A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (2)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
SEGUNDA-FEIRA, 17 DE JULHO DE 2034 - O CEBREIRO
Saí há cinco dias de Santiago ... e ao quinto dia cheguei a'O Cebreiro, sem dúvida um dos locais que me deixou marcas mais intensas no Caminho Francês. Cinco dias é ao mesmo tempo tão pouco ... e tão muito! Como sempre nos meus caminhos e Caminhos, todos os dias falo com a estrelita que ficou em casa, mas desta vez a dimensão do que tenho pela frente faz com que a saudade seja já imensa.
Igrexa de Santiago de Lestedo, na manhã do 3º dia de Caminho, 15.07.2034 - O Sol nasceu há menos de meia hora,
tingindo o mundo com pinceladas de ouro e convidando à reflexão sobre a Vida, a Natureza e a Fé...
Nos bosques perto de Castromaior, 15.07.2034
Neste Caminho, não trago a vieira e a cabaça na traseira da mochila. Trago os símbolos Santiagueiros e o tau Franciscano que andam sempre comigo (inclusive na pele), mas na traseira da mochila trago a pomba da paz e a "bandeira" do "Jerusalem Way". Cruzo-me com os peregrinos de frente, mas, numa ou noutra ocasião, claro que os adereços são motivo de perguntas e de admiração ... principalmente quando lhes digo a minha idade, na qual não acreditam. O Łukasz, polaco, junto à ponte sobre o Minho em Portomarín, dava-me 65 anos ... e não queria acreditar quando eu lhe disse "fifteen more" ... nem que estive em Varsóvia há 69 anos...😂
Portomarín e o Rio Miño, 15.07.2034, 13h10
Desde Sarria, ontem, há menos peregrinos do que as autênticas procissões nos primeiros 100 km ... os últimos do Caminho Francês. Há mais de uma década que se fala em aumentar a distância necessária para obter a "Compostela", mas o tema levanta questões complexas sobre a essência da peregrinação.
Hoje, saí do Complexo Xacobeo de Triacastela ainda o dia não começara a clarear. A etapa era a mais curta até agora, mas queria Viver e Sentir a magia do Cebreiro. O Cebreiro é como que um portal para um outro mundo, onde o Tempo parece suspender-se e a espiritualidade se manifesta em cada pedra.
                               Santa María La Real de O Cebreiro, 17.07.2034 ... onde o Tempo e o Espaço são outros...
      Aunque hubiera recorrido todos los caminos,
      cruzado montañas y valles
      desde Oriente hasta Occidente,
      si no he descubierto la libertad de ser yo mismo
      ... no he llegado a ningún sitio.
      Aunque hubiera compartido todos mis bienes
      con gentes de otra lengua y cultura,
      hecho amistad con peregrinos de mil senderos
      o compartido albergue con santos y príncipes,
      si no soy capaz de perdonar mañana a mi vecino,
      ... no he llegado a ningún sitio.

(Fray Dino, Monge Franciscano de La Faba, anos 50 e 60, Séc. XX)

Já aqui tinha regressado com a minha peregrina dois meses depois do Caminho Francês, e de novo um ano mais tarde, com ela e com os Caminheiros Gaspar Correia. Mas hoje, entrar n'O Cebreiro a solo e com milhares de quilómetros pela frente ... foi como que atravessar um autêntico umbral dos Deuses.
Cheguei cedo, pouco passava do meio dia. Fiz o registo no Albergue da Xunta, onde um grupo de cinco italianos também aguardava pela abertura, às 13h00. O convívio luso-italiano continuou ao almoço, na hospitaleira "Casa Carolo". Depois ... depois tinha a tarde para o que o Universo me ditasse.

