As 4 fotos do mosaico à direita têm 20 anos de intervalo entre si. Estive na
Madeira
em 1983
- pois, tínhamos juntado os trapinhos há apenas 10 anos (fotos da esquerda e
em cima à direita) - e
em 2003, com alunos (foto em baixo, à direita). Antes ... tinha lá estado em 1959
(com 5 anos) viajando com os meus pais e irmão ... a bordo do velho "
Carvalho Araújo" e, no regresso, do ainda mais velho "
Lima". Agora, 35 anos depois da "
lua-de-mel" e 60 anos depois dessa épica primeira vez (ai, que este número até dói...),
voltei à
Madeira com a colega de faculdade que há quase meio
século passou a ser a minha colega de Vida ... para um encontro de velhos
colegas de faculdade.
O
Curso de Biologia da Faculdade de Ciências de Lisboa
de 1972 a 1977 deixou memórias, de todo o tipo, quando
naqueles tempos de mudança nasceram vontades construídas a dois ... quando, por vezes ouvindo o vento assobiar
por entre oliveiras e pinheiros ... a minha paixão pelo campo crescia ao ritmo
do nosso romance.
A foto à esquerda é uma relíquia dessa época ... e nela está a mentora deste
encontro que, mais de 40 anos depois, reuniu na sua terra - a
Madeira -
quase duas dezenas dos jovens que então éramos. Desses tempos remotos vêm
aliás dois dos nossos "manos velhos", os nossos manos Maria dos Anjos e
António Mousinho ... com quem fizemos "equipa" nesta deslocação à pérola do
Atlântico.
Um encontro de colegas de curso não daria só por si lugar a uma crónica "por
fragas e pragas" ... mas desde que a meteorologia o permitisse, eu não podia
voltar à
Madeira sem me lançar a desbravar a ilha.
Em 1983
tinha subido ao
Pico Ruivo a partir do parque florestal do
Pico das Pedras;
em 2003, com alunos ... a meteorologia impediu a projectada travessia do
Pico do Areeiro ao cume da Madeira.
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Cristo-Rei do Garajau, 29.Mar.2019, 12h10
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Agora ... bem, agora delineei um projecto maior,
a solo: a travessia da
ilha no sentido sul / norte, passando precisamente pelos cumes. Projecto que
sabia ser ambicioso ... mas em princípio exequível ... e que foi talvez a
caminhada mais dura que fiz até hoje. Dura ... mas fabulosa!
Antes das seis da manhã de sábado estava assim a sair do
Garajau, onde
tínhamos a nossa base e onde na véspera tinha feito a partida simbólica, junto
ao monumental
Cristo-Rei. A hora só mudava na noite seguinte, pelo que
os primeiros raios da aurora só chegavam quase uma hora depois,
seguindo-se-lhes um fabuloso nascer do Sol, quando ia já quase nos 800 metros
de altitude. Os desníveis iam ser, claro, uma das características principais
desta "aventura". Para o
Pico do Areeiro ... faltavam mais de 1000
metros.
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Lugar das Eiras, 6h17
Ainda de noite, Nª Senhora
abençoa o meu caminho
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E um fabuloso nascer do Sol no Vale Paraíso, 7h03
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O percurso do Garajau ao Pico do Areeiro estudei-o previamente nas cartas,
procurando como sempre o mais possível os trilhos fora de estrada. A caminho
do
Poiso e do
Cabeço da Cruz, deixei a ER203 e segui um
belo trilho que, através de denso bosque, acompanha a
Ribeira dos Bojeiros, ribeira que denota, como tantas outras, a pouca
chuva que se tem feito sentir na Madeira, como no Continente.
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Ao longo do bosque, no trilho que acompanha a
Ribeira dos Bojeiros, a 1160 m de altitude
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Casa abrigo acima do Sítio do Avista Navios, com
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vista para o Funchal e a costa sul (1390m alt., 8h40)
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Às 9h da manhã já estava a 1475 metros de altitude ... e já avistava o
Pico do Areeiro, embora coberto por vezes por nevoeiro. Voltando por
momentos à estrada, 15 minutos depois deixava-a de novo, optando pelo trilho
que passa na Casa Abrigo do Areeiro. Panorâmicas ... deslumbrantes! Já via
inclusive a costa norte, a zona do
Faial e a
Penha de Águia,
entre o Faial e Porto da Cruz.
