domingo, 12 de novembro de 2017

Cores de Outono, na Serra da Estrela

Era uma vez um pastor que, no alto da serra, todas as noites conversava com uma estrela. O rei mandou-o chamar e ordenou-lhe que lhe desse a sua estrela, em troca de muitas riquezas e bens. O pastor preferiu contudo ser pobre do que perder a sua estrela ... e ao voltar à sua cabana ouviu uma doce melodia; era a estrela a cantar! Então, o velho pastor exclamou: "de hoje em diante, esta serra há-de chamar-se Serra da Estrela."
(Fonte: Literatura Portuguesa de Tradição Oral, s/l, Projecto Vercial - Univ. Trás-os-Montes e Alto Douro, 2003)
Na serra, ainda hoje se vê uma estrela que brilha de maneira diferente das outras, como que à procura do velho pastor. É a estrela Aldebaran, a mais brilhante da constelação do Touro. Há 6 mil anos, esta estrela nascia exactamente sobre a serra no final de Abril, quando os pastores neolíticos se deslocavam para as pastagens mais altas, onde permaneciam durante os meses quentes.

Panorâmica próximo da Torre, Serra da Estrela, 11.11.2017, 8h55
Não sei se o velho pastor se chamaria João, nem se a sua companheira, se é que a tinha, se chamaria Isabel ... mas o João e a Isabel, "velhos" apaixonados pela Serra da Estrela, residentes na Covilhã e companheiros em diversas "aventuras" por outras fragas, há muito que me desafiavam, e à minha estrela, para uma actividade nesta serra que é um pouco deles. E o desafio ... teve resposta neste fim de semana que acabámos de viver, com um grupo de mais de trinta outros amantes da montanha e dos grandes espaços. A Pousada de Juventude das Penhas da Saúde foi a base em que nos reunimos na sexta à noite ... e sábado às 8h30 estávamos a iniciar uma fabulosa caminhada.
Pátria granítica...
Partindo do cruzamento junto à Torre, a 1948 metros de altitude, bordejámos as ladeiras íngremes sobre o Covão Cimeiro, as Lagoas dos Cântaros e do Peixão e o fabuloso vale da Ribeira da Candieira, para depois rumarmos a noroeste, atravessando as Chancas.
Apesar do Sol, a água das lagoas estava cristalizada à superfície, formando uma grossa camada de gelo. Contudo, o solo, ali habitualmente bem encharcado, pouca ou nenhuma água continha, como consequência da seca que nos tem assolado.

Sim ... é gelo
mesmo!...
Antes das dez e meia estávamos no geodésico do Cume, a 1858 metros de altitude. O objectivo seguinte era a Lagoa dos Conchos, ou Covão dos Conchos. À primeira vista, parece uma lagoa vulgar, mas na realidade é uma pequena barragem que desvia as águas da Ribeira das Naves para a Barragem da Lagoa Comprida, através de um túnel com 1519 metros de comprimento, construído em 1955, cuja entrada é uma espécie de vórtice, ou funil, no extremo ocidental da lagoa. O funil do Covão dos Conchos é célebre nas redes sociais, onde já foi comparado ao cenário de um filme de ficção científica, com a água a precipitar-se para o seu interior. Nas minhas anteriores "aventuras" na Serra da Estrela, curiosamente nunca se tinha proporcionado conhecê-lo ... mas o baixo nível da água não nos permitiu ver se não as paredes de betão e granito daquele "misterioso" vórtice.

Barragem do Covão dos Conchos e o seu "misterioso" vórtice ... acima do nível actual das águas... 😪
Continuando a atravessar o planalto central, ao fundo avistávamos já os Fragões das Penhas Douradas. O almoço estava "marcado" para outro local emblemático da Serra, este já meu "velho" conhecido: a Nave da Mestra. Reza a história que um juiz, o Dr. Matos, construiu ali a sua casa de férias em 1910. A construção foi concretizada pela mão-de-obra vinda de Manteigas em cima de mulas, por um caminho que ainda hoje existe, ajudada por macacos hidráulicos utilizados para levantar as pedras gigantes, incluindo aquela que constitui o gigantesco telhado da casa.

A caminho da Nave da Mestra
Covão da Nave da Mestra, visto do cimo da respectiva Fenda de acesso, ou "talisca"
Descida da Talisca, fenda natural na rocha, que dá acesso à Casa do Juiz
A Casa do Juiz e o amplo Covão da Nave da Mestra
Pouco mais de meia hora para almoçar - e alguns ainda para uma sesta... 😛 - e pouco depois das duas estávamos de novo em marcha, a nordeste do geodésico do Piornal, de novo em direcção ao Cume.

