A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (9)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
DOMINGO, 10 DE SETEMBRO DE 2034 - SOB A DOCE LUZ DA PROVENÇA
Depois de 60 etapas consecutivas e com mais de 1600 km nos pés, estou em Arles ... sob a doce luz da Provença. Quase me parece impossível ter saído de casa há já dois meses ... ter deixado o ninho há tanto tempo ... e mais impossível ainda estar apenas a menos de um quarto do Caminho... 🙃😱
Bordejando o Mare, entre Ginestet e Castanet-le-Haut, 01.09.2034, 11h05
Nestes dez dias desde a última crónica, os primeiros foram bastante montanhosos. Comecei setembro com a maior altitude do Caminho no Maciço Central, o Cap de Faulat, a 1019 metros de altitude, pouco antes de Ginestet, através de belos bosques de castanheiros e faias e descendo para o vale do ainda jovem rio Mare, com troços que mais pareciam de um paraíso, salpicado de aldeias pitorescas, como Castanet-le-Hault, Andabre e Saint Gervais-sur-Mare, a minha primeira escala do novo mês.

Através de um paraíso, chego a Saint Gervais-sur-Mare, fim de etapa, com a sua Igreja românica dos irmãos mártires milaneses, St. Gervais e St. Prothè - 01.09.2034, 15h00
E se o primeiro dia de setembro foi através do paraíso ... os dias seguintes não o foram menos. Sem dúvida as etapas raínha desde Toulouse, no que a montanhas e florestas diz respeito, numa sucessão de cols, próximos dos mil metros de altitude. À saída de Saint Gervais, cruzei o Mare pela ponte medieval des Trois Dents. Particularmente nesse dia, agradeci ao Universo a benção que tenho tido com a meteorologia; se esse sábado tivesse sido de chuva ... 28 km de montanha, por trilhos sinuosos e muitas vezes pedregosos, saltando de col em col, teriam sido bem penosos.
A Ponte Medieval des Trois Dents, sobre o Mare, à saída de Saint Gervais, 02.09.2034, 07h25
Por trilhos sinuosos e pedregosos, de col em col, cheguei ao Castelo e rio Gravezon em Lunas, 02.09.2034, 16h10
sobre a Soulondre, Lodève, 03.09.2034, 16h05
Catedral de Saint Fulcran e Ponte medieval
Nestas etapas de montanha tive de transportar sempre ... o kit de sobrevivência 😂. As povoações são poucas e pequenas, sem hipóteses de abastecimento. Felizmente os Gîtes em Lunas e Lodève oferecem meia pensão, pelo que pelo menos o jantar tinha garantido. E em Lodève ... senti-me mais perto de casa. O proprietário do Accueil Pequena Galicia, Jérémie Gallegos, tem raízes galegas. Curiosamente, nas etapas do maciço central, foi a única em que tive companhia, um casal de Arles que deixaram a sua cidade natal uma semana antes, para percorrerem o Caminho até Toulouse. Assim ... fomos quatro ao jantar, confeccionado pelo Jérémie e pago por donativo, junto com a dormida.
Lodève é uma bela e histórica pequena cidade, a capital do planalto de Hérault, na confluência dos rios Lergue e Soulondre. A riqueza da arquitetura testemunha um passado como influente cidade episcopal. O prelado mais importante foi Saint Fulcrain (919 - 1006), que deu início à Catedral e amuralhou a cidade, que chegou a ter hospital de peregrinos, com Capela de Santiago.
Entre Lodève e Soumont, com o lago de Salagou ao fundo, 2ª feira 04.09.2034, 08h30
A etapa de segunda-feira terminou em Saint Jean-de-la-Blaquière, com o Gîte Municipal só para mim... 😂. No dia seguinte, pouco mais de 4 km depois de Saint Jean, sobre o vale do rio Hérault ergue-se majestoso o Rocher des Deux Vierges. Conta a lenda que, em tempos ancestrais, duas jovens e belas irmãs, apaixonadas pelo mesmo cavaleiro, se viram divididas por um amor impossível. O cavaleiro, incapaz de escolher entre as duas, partiu para a guerra, deixando as irmãs consumidas pela tristeza e pelo ciúme. Desesperadas e sem notícias do seu amado, as irmãs subiram ao topo do rochedo, decididas a acabar com o sofrimento. Abraçaram-se e lançaram-se no vazio, encontrando a morte nas águas turbulentas do rio Hérault. Comovidas pela tragédia, as fadas da floresta decidiram imortalizar o amor e a dor das duas irmãs, transformando-as em dois imponentes rochedos que, desde então, se erguem no topo da montanha, como um eterno testemunho da sua paixão e do seu sacrifício.