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Uma pausa para admirar o que me falta ... e na Casa
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Abrigo do Areeiro, a 1600 metros de altitude, 9h25
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Panorâmica para a costa norte, destacando-se a
Penha de Águia ao fundo
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Planalto central, com o Pico do Areeiro à direita
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Às dez horas estava a chegar ao
Pico do Areeiro, com 17,5 km
percorridos em pouco mais de 4 horas ... e com 1700 metros de desnível
ascendente acumulado. O Pico do Areeiro pululava de gente, apesar do algum
nevoeiro. Uma pequena pausa no bar, um chocolate quente para carregar
"baterias", vestir o blusão corta vento que vinha na mochila ... e eram horas
de me lançar no trilho do
Pico Ruivo.
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Pico do Areeiro (1818m alt.), 10h30:
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ia começar a 2ª etapa da "aventura"
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O trilho Pico do Areeiro - Pico Ruivo ... é qualquer coisa de transcendente.
As panorâmicas fabulosas, as passagens em cristas a pique de ambos os lados,
as formações rochosas, os túneis, a própria concepção do trilho ... tudo
ultrapassou em muito as minhas expectativas ... até mesmo a quantidade de
caminhantes das mais diversas nacionalidades, uns
a solo, outros em
grandes grupos guiados. Ao contrário do Pico da ilha do Pico, não há contudo
aqui qualquer controlo de carga humana, chegando a haver nalguns pontos alguma
dificuldade para se cruzarem pedestrianistas em sentidos opostos.
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A caminho do Pico Ruivo, ainda próximo do
Pico do Areeiro ... e com o "trânsito" interrompido...
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Miradouro do Ninho da Manta, como na
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Madeira se chamam aos milhafres
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Não, não é nos confins dos Himalaias ou dos Andes ... é no fabuloso
trilho Pico do Areeiro - Pico Ruivo
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O
trilho Areeiro - Ruivo
ainda o ano passado foi considerado
um dos 5 trilhos mais belos do mundo. Teoricamente tem duas variantes, mas a vereda do
Pico das Torres (um pouco mais longa) está encerrada. A vereda
oeste atravessa diversos túneis escavados na rocha ... e à saída de cada um os
nossos olhos abrem-se para novos êxtases, ao longo de escarpas formadas por
piroclastos amparados por filões e diques basálticos. Num permanente sobe e
desce, secundado por vezes por escadas metálicas agarradas à rocha, dos 1818
metros do Pico do Areeiro desce-se aos 1542 metros, para voltar a subir aos
1760 metros da Casa Abrigo do
Pico Ruivo e aos 1862 metros do tecto da
Madeira.
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Entre os túneis destes céus da Madeira, uma
perdiz vermelha posa para a minha foto...
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Passagem entre a mole rochosa do Pico das Torres e o vale
da Fajã dos Cardos, 11h30h
Num mundo de filões e diques basálticos
com formas fantasmagóricas... 🔻
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Como é que se descreve o indescritível?...
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Sobe, desce, desce, sobe...
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São 12h20 ... quando o manto de nevoeiro invade o vale da
Ribeira Seca e da Fajã dos Vinháticos
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Intervalada por algumas neblinas, a manhã tinha sido de Sol, permitindo as
imagens espectaculares que as fotos acima (não) mostram. Sim ... não mostram
... porque fotografia nenhuma consegue ilustrar o que os nossos olhos e a
nossa mente retêm. Não faltava já muito para o
Pico Ruivo, mas a
aproximação da tarde trazia também o aumento da nebulosidade. O nevoeiro
tornava-se denso ... e molhado. Uma chuva muito ligeira acompanhou-me até à
Casa Abrigo do Pico Ruivo.
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12h40, Casa Abrigo do Pico Ruivo, num início de tarde de
chuva.
Apesar da excelente aparência ... os caminheiros encontram as portas
fechadas...