Da Nave da Mestra ao Cume ... com vultos na paisagem...
Pouco depois das três e meia estávamos próximos da estrada da Lagoa Comprida e frente à Garganta de Loriga, com 17 km percorridos. Tínhamos sensivelmente mais uma hora e meia de luz ... o suficiente para completar a jornada com um tour pela parte superior daquele mítico desfiladeiro e pelas lagoas do Covão do Quelhas e Serrano, completando quase 23 km de serra.
Sobre o Covão do Boeiro e o Covão do Meio, na espectacular Garganta de Loriga
Lagoa do Covão do Quelhas
Lagoa Serrano
Cinco e um quarto, com o Sol a por-se ... e estávamos de novo no cruzamento da Torre, de regresso aos carros. A caminhada tinha sido durinha, mas estávamos de alma cheia. Cheia de Sol, cheia de cor, cheia de Vida! E mais tarde ... ficaríamos também cheios de um magnífico jantar e convívio, no Restaurante "Varandas da Estrela", mesmo junto à Pousada de Juventude.
Rota do Sol e das Faias
Para o segundo dia deste fim de semana serrano, os nossos "pastores" João e Isabel reservavam-nos a fabulosa paleta de cores de um percurso com base em Manteigas, misto do PR11 (Rota do Sol) e do PR13 (Rota das Faias). Pouco depois das nove da manhã estávamos a sair da vila, cruzando a Ribeira das Forcadas e subindo o pronunciado vale da Ribeira de Pendil, que há 4 anos descera, no segundo dia da minha Travessia da Serra da Estrela.

Rota do Sol (PR11), 12.11.2017: Manteigas fica para trás ... rumo ao Sol
À medida que deixávamos Manteigas para trás, o vale do Zêzere apresentava-se em toda a sua imponência. E antes das onze horas estávamos junto à Capela de S. Lourenço, com as aldeias do Sameiro e Vale de Amoreira aos nossos pés, nas margens do Zêzere.

O vale glaciar do Zêzere, visto do cimo do vale de Pendil
A caminho da Capela de S. Lourenço, o Outono dá-nos uma antevisão do que vamos encontrar na Mata das Faias
Capela de S. Lourenço ... na magia dançante do Sol e de um velho carvalho
Contemplando o vale do Zêzere, do miradouro
natural junto à Capela de S. Lourenço
A seguir à Capela e ao geodésico do mesmo nome ... entraríamos no paraíso! Sim ... os paraísos ainda existem. A Rota das Faias ziguezagueia na vertente oeste da serra de S. Lourenço ... e brindou-nos com uma autêntica explosão de cores e de tons. As imagens falam mais alto que quaisquer palavras...


Rota das Faias ... uma magia de cor, de sensações, do som das folhas pisadas, do vento na ramagem ... o paraíso existe!
E regressamos ao vale da Ribeira de Pendil ...
... e a Manteigas

À uma e meia estávamos de regresso à vila de Manteigas. O fim de semana aproximava-se do fim. E, fechando com chave de ouro o que foram dois dias fabulosos ... os estômagos foram aconchegados no restaurante "Vale do Zêzere". O desafio estava cumprido! Se a alma do velho pastor que adorava a estrela Aldebaran ainda paira pelas fragas da Serra ... é testemunha do muito que estas mais de trinta almas adoraram estas duas jornadas pelas cores do Outono serrano. Obrigado, João e Isabel! Das paisagens à Amizade, ao convívio, à organização (e até à gastronomia) ... tudo foi 5 estrelas nestas Cores de Outono, na Serra da Estrela!

5 comentários:

Isabel Costa disse...

Obrigada Calixto. Uma descrição fabulosa como já nos habituaste. Mas desta vez foi lida com os olhos marejados de lágrimas de emoção. Um bem haja por seres quem és.

José Carlos Callixto disse...

Acredito, Isabel. Mas tudo o que descrevi foi bem real. Bem hajam também.

João J. Fonseca disse...

Caro amigo José Carlos Callixto, magnifica descrição. Quem melhor que tu para nos falar da Serra da Estrela, Uma simbiose perfeita de palavras e imagens.
Um abraço.

Linda Brown disse...

Palavras sábias que me deram a conhecer a lenda (?) da serra da estrela. Viver e aprender! Não conhecia o teu blog (infelizmente) mas é certo que daqui em diante o vou seguir com muito interesse pela sua esmerada qualidade. Sobre o fim de semana : pessoas especiais fazem momentos especiais.

José Carlos Callixto disse...

João e Linda Brown, obrigado também pelas vossas palavras. O blog é escrito como fruto da minha carolice, mas com o incentivo de saber que tem leitores assíduos e especiais.