Rocher des Deux Vierges e vista para as últimas colinas do Maciço Central, 05.09.2034, 08h45
Em noites de lua cheia, diz-se que ainda é possível ouvir o lamento das duas virgens ecoando pelo vale, e que as suas almas ainda vagueiam pela região, à procura do cavaleiro que nunca mais voltou.
Esta foi a última etapa de sobe e desce desta série, mesmo assim terminando ... no "deserto". Saint Guilhem-le-Désert deve o seu nome ao facto de ter sido sempre pouco habitada e remota, mas também a Guilherme de Gellone, um nobre do Séc. IX que se tornou monge, mais conhecido por Guilherme de Orange, personagem lendária nas canções de gesta francesas, onde é retratado como um herói que lutou contra os muçulmanos e defendeu a Cristandade. Não confundir com diversos outros Guilhermes de Orange da História francesa, inglesa e holandesa.
Abadia de Gellone, em Saint Guilhem-le-Désert, 05.09.2034, 16h45
Saint Guilhem-le-Désert estava contudo tudo menos desértica. Os turistas acotovelavam-se nas ruas medievais e nas lojas. Felizmente a Maison Saint-Élie, gerida pela comunidade de monjas carmelitas, é exclusiva a peregrinos. E na quarta feira esperavam-me as imponentes Gorges de l'Hérault.

Gorges de l'Hérault e Pont du Diable, entre Saint Guilheme-le-Désert e Saint Jean-de-Fos, 06.09.2034
Não há palavras para as impressionantes Gorges de l'Hérault. Senti-me um grão de poeira diante da eternidade e grandiosidade da Natureza. As impressionantes falésias e desfiladeiros são o resultado de um longo processo de erosão, esculpido pela força da água e do tempo ... as mesmas forças que esculpiram a Gruta de Clamouse, pouco antes de chegar à Ponte do Diabo, sobre a qual se tecem lendas idênticas às de outras pontes, como aquela, construídas em locais quase inacessíveis ... obras do diabo!
Por Aniane e La Boissière, quarta feira dormi em Montarnaud ... e no dia seguinte em Montpellier. Tinha descido do Maciço Central ... e estava praticamente à beira do Mediterrâneo. No Gîte Saint-Roch, anexo à Igreja do mesmo nome, voltei a ter companhia: a Paola e a Anna, o Giuseppe e o Mario, quatro amigos italianos, todos sexagenários e aposentados, começaram 2ª feira, em Arles ... a Caminho de Santiago, o Caminho de Arles completo! Pensavam que eu era da idade deles! "81 anni? Ma dai! Ci prendi in giro?", exclamou o Mario. Embora falassem comigo em francês ... aquela expressão saiu-lhe com a espontaneidade típica do seu Piemonte... 😂
Place de la Comédie, Montpellier, 07.09.2034, 17h05
Montpellier tem sido uma das cidades francesas de maior crescimento nas últimas décadas, contudo o centro histórico preserva grande parte da sua arquitetura medieval. A Universidade, uma das mais antigas do país, foi fundada em 1220. Nos cantos e recantos do vibrante tecido urbano, perdemo-nos pelas estreitas vielas com arcos góticos, que contrastam com as grandes praças e avenidas dos séculos XVIII e XIX, como a Place de la Comédie, dominada pela Ópera. Entre 1204 e meados do século 14, a cidade pertenceu ao reino de Aragão, até ser vendida ao rei de França. Foi reduto huguenote, perdendo a maioria dos seus templos medievais durante as Guerras Religiosas. A fase de maior desenvolvimento urbano e esplendor viria sob o reinado de Luís XIV, a partir
Catedral de Saint-Pierre de Montpellier
do final do Séc. XVII.