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O número de caminhantes havia entretanto diminuído significativamente; muitos
provavelmente fazem apenas parte do percurso e regressam ao Pico do Areeiro.
Mas, mesmo assim, os numerosos forasteiros (quase todos estrangeiros) que
ansiavam por um abrigo e eventualmente alguma bebida, encontraram como eu a
Casa Abrigo ... fechada.
Lá como cá, na Madeira como no Continente ... o destino das casas florestais e
de abrigo parece ser triste. Oxalá seja verdade
esta notícia
do DN de Janeiro último ... mas Março já terminou no dia seguinte à minha
"aventura". Valeu-nos, a mim e a todos, um telheiro existente em frente à
Casa. Àquela hora, quase todos almoçávamos ... e nos preparávamos para a tarde
de chuva que parecia estar a preparar-se. Mas faltava, claro, subir ao
Pico Ruivo. Pouco mais de 400 metros separam a Casa Abrigo do cume ...
mas com 100 metros de desnível entre os dois pontos; pelo meio, o cruzamento
para a
Encumeada ... deixa sonhar com uma travessia leste - oeste da
ilha...
😊
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Pico Ruivo, 13h15, 1862m alt. - Pela segunda vez no cume da
Madeira, 35 anos depois da primeira...
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O nevoeiro e a chuva impediram as panorâmicas do cume do
Pico Ruivo,
mas não deixei por isso de ir até ao miradouro próximo do pico, debruçado
sobre as vertentes a nascente. Ali ... “
Os Céus e a Terra cantam a glória de Deus”, como se lê numa pedra infelizmente danificada e a pedir restauro.
Uma vez conquistado o
Pico Ruivo ... agora havia que descer dos céus
quase até ao mar.
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“Os Céus e a Terra
cantam a glória de Deus”...
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Aos "manos velhos" e à minha estrela, tinha dito que iria dando informações,
mas que em princípio me recolheriam junto à Igreja de
Santana. Entre a
Casa Abrigo do Ruivo e a
Achada do Teixeira, os céus até pareciam
querer reabrir, elevando-se as névoas e parando por momentos aquela chuva
miudinha que caía ... mas que rapidamente voltaria. Até à
Achada do Teixeira, contudo, em bom trilho descendente, foi o troço
mais rápido da "aventura". Diversos pequenos abrigos convidam a uma pausa ...
mas não foi por isso que a seguir a velocidade diminuiu
consideravelmente...
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Descida do Pico Ruivo para a
Achada do Teixeira (1596m alt)
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A
Achada do Teixeira é ponto de partida e/ou de chegada de muitos
amantes do pedestrianismo, já que há acesso rodoviário e medeiam apenas 3 km
até ao Pico Ruivo. Mas eu ... queria completar a travessia sul - norte. O
estudo prévio das cartas havia-me indicado a existência de uma vereda mais ou
menos directa à chamada
Casa das Queimadas, entre o Parque Florestal do mesmo nome e o
Pico das Pedras. E foi
por essa vereda que "mergulhei", agora completamente
a solo; todos os
que vira pelo caminho terminaram na Achada do Teixeira. Faltavam-me 9
km ... e descer mais de 1200 metros.
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O "Homem em pé", curiosa formação rochosa próximo da Achada do
Teixeira, no início da vereda das Queimadas
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Entre a Achada e o
Miradouro das Empenas, a vereda não era propriamente
fácil ... mas depois deste miradouro, onde a mesma cruza a ER218 ... bem ...
descer transformou-se num exercício de equilibrismo, entre terreno molhado,
rochas resvaladiças e escorregadias, algumas de grandes dimensões,
transformando o trilho, paralelo à
Ribeira dos Cedros, numa escada de
degraus para gigantes. Trilho ... por onde afinal eu não descia sozinho; a
água da chuva, agora persistente, corria bem mais célere do que eu. Apesar da
dificuldade da descida, este troço envolveu-me contudo no coração da floresta
laurissilva, remanescente de um coberto florestal primitivo que resistiu a
cinco séculos de humanização. Do nevoeiro e daquele fabuloso coberto vegetal
... não me admiraria se a qualquer momento saltassem fadas e duendes dos ramos
fantasmagóricos...
