A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (1)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
QUINTA-FEIRA, 13 DE JULHO DE 2034 - A PARTIDA
Albergue de Peregrinos "Taberna Vella", em As Quintas, a 5 km de Arzúa. Apesar de já aqui ter passado no Caminho Francês (2016) e no Caminho Primitivo (2017), não o conhecia. Mas é onde estou hoje, 13 de julho de 2034 ... no dia em que parti de Santiago para a maior peregrinação da minha vida!
Praça do Obradoiro, ontem, 19h40. Ao chegar a Santiago, a Catedral parecia querer abençoar-me em silêncio.
Desta vez ... este é apenas o começo! Apesar de estarmos em julho, choveu ... mas a chuva em SANTIAGO é Arte!
Mais do que nunca, o alfa e o ómega entrelaçam-se na cadeia inexorável do Tempo. Ontem à tarde e hoje de manhã, na Praça do Obradoiro, que tantas vezes me viu chegar e gritar SANTIAGO a plenos pulmões ... ali onde tantos peregrinos antes de mim atingiram o 'ω' ... agora foi
A minha "cela" no Seminário Menor de Santiago,
idêntica à onde fiquei há exactamente 20 anos
para mim apenas o começo, um novo 'α' ... no dia em que fez 20 anos que pela primeira vez cheguei ao campus stellae, no "Caminho da Aventura" ... o meu primeiro Caminho de Santiago!
Ontem, deixei Lisboa pela primeira vez de comboio. O velho "Celta", desde há cerca de 3 anos que liga directamente o Porto a Santiago, permitindo mudar apenas no Porto. E em Lisboa, na Gare do Oriente ... ficaram as emoções e a dor da separação. À hora de almoço de uma 4ª feira de verão, o "ninho" de que tanto me orgulho acompanhou-me em peso na despedida; filhos, netas e netos, manas e manos, biológico e os que a vida me trouxe ... e, claro está, a minha estrela arraiana, a "colega especial" com quem um dia, há mais de 60 anos ... começámos a construir uma Vida! Enquanto o comboio se afastava, sentia o coração apertar-se com a saudade, sabendo que cada passo meu será uma lágrima silenciosa no rosto dela. O que é que faz com que, aos 80 anos, estes dois seres enfrentem a separação que se avizinha? Sem dúvida a tolerância, a compreensão ... o Amor!
Cheguei a Santiago ao fim da tarde, ainda com umas boas três horas de luz, mesmo com o céu carregado e a chuva que de vez em quando teimava em cair. No abraço ao Apóstolo, fui novamente invadido por aquela mescla de sensações já tantas vezes sentida. Uma liberdade e felicidade intensas, misturadas com uma apreensão subtil e, até, um remorso latente. Mas pareceu-me ouvir o Apóstolo ... "Segue os teus sentimentos ... o Universo guiará os teus passos ".
Na mochila, familiar mas ligeiramente mais pesada que o habitual, trago tudo o que preciso para os próximos meses: roupas leves e quentes, capa para a chuva, alguns artigos de higiene, alguns medicamentos básicos, alguma tecnologia ... e o pequeno livrinho reproduzido à direita, que a minha amada me ofereceu há já 15 anos, quando fiz o Caminho da nossa Vale de Espinho a Santiago; trago-o para registar apontamentos, momentos, rabiscos ... mas também para que ela viaje comigo através dele. Tem a fotografia dela na 1ª página.
Na minha cela do "Seminário Menor" - como há 20 anos - a noite foi ao mesmo tempo calma e tensa. Revi o itinerário mil vezes estudado ... e adormeci, embalado pela apreensão e pelos Sonhos...
13.07.2034 - A longa Cruzada começou! No Monte do Gozo, saúdo Santiago ... mas desta vez o 'ω' é 'α', o fim ... é o começo!
Saí cedo do "Seminário Menor". Às seis e meia começava a clarear. O dia acordou limpo, um céu azul e um Sol brilhante, como tinha visto nas previsões. Com o coração acelerado e os pés inquietos ... dei os primeiros passos da minha Cruzada à Terra Santa. A atmosfera mágica e mística de Santiago ficou para trás. A cada passo, sentia uma sensação de liberdade e propósito como nunca tinha sentido antes.

