quinta-feira, 6 de março de 2014

Uma "aventura" na Serra da Estrela...

Caldas de Manteigas - Nave da Mestra - Candeeira - Caldas de Manteigas

Depois de vários dias cinzentos e de chuva (que incluíram o "funeral" de umas botas... J), ao quinto dia no "retiro" de Vale de Espinho a Primavera fez-se anunciar um pouco antes do equinócio. Perto dos Fóios, a atmosfera límpida deixava ver, a leste, a imponência da Serra de Béjar coberta de neve; e da estrada para o Sabugal, para ocidente, a Serra da Estrela como que apelava para alguma "aventura", até porque a relativa proximidade de Vale de Espinho nunca foi "devidamente" aproveitada. E o apelo levou-me a viver, a solo, talvez uma das caminhadas mais duras de quantas fragas e pragas já percorri…
5.03.2014: da estrada Vale de Espinho - Sabugal ...
a Serra da Estrela chama-me...
O vale da Candeeira há muito que constituía, na Serra da Estrela, uma das zonas que ambicionava conhecer. Tanto com os "meus" Gaspar Correia, em Outubro de 2011, como no MegaTransect de Setembro de 2012, a panorâmica sobre o vale da Candeeira criara a ambição de o percorrer, subindo ou descendo a partir do vale do Zêzere, sensivelmente a meio do percurso também já várias vezes feito daquele imponente vale glaciar. E se, ao vale da Candeeira, pudesse associar o chamado caminho dos Covais, que acompanha a meia encosta a margem esquerda do mesmo vale do Zêzere … melhor ainda. Como sempre, a primeira fase foi o estudo das cartas e de tracks de outros "peregrinos" das serras. O jovem dinamizador da empresa Trilhos de Ideias, com quem em Setembro de 2013 atravessei a Serra, deu-me igualmente umas dicas importantes … com grande pena de não ter disponibilidade para me acompanhar. E assim, pouco passava das cinco e meia da manhã quando saí de Vale de Espinho, sozinho, em direcção à vila de Manteigas, a "capital" da Serra da Estrela.

Caldas de Manteigas ainda dorme... - 6.03.2014, 7:10h
Cascatas da Barroca das Lameiras
O Sol nascia sensivelmente às 7:00h … e poucos minutos depois das 7 estava a começar a caminhar! Deixando o carro em Caldas de Manteigas, dali comecei logo por subir a bom subir para a Estrada dos Covais, um troço de corta mato acompanhado pelo som da Barroca das Lameiras, cujas águas de quando em vez se soltam em espectaculares cascatas. Já na antiga estrada florestal, a densidade do denso pinhal deixa perceber, por entre a miríade de troncos altaneiros, que me estava a afastar de Manteigas, tanto em distância como em altitude. A uma curva da estrada surge a Casa Florestal dos Covais … ou o que dela resta, abandonada no tempo e na incúria dos governos, como infelizmente todas as suas semelhantes por esse país fora.


Casa Florestal dos Covais e panorâmica sobre
Manteigas e o vale do Zêzere
Aos 1200 metros de altitude, junto à ponte sobre a Barroca de Porto Novo, inicia-se a subida vertiginosa para a Nave da Mestra. A estrada dos Covais continua para sul, mas, inacabada, termina no Barranco dos Covões. Também um dia gostava de explorar esse troço e eventuais vias para dali descer ao vale do Zêzere, ou subir para o Fragão da Risca e Nave da Mestra.

E aí vai o caminhante solitário... J
Para trás ia ficando a subida do vale do Zêzere para a Nave da Mestra
Dos 1200 aos 1500 metros de altitude anda-se sensivelmente 1km; inclinação média de 30%...! A subida é cansativa mas espectacular. Para trás, lá no fundo, vai ficando o vale do Zêzere. Para a frente começa a desenhar-se a imponência das partes altas da serra … e começa a aparecer neve! O desnível suaviza um pouco, mais 100 metros e estou na Laje do Gamão. À minha frente está o geodésico do Curral do Martins, à esquerda percebem-se já os blocos graníticos da Nave da Mestra, a 1640 metros de altitude.