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Descida da vereda das Queimadas, no coração da floresta
laurissilva ... num reino de magia e de mistério...
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Um túnel ... para outra dimensão...
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Pouco antes das quatro da tarde estava na
Casa das Queimadas. Só então voltei a ver "civilização". Tinha projectado continuar em frente,
por um trilho que acompanha a
Ribeira da Silveira, mas o bom senso
aconselhou-me a descer pela estrada, o Caminho das Queimadas. Não dei por
perdida a viagem feita através daquela outra dimensão do real ... mas quem me
diria se a continuação do trilho não estaria em piores condições ainda que até
ali? É pena que uma vereda tão fabulosa esteja pelos vistos abandonada e não
faça parte dos
percursos pedestres recomendados.
Entrei em
Santana pelo parque da
Fonte da Pedra ... e às 16h30
estava junto às casas típicas, de telhado de colmo, com 35 km percorridos.
Frente à Igreja Matriz, como tínhamos combinado ... tinha uma autêntica
comissão de recepção à minha espera: além da minha "colega especial" e dos
manos Maria dos Anjos e António Mousinho, estava grande parte do grupo que se
juntara para esta vinda à Madeira.
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Casas típicas e Igreja Matriz de Santana, 16h30: a minha
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travessia do sul ao norte da Madeira chegava à "meta"
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A missão que idealizara estava cumprida. Ao idealizá-la, eu sabia que era um
projecto ambicioso, uma caminhada dura, essencialmente pela altimetria. Nas
últimas horas ... as pernas evidenciavam bem o que tinham subido e descido.
Mas, ao consultar e fazer a correcção final dos dados ... eu próprio abri a
boca de espanto: o desnível acumulado tinha ultrapassado os 2500 metros D+ /
D-.
Tudo é diferente e tudo é relativo. Por fragas e pragas ... já tenho no meu
palmarés algumas "aventuras" bem duras, como o
Monte Perdido Extrem, o
Toubkal, os longos desafios
a testar os limites
... mas mais de 2500 metros de acumulados num dia não tinha ... junto com a
noção de que esta foi, talvez ... a mais dura "prova de resistência" que
efectuei até hoje, em quase 50 anos de "aventuras".
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Vista sobre a costa sudeste e as Desertas, 31.Março.2019, 9h10
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No dia seguinte, domingo, descia as escadas "à pato"...
😂. Estava de novo no
Garajau ...
mas não ia recomeçar. Domingo era o dia do encontro dos velhos colegas
do
Curso de Biologia da FCUL 1972 / 1977. E de sexagenários ... voltámos todos a ser jovens ... porque a idade é
aquela que quisermos que seja...
E começou o mês de Abril. O "dia das mentiras" era para o regresso a Lisboa.
Com as pernas recompostas, voltei ao
Pico do Areeiro ... mas de carro
... com a "colega especial" e os "manos velhos" ...
😂. Também o
Curral das Freiras, a
Ponta de S. Lourenço ... e ao fim do dia despedimo-nos da Madeira.
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Pico do Areeiro, 1.Abril.2019, 10h35 ... agora sem estar
a solo
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Curral das Freiras ... e o que resta da velha e sinuosa
estrada
que antigamente lá levava
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Ponta de S. Lourenço e costa norte, 1.Abril.2019, 15h25 ...
e sobre a qual nos despediríamos da Madeira, para ver o pôr do
Sol já quase em Lisboa
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5 comentários:
Tão bonito com aquela névoa!
Maravilhoso ! Que continues por muitos anos com essa garra e maneira de dialogar com a natureza. Bjs
Que grande aventura Zé Carlos! Parabéns.
Toda a aventura vale a pena, se a paixão pela Natureza não é pequena! As paisagens deslumbrantes compensaram o esforço!
Parabéns, Zé. Que daqui por 10 anos quando te voltares a reencontrar com os teus colegas continues "fresco" para semelhantes caminhadas.Se tivesse a fazer aquela última descida,morria só de a ver...
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