Nos bosques mágicos entre O Pedrouzo e Arzúa ... rumo à luz...
Estou no Caminho Francês, portanto ... mas em sentido contrário. O meu Caminho de Jerusalém poderia ter começado em qualquer lugar. Na nossa Vale de Espinho, em Fátima, no Gerês, em Somiedo ... mas onde me faria mais sentido começar era onde acabei quase todos os meus Caminhos de peregrinação. Há episódios que não se explicam, sentem-se; o fim e o início ... o alfa e o ómega.
O Caminho de Jerusalém, como projecto amplo e estruturado, nasceu da visão do austríaco Johannes Aschauer, como referi no Prólogo ... mas as peregrinações a Jerusalém vêm desde a antiguidade e a partir dos mais diversos pontos da Europa. Dois anos antes de Aschauer ... o português Amaro Franco já tinha ligado Braga a Jerusalém, percorrendo cerca de 8000 km a solo, em cerca de 9 meses!
O Caminho está repleto de peregrinos. De alguns recebo sorrisos, por vezes olhares de admiração. Não é invulgar haver quem caminhe al revés ... mas pelo sim pelo não só me davam o tradicional
Peregrinos no Caminho ... mas eu cruzava-me com eles al revés
Buen Camino em resposta ao meu. Ao almoço, já depois de Santa Irene, três italianos, aí na casa dos quarenta, admiraram-se com os meus 80. Depois, na minha velha conhecida "Casa da Tia Dolores", entre duas "Peregrinas", recebi as palavras de encorajamento da Jana, uma jovem checa que estava no penúltimo dia do seu Caminho Francês, que começara em Saint Jean Pied-de-Port, há já um mês. Ficou deliciada com o meu projecto. Tem 26 anos ... a idade da minha neta mais velha...
Albergue "Taberna Vella", As Quintas ... e de repente cheguei ao Paraíso...
Sair cedo, permitiu-me chegar cedo ao final da primeira etapa. E como é que eu não conhecia a "Taberna Vella"? Só pode ter sido o Universo a designar este paraíso como primeiro hospital da minha Cruzada; hospital, sim ... do latim 'hospitale', que significa precisamente "casa para hóspedes". O que hoje chamamos Albergues, eram os hospitais de peregrinos medievais, onde se pratica a hospitalidade.
Heidi & Rolf ... os "pais" da "Taberna Vella"
A "Taberna Vella" só tem 8 camas. Descobri-a nas redes, ontem liguei quando ainda vinha no comboio, havia na altura três lugares disponíveis, reservei um ... e hoje cá estou. Sou o único português ... e também o único vindo de Santiago ... a Caminho de Jerusalém!
Uma maravilhosa ceia comunitária proporcionou há pouco aqueles momentos e aquelas vivências só possíveis nos Caminhos ... e com peregrinos e hospitaleiros como estes! A Heidi e o Rolf também já foram peregrinos. Depois de muitos Caminhos, em 2012 deixaram a sua Alemanha natal e passaram a acolhê-los, a acarinhá-los, a tratá-los quando necessário! Naquela mesa, ao jantar, a fome não foi só de comida, foi muito mais de histórias, de sonhos e de afectos. Naquela ceia, a língua universal foi a amizade e a paz. Dois alemães - os anfitriões - dois italianos, três catalães, duas coreanas e um português; um mosaico de culturas ... um banquete de sabores ... num abraço de humanidade! Claro que a "Taberna Vella" só me faz lembrar Bodenaya...
São nove e meia, ainda há muita claridade, mas amanhã a Heidi e o Rolf têm de se despedir dos "filhos", como carinhosamente gostam de se referir aos peregrinos que a cada manhã deixam o Albergue. Sete desses "filhos" chegarão a Santiago numa ou em duas etapas; estamos a 34 km do campo das estrelas. O outro "filho", bem mais velho do que os "pais" ... tem milhares de quilómetros pela frente ... incertezas ... receios ... mas muita esperança e muita confiança ... uma confiança à qual quero muito um dia poder chamar Fé! Estou a ouvir Amancio Prada a cantar a poesia da grande Rosalía de Castro; inspirado pela música e pelos poemas ... apetece-me dizer, também cantando...
                         A miña alma, forte e serena,
                         como unha águia que voa soa,
                         busca un camiño, unha luz, un mar...
                         e nos seus ollos, un novo albor.
(inspirado em poemas de Rosalía de Castro)
Nos próximos meses, o velho "fragas" será o meu fiel companheiro de Cruzada. Não vai ser um Diário, não escreverei todos os dias, mas registarei nele cada momento marcante, cada emoção forte, cada descoberta. Partilharei as paisagens, as dificuldades enfrentadas, os encontros com outras almas peregrinas e, acima de tudo, a transformação interior que a jornada operar em mim...

☯️☮️ … ¡ Ultreïa ! Pace e Bene … ☮️☯️

(Prólogo)            (Crónica seguinte)                   
Publicado em 03.10.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma belíssima obra de ficção! Fantástico!🙏🙏🙏