dobrados como véus, o Nive começa a sonhar.
Não nasce de uma fonte, mas de um pacto entre pedra e água,
entre mito e memória. E quando o rio finalmente desce, levando consigo o segredo das lâmias e o eco da gruta, ninguém sabe ao certo
se o que corre entre as margens é água ou lembrança...
Errobi garaiko haraneko lamiaren kondaira ” ("Lenda das lâmias do vale do alto Nive")
Pouco depois das seis da tarde estava a ver correr as águas do Nive... junto ao nosso Logis des Sources...
Não encontrei as lâmias... mas também não as poderia ver. Se as vires...
Não a olhes - ou perderás o caminho...
Não a chames - ou esquecerás o teu nome...
Ela é água que lembra, pedra que sonha,
e o rio que corre leva consigo o que não se pode dizer.
E estávamos na véspera de deixar, também, a nossa segunda "base" pirenaica. Mas os dias seguintes seriam, ainda... muito especiais...

Continua

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Pirenéus a dois... ou uma nostalgia com mais de 40 anos... (2)

A partir de Nérin e num cómodo autocarro todo-o-terreno, a Monte Perdido Bus proporciona um circuito pelos Miradores de Ordesa, mas também faz Transporte de Montañeros para o alto de Cierracils, a partir do qual se podem iniciar diversos percursos pedestres, inclusive ao cume do Monte Perdido. Tudo parecia ter sido criado para nós: o tour dos miradouros... era o ideal para a minha "estrelita" poder "sobrevoar" o fabuloso vale de Ordesa e ter uma aproximação ao Monte Perdido como de outro modo nunca poderia ter. O transporte de caminheiros e montanhistas... permitir-me-ia a mim desenhar uma jornada a solo por aquelas fabulosas paragens. E assim...
No "país" de Sobrarbe (2): Ruta de los Miradores de Ordesa
O dia 10 de setembro amanhecia assim em Nerín, no viejo Condado de Sobrarbe, Parque Nacional de Ordesa e Monte Perdido
O autocarro Monte Perdido Bus esperava-nos ... para nos levar a Viver um Sonho...
Reservámos o circuito Miradores de Ordesa para o dia 10, com partida de Nerín às dez da manhã, ao longo de um caminho de acesso restrito que nos permite ganhar altitude pouco a pouco. A pista foi traçada para uso agropecuário e florestal, permitindo o acesso de pastores e proprietários às zonas altas, como Cuello Arenas ou o Pueyo de Mondicieto. Agora, no conforto do autocarro e com as explicações do guia e motorista... chegar e passar dos 2000 metros de altitude é fácil e rápido. Tão fácil e tão rápido que àquele dia poderíamos chamar... uma dádiva dos céus. Nas já muitas incursões ao Parque Nacional de Ordesa... nunca tinha tido uma visão tão soberba do Monte Perdido e das suas
duas sorores, o Cilindro e o Soum de Ramond, ou Pico de Añisclo... além das impressionantes panorâmicas do Cañón de Ordesa. Fazer a pé o que fizemos naquele dia seria impensável para a minha estrelita, bem como seguramente para a maioria dos que nos acompanharam no autocarro. O tour Miradores de Ordesa é qualquer coisa de sensacional e recomendável.
10.09.2025, 10h50 - Como que estávamos a sobrevoar o fabuloso vale de Ordesa, com as Tres Sorores como pano de fundo
A lenda das Tres Sorores - também conhecidas como Treserols, em aragonês - envolve os três majestosos picos do maciço do Monte Perdido. Há muitos séculos, três princesas mouras fugiram da Aljafería de Zaragoza, tentando escapar de um destino imposto. Subiram pelos vales de Sobrarbe, mas foram surpreendidas por uma nevada brutal nas margens do rio Cinca. Encurraladas e vencidas pelo frio, morreram juntas, e sobre os seus corpos a neve acumulou-se tanto que, com o tempo, ergueram-se três montanhas - as Tres Sorores: da esquerda para a direita na foto acima, o Cilindro de Marboré (3328m alt.), o Monte Perdido (3355m) e o Soum de Ramond, ou Pico de Añisclo (3263m).
Cuello e miradouro de Cierracils (2263m alt.): estávamos os dois aos pés do Monte Perdido. Sensações indescritíveis... 💖
Há 12 anos, no Monte Perdido Extrem, tinha vindo do vale de Pineta e rodeado o maciço por Gavarnie e pela mítica Brecha de Rolando. Quando as nuvens se abriam, a Brecha surgiu nos restantes três miradouros a que o autocarro nos levou - Mirador de las Hayas, de la Brecha e de la Herradura - como que revelando segredos antigos, como o da espada Durandarte, com a qual Rolando teria golpeado a montanha e aberto a famosa brecha. Completámos sensivelmente 30 km de alta montanha... de cujas sensações o vídeo abaixo é uma muito simples e pequena amostra.
Circuito dos Miradores de Ordesa... ou uma viagem ao paraíso da alta montanha aragonesa
No dia seguinte... a "aventura" seria diferente... e a solo.
No "país" de Sobrarbe (3): Monte Perdido - Arrablo - Añisclo