Laje do Gamão, 1600 metros de altitude
A chegar à Nave da Mestra, 1650 metros
A neve abunda já por todo o lado … mas ainda não fui obrigado praticamente a pisá-la. No entanto reparo, ao aproximar-me, que a própria fenda da Nave da Mestra, que já atravessei por duas vezes … está agora obstruída pela neve, completamente fechada! Eram 11 horas quando cheguei à casa da Nave da Mestra. Tinha levado quase 4 horas para percorrer 6 quilómetros! Há muito que não me sabia tão lento... J.


Na Nave da Mestra,
junto à casa do Dr. Matos
Reza a história que um juiz, o Dr. Matos, construiu ali a sua casa de férias em 1910. A construção foi concretizada pela mão-de-obra vinda de Manteigas em cima de mulas, ajudada por macacos hidráulicos utilizados para levantar as pedras gigantes, incluindo aquela que faz de telhado à casa. Agora, a quantidade de neve acumulada junto à casa era enorme, constituindo uma autêntica barreira e cobrindo grande parte dos acessos! Com o Sol, o degelo fazia brilhar de água os poucos espaços de terreno não cobertos de branco.

Lá ao fundo, mais uma vez ... também há neve na Serra de Béjar...
A partir da Nave da Mestra tinha duas opções: uma, mais curta, seria pelo geodésico do Piornal, sempre para sul, direito à Lagoa da Candeeira. Mas além de ter uma descida abrupta mais longa e, eventualmente, difícil, perderia a parte superior do vale da Candeeira. A outra opção foi-me aconselhada pela Trilhos de Ideias: mais longa, da Nave do Gamão subiria até próximo do geodésico do Cume, para apanhar a Candeeira desde o seu começo, vigiado pelo Fragão do Poio dos Cães. Optei por esta última; embora receoso da quantidade de neve que iria encontrar mais acima, dava-me mais confiança o conselho da Trilhos de Ideias do que o percurso seguido por um desconhecido.

Nave do Gamão, vista dos Azimbres (1700m alt.)
Embora já a pisar neve, da Nave do Gamão até próximo do Cume a progressão foi-se fazendo sem problemas. Num dia de eleição, as panorâmicas eram sublimes, tudo à minha volta era sublime! O vale da Candeeira ia-se começando a perceber, para lá do Covão do Ferro; para sul já se via também a Torre; e para leste, lá muito ao fundo … lá estavam as alturas também alvas de Béjar!

Subida da Nave do Gamão ao Cume
E ... Torre à vista!
A maior altitude desta "aventura" atingi-a junto ao Fragão do Poio dos Cães, 1860 metros … mais de mil metros acima das Caldas de Manteigas. E comecei a descida para o vale da Candeeira … e que descida…! Sem neve, será uma descida exigente mas perfeitamente acessível … com neve a coisa é diferente … principalmente para quem não é adepto de "aventuras" na neve... J. Como me lembrei do Monte Perdido Extrem! Como me lembrei da descida de Tucarroya para o lado francês…! Na Candeeira, tinha felizmente a sorte de a neve ser fresca, fofa, não tendo ainda passado a gelo, mas mesmo assim … foi um pouco "aventuroso". Abençoei a hora em que me lembrei de levar os crampons, que até ali não tinham sido necessários; sem eles, ali, penso que teria sido obrigado a voltar atrás e rumar à Torre, onde tentaria arranjar uma boleia para Manteigas. E mesmo com crampons, alguns troços de descida foram feitos … de traseiro no chão e travando com os calcanhares na neve e as mãos atrás, a auxiliar a travagem! Não convinha ir parar à Candeeira depressa demais... J.