A Catedral de St.-Pierre é o mais importante monumento gótico da cidade, mas a Igreja de Saint-Roch - à qual pertence o Gîte onde estávamos - tem um significado especial para os peregrinos. Nascido em Montpellier em meados do século XIV, Saint-Roch fez uma peregrinação a Roma, onde contraiu a peste. No regresso, viveu isolado numa floresta, alimentado por um cão, sem ser reconhecido. Tem uma estátua na Rue Saint-Géli, por onde passa o Caminho, no local onde parou para descansar. Após a morte, quando foi identificado, tornou-se padroeiro dos atingidos pela peste e por outras epidemias, sendo venerado em grande parte da Europa.
Arco do Triunfo (Porte de Peyrou), Montpellier, 07.09.2034, 17h45
Uma cidade como Montpellier merece um jantar um pouco mais especial ... ainda por cima tendo companhia. A Paola e o Mario já conheciam o Les Casseroles en folie ... a Anna, o Giuseppe e eu fomos conhecer. E gostámos! Na Place de la Chapelle Neuve, as "caçarolas loucas" ficam aliás muito próximo do Caminho que eu seguiria no dia seguinte, sexta-feira. Foram mais uns memoráveis momentos de convívio, com o calor e a sensação de proximidade que só os Caminhos peregrinos proporcionam. Aliás, apesar de estarmos em sentidos contrários, eu e eles ... em Montpellier eu tinha pela primeira vez razões para já me sentir romeiro: em diversos locais da cidade, já tinha visto uns símbolos de bronze cravados no chão, com uma concha estilizada e a inscrição "Camin Roumieu ". O Camin Roumieu é uma antiga rede de Caminhos de peregrinação que atravessa o sul de França. Embora sem um início e fim determinados, roumieu - ou romieu, em occitano - refere-se especialmente ao peregrino que vai a Roma. Eu estava, portanto, no Camin Roumieu ... pelo que no dia seguinte nos despedimos, com um caloroso Ultreïa !
Despedida da Anna, Giuseppe, Paola e Mario, junto à "nossa"
Igreja de Saint-Roch, Montpellier, 08.09.2034, 07h25 - Ultreïa !
Saí de Montpellier cruzando o Lez pela Ponte da Concórdia. Castelnau-le-Lez é a continuação da área urbana, que só termina aos 6 km de percurso, no bosque de Caylus e junto ao Lago de Crès. Seguiu-se Vendargues, Saint Geniès-des-Mourgues e Saint Christol, primeira das três etapas entre Montpellier e Arles.
Etapas sem muita história, a segunda, ontem, levou-me a Vauvert. Terras de vinhedos ... à medida que me aproximava das Côtes du Rhône ... e da Camargue, bela e selvagem.
Paisagem de campo e vinhedos, entre La Bruyère e Saint-Christol, 08.09.2034, 14h25
Abadia românica de Saint Gilles (Gard), 10.09.2034, 11h55
Hoje saí de Vauvert quase meia hora antes do nascer do Sol. Tinha 36 km pela frente ... e quis tempo à vontade para apreciar a Camargue, em que entrei passada Saint Gilles e a respectiva Abadia. Cruzando o Petit Rhône, entrei também na Provença. Estava também a cerca de 30 km das praias da Camargue, em Les Saintes-Maries-de-la-Mer. Belas memórias ... de há 40 anos!...

Travessia do troço norte do Parque Natural Regional da Camargue ... ou a travessia do Paraíso...
O Parque Natural Regional da Camargue situa-se no delta do Ródano. A Camargue é conhecida pela sua beleza selvagem e única, com vastas paisagens de pântanos, lagoas, salinas e dunas. A fauna é rica e diversificada, incluindo cavalos selvagens, touros, flamingos e muitas outras aves.
Pouco antes das 17h00 de 10.09.2034, chego ao Ródano e a Arles, pela Pont de Trinquitaille, pintada por Van Gogh em 1888
Ao cruzar o Ródano e entrar em Arles, tive a sensação de estar a chegar a uma meta ... e senti ao mesmo tempo um estranho formigueiro. Amanhã já não é Caminho de Arles ... já não é Via Tolosana ... já não é Caminho de Santiago! Arles foi fundada por colonos marselheses. Importante porto durante a dominação romana, a cidade foi sucessivamente ocupada por visigodos e depois pelos mouros. Durante os séculos X e XI pertenceu ao reino da Borgonha; só passou para a coroa francesa em 1481.