O Transporte de Montañeros para o alto de Cierracils, repetindo embora a mesma subida em autocarro... deixa ampla liberdade para que os montanhistas desenhem as suas "aventuras", tanto mais que a partida é, neste caso, às sete da manhã... com o Sol a nascer. Ora, há 12 anos, à quarta e última etapa do Monte Perdido Extrem eu e a "Mana" Cristina (que na altura nos conhecíamos há bem pouco tempo) chamámos-lhe ... um dia no Paraíso.
Sobre a Cascata de Cola de caballo, 11.09, 09h
Saímos do Refúgio de Goriz rumo ao Collado de Arrablo, descemos o respectivo barranco em direcção ao Cañón de Añisclo, que depois subimos até ao Collado que nos separava de Pineta, onde quatro dias antes tínhamos começado.
Muito bem... então se agora o autocarro me deixava em Cierracils... podia "sobrevoar" o Cañón de Ordesa até ao final, passar em frente de Goriz, entrar no percurso dessa última etapa do MPE, descer o fabuloso Barranco de Arrablo até à cabana e à ponte de Fuen Blanca de que tão bem me lembrava... e em vez de subir desceria agora o Cañón de Añisclo quase até San Úrbez, até ao ponto em que um serpenteante trilho sobe para a aldeia de Sercué... e para Nerín, a nossa base. Estava consciente de que seria uma jornada longa e dura (mais de 24 km de alta montanha), mas tinha praticamente doze horas de luz para a percorrer; só precisei de dez.
11.09.2025, 09h30 - Ordesa ainda nas sombras, mas, ao Sol, o pontinho branco a meio da foto de baixo é o Refúgio de Goriz
Pouco depois das 10h estava no Collado de Arrablo, a 2343m de altitude, o ponto mais alto do meu projecto. Já tinha entrado no trilho proveniente de Goriz e, portanto, que já tinha percorrido em 2013.
A fabulosa descida do Barranco de Arrablo para Fuen Blanca, no Cañón de Añisclo
Com a câmara GoPro fixada ao peito... o vídeo abaixo ilustra melhor as características da descida. Creio que em 2013 não existiam as correntes de aço que agora dão alguma segurança, mas não me lembrava que esta descida era tão... desafiante. Não estava sozinho, contudo. Ao longo de toda a jornada encontrei esporadicamente outros montanhistas, incluindo uma jovem lituana em sentido contrário, que segundo me disse dedicou uns dias a solo às montanhas aragonesas.
A solo na cabana de Fuen Blanca, numa fabulosa "aventura" de alta montanha entre o Monte Perdido e o Cañón de Añisclo
Pouco depois do meio dia, com 10 km percorridos em mais de 4 horas, estava na cabana de Fuen Blanca, onde o Barranco de Arrablo dá lugar ao Cañón de Añisclo. Na "foto de capa" do vídeo acima... procurei posicionar-me identicamente à foto de há 13 anos, com a minha "Mana" Cristina 😂
Com a Cristina na cabana de Fuen Blanca... em 8 de julho de 2013... já se passaram 12 anos...
Em Fuen Blanca, o Barranco de Arrablo desagua no Rio Bellos, proveniente das alturas para onde há 13 anos tínhamos subido. Agora, ia descer todo o imponente Cañón de Añisclo, esculpido ao longo de milénios pelas forças erosivas das águas ligeiramente ácidas sobre a rocha calcária dos Pirenéus.
Descendo o fabuloso Cañón de Añisclo, entre Fuen Blanca e La Ripareta
Não sendo tão exigente como a descida do Arrablo, alguns troços do Cañón de Añisclo são contudo igualmente sinuosos e de progressão relativamente lenta. Como se pode ver no vídeo, acima... partilhei um pequeno troço com umas simpáticas ovelhas que, tal como eu, não se queriam desequilibrar nos desfiladeiros. La Ripareta, Selva Plana, Cumaz... nomes de locais iam-se sucedendo à medida que as águas do Bellos seguiam céleres... até que, pouco depois das quatro da tarde, surge a indicação "Nerín 4,5 km". Mas 4,5 km a subir... e a subir bem até Sercué, a primeira e única aldeia no meu percurso.
Entre La Ripareta
e Selva Plana
Cumaz, numa pausa para descanso, 15h35
E no cruzamento para Sercué e Nerín, 16h10, com sensivelmente 20 km percorridos
Sercué à vista... depois de subir mais de 200 metros em menos de 1 km...
17h30 ... e esta paisagem já a conhecia: estava quase em Nerín
Uma fabulosa "aventura" pirenaica (clique para ver no Wikiloc)
Cheguei ao Hotel Palazio, a nossa "base" em Nerín, sensivelmente às seis da tarde. A "sócia" tinha tido um dia de completo descanso, só interrompido pelos telefonemas entre ambos... quando havia rede.
Para este septuagenário que (ainda) se sente com vigor... tinha sido sem dúvida um dia cheio. Os valores de desnível acumulado indicados pelo Wikiloc são significativamente inferiores aos do Locus, o que se deve ao facto de o Wikiloc usar modelos de elevação com muito menor resolução; confio bem mais no Locus.
Um bom banho e um bom jantar repôs as energias gastas. No dia seguinte... partiríamos para outra "base"...
Continua