Fragão do Poio dos Cães, no início da descida para o Vale da Candeeira
Descida "aventurosa"
para a Candeeira...
Lá em baixo está a Lagoa do Peixão ... gelada!
Do início da descida à Lagoa do Peixão demorei uma hora … e daí ao vale uma hora e meia. Duas horas e meia para percorrer … menos de 3km! Quando olhava para trás … mal acreditava de onde tinha vindo…! A sensação, contudo, era de "perdido" naquele mundo de rocha, água e neve, sozinho … levando-me o pensamento algures para as aventuras de Heinrich Harrer...! A Lagoa do Peixão estava praticamente congelada superficialmente e só na encosta norte do vale – portanto exposta a sul e ao Sol – não havia neve … fazendo-me pensar se não teria feito melhor em vir pelo Piornal e descer essa ladeira, embora vertiginosa.

Já se vê a Lagoa da Candeeira ...
mas até lá chegar...
O imponente vale da Candeeira abre-se aos meus pés...
Cascatas no vale da Candeeira ... e de onde eu vim... J
Pouco depois das quatro da tarde estava a 1400 metros de altitude, junto ao abrigo da Candeeira. Ao longo do vale ainda havia neve, mais espaçada, mas misturada com a muita vegetação, o que fazia com que por vezes o que parecia firme não o fosse … e me enterrasse até aos quadris…! O trilho perde-se aliás na vegetação, levando a que quando não era a neve a oferecer resistência … me visse envolvido no mato que por vezes me cobria. Mas a Lagoa da Candeeira lá surgiu finalmente, já perfeitamente líquida e reflectindo as encostas que a rodeiam.

Lagoa da Candeeira
Às quatro e meia comecei a descer da Lagoa da Candeeira para o vale do Zêzere. Neve já não havia … mas a exigência do percurso continuou a ser grande, pela grande quantidade de pedra solta, de todos os tamanhos e feitios. Mais uma vez o Monte Perdido Extrem veio-me à memória, desta vez pela última e fabulosa etapa, na descida do Colado de Añisclo para Pineta. Muito menos desnível agora, claro, mas também um autêntico teste a "nuestras rodillas", sempre a descer e a fazer equilibrismo de pedra em pedra. E quase logo quando se começa a descer … surge a imponente Cascata da Candeeira, infelizmente já à sombra, mas apesar disso espectacular. As águas da ribeira da Candeeira precipitam-se ali para o vale do Zêzere, em leques e saltos sucessivos, num espectáculo natural só visível … por quem anda por fragas e pragas…

Cascatas da Ribeira da Candeeira
E a descida para o vale do Zêzere ... não propriamente fácil... J
Quase a acabar a "aventura", a chegar ao pontão de madeira que atravessa o Zêzere
Dali a Caldas de Manteigas já era "canja"... J
Passava pouco das cinco e meia quando cheguei ao Zêzere, no pontão de madeira que recebe quem vem da Candeeira … ou de uma "aventura" na Serra. Tinham sido 16 quilómetros de "aventura" … mas faltavam-me ainda 5 quilómetros para Caldas de Manteigas, embora já em terreno fácil e meu conhecido. Iria já terminar ao lusco fusco, abençoando a hora em que decidi começar ao nascer do Sol. Mas como todos os "diabos" têm sorte … uns 500 metros depois da ponte de madeira passa por mim um carro de carga, com dois ocupantes que tinham ido tratar dos terrenos no vale alto do Zêzere … e foi assim com eles que regressei a Caldas de Manteigas, pela estrada, percorrendo em 10 minutos o que, a bom ritmo, me levaria no mínimo uma hora... J!
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De regresso a Vale de Espinho, para trás ficou a Serra da Estrela e mais esta "aventura" por fragas e pragas. Provavelmente com a  Trilhos de Ideias, hei-de um dia voltar ao vale da Candeeira, para melhor apreciar a cascata e a grandiosidade do vale … mas sem neve e sem andar "perdido" no meio do mato, à procura do trilho... J. Foi contudo, sem dúvida alguma, uma "aventura" fabulosa! Poderia chamar-se mesmo … “Uma Aventura na Serra da Estrela”, como no romance de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada... J.

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