Sta María La Real de O Cebreiro: à esquerda ... o cálice do Santo Graal
Depois do almoço e com a mochila no albergue, recolhi-me no silêncio de Santa María La Real. Sentei-me. Havia outros peregrinos e turistas, mas consegui abstrair-me, com o olhar fixo no cálice. Semi cerrei os olhos ... e senti-me levado por uma corrente invisível através do Tempo e do Espaço...
De repente, as paredes de pedra à minha volta eram muito mais toscas, a Ermida muito mais singela. Senti arrepios de frio ... e apercebi-me que lá fora nevava copiosamente. Toda a montanha estava embrulhada num manto branco e espesso. Mas ouvia vozes, havia outros fiéis. Estava na Ermida de San Giraldo, no fim de um janeiro rigoroso do ano da graça de 1283. O padre Xoán celebrava a missa para os poucos que enfrentavam a intempérie. Era conhecida a sua incredulidade no milagre do Santíssimo Sacramento. Tomás, um humilde camponês da pequena aldeia de A Veiga, foi um dos que desafiaram a fúria da Natureza. A sua alma, sedenta de fé, impulsionou-o a percorrer o caminho tortuoso até à Ermida, em demanda do
conforto espiritual que encontraria na missa. Mas Tomás foi recebido com estranheza pelo padre Xoán, que duvidou da sanidade do homem, por arriscar a vida no meio da tempestade.
Quando chegou o momento da consagração, um raio de luz penetrou pela estreita janela, iluminando o altar de forma sobrenatural. O padre, com a voz trémula, elevou o pedaço de pão e o cálice de vinho ... e deu-se o milagre da transubstanciação. O pão transformou-se em carne viva e o vinho, antes tinto e espumante, tornou-se sangue rubi, quente e vibrante. A igreja ficou em silêncio. O cálice, antes um objeto comum, agora brilhava com uma luz interior, irradiando uma paz profunda. E Tomás, prostrado no chão, sentiu a presença de Deus mais perto do que nunca.
Naquele portal Espaço / Tempo, a Ermida de San Giraldo voltou a ser o Santuário de Santa María La Real
Também eu, atónito, quando abri melhor os olhos já não vi o Tomás nem o padre Xoán. A Ermida voltara a ser o Santuário erigido em agradecimento pelo milagre ... o Milagre do Cebreiro ... ou do Santo Graal. O cálice do padre Xoán era a própria taça que recolheu o sangue de Cristo na Cruz.
Regressado ao Séc. XXI, quando saí da Igreja deparei com um espesso nevoeiro que foi subindo do vale e que rapidamente
22h30 ... as sombras da noite e o nevoeiro
guardam as lendas e mistérios d'O Cebreiro...
envolveu tudo e todos numa aura de mistério e de magia! Agora parecia-me ouvir a voz de outro padre, Elías Valiña Sampedro - o "cura do Cebreiro" - que dedicou a sua vida à revitalização do Caminho de Santiago no Séc. XX e que foi o principal impulsionador das peregrinações modernas.
Que energia emana deste lugar místico? Deus? Forças do Universo? Energia telúrica? Não sei. O nome é o menos importante. Se calhar Deus é "isso" tudo ... se calhar Deus somos nós ... está em cada um de nós, na Natureza, no Universo.
O Albergue está praticamente cheio, mas hoje vou dormir bem, seguramente! Afinal não é todos os dias que se viajam oito séculos no Tempo e que se assiste a um milagre ... como também é um milagre estar aqui, aos 80 anos, com 152 km percorridos desde Santiago ... e mais de 7 mil por percorrer! A Vida Vive-se um dia de cada vez, todos os dias! E precisamente Vivendo um dia de cada vez, n'O Cebreiro e antes de adormecer ... aqui ficam os parabéns ao meu "mano biológico". Bem sei que são muitos, mas por isso mesmo são para festejar intensamente. É o primeiro de vários aniversários a que vou faltar em família ... incluindo o meu. Mas amanhã o Caminho espera-me ... e Jerusalém está já ali...

Publicado em 07.10.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
Algumas personagens são ficcionadas. Qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
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1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bonito.
Bendita imaginação.