Catedral de S. Trófimo e Capela do Santo Sepulcro
A Catedral de São Trófimo é um magnífico exemplo da arquitectura românica provençal. O portal, ricamente esculpido com cenas do Juízo Final, foi sempre uma visão inspiradora para os peregrinos medievais. A presença de peregrinos de toda a Europa contribuiu aliás para a rica vida cultural de Arles, como centro de intercâmbio de ideias, línguas e culturas, o que influenciou a sua arte, arquitetura e música. A Provença era o berço dos trovadores, poetas-músicos que compunham e cantavam canções de amor cortês, mas também canções sobre temas religiosos e temas relacionados com as Cruzadas.
Não sendo um local religioso, as Arenas Romanas de Arles são contudo um dos seus principais ex-libris, como testemunho da história da cidade e da glória do Império Romano.
Há mais de uma semana que tinha reservado lugar no Gîte de Myriam Van Reeth, no centro histórico, junto ao anfiteatro romano. A Myriam é originária de Antuérpia ... e é mais um daqueles "anjos" que "o Caminho" cria. Depois da morte do marido, mudou-se da Bélgica para Arles e adaptou parte da sua casa para receber peregrinos; sim, só peregrinos, com credencial. Um quarto com duas camas e um sofá é tudo o que pode oferecer ... e tinha a lotação esgotada.
No Gîte Myriam Van Reeth, com a própria.
Fiquei no sofá, as irmãs Martine e Monique Van den Berg ficaram nas duas camas, com a curiosidade de serem conterrâneas da nossa anfitriã Myriam. No dia em que eu "viajei no Tempo" para o brutal massacre de Montségur ... elas saíram de Le Puy-en-Velais, pelo Caminho de Regordane, também chamado Caminho de Saint-Gilles, uma rota medieval que ligava Le Puy e mesmo a Île-de-France ao porto de Saint Gilles. Conclusão: só não nos encontrámos de manhã, em Saint Gilles, por acaso. Veteranas dos Caminhos de Santiago, o ano passado fizeram de Le Puy-en-Velais a Saint Jean-Pied-de-Port; o resto do Caminho Francês já o tinham feito em 2030. Este ano ... acabaram hoje, em Arles ... mas querem voltar na próxima primavera, para fazerem todo o Caminho de Arles.
Às sete horas em ponto, a Myriam tinha o jantar pronto para os quatro. Uma
deliciosa Gardiane de Taureau, um prato tradicional da Camargue, feito com carne de touro marinada em vinho tinto e cozida lentamente com ervas aromáticas, alho e cebola, servida com arroz da Camargue. Um Châteauneuf-du-Pape que eu tinha trazido do passeio pelo centro histórico harmonizou perfeitamente com aquela delícia. A Myriam fez um gelado com frutas frescas e natas ... e para terminar ainda fomos os quatro beber um café ao célebre "Café Van Gogh ".
Não podia ter havido melhor remate. Já nalgumas ruas do centro histórico me tinham chegado aos ouvidos alguns acordes de uma música antiga ... música medieval. No Café Van Gogh não tive dúvidas: a música ambiente era de Jordi Savall e Hespèrion XXI !
Café Van Gogh, Arles, 10.09.2034, 20h45 ... quando a música dos Hespèrion XXI ecoava como um portal mágico...
Entre os sorrisos e o burburinho das vozes, no Café Van Gogh, os acordes das harpas, flautas, vielas e outros instrumentos provençais de Jordi Savall e Hespèrion XXI teciam um mosaico sonoro onde a fusão entre Oriente e Ocidente ganhava vida, como que numa homenagem aos trovadores e jograis. Senti-me eu próprio trovador ... sonhador! Esta noite vou provavelmente viajar de novo, numa viagem onírica para a Provença medieval ... para um tempo de cavaleiros e damas, de mistérios e encantos...
Parafraseando Jordi Savall, se a música não nos tornar melhores pessoas, de pouco serve. Amanhã já não é Caminho de Santiago. Amanhã passo a ser romieu ... em busca do conhecimento, em busca da ligação com a história e a cultura, em busca da experiência de uma jornada transformadora ... em busca de mim próprio ... do meu Santo Graal interior. Em noites estreladas ... a Vida é Poesia...
A Cruzada de um Peregrino sem passaporte: Santiago / Arles - 60 dias, 1616 km, 29000m de desníveis acumulados.
Veja aqui todas as etapas. Pode aceder ao mapa de cada uma delas clicando em cada etapa.

Publicado em 26.11.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
A maioria das personagens são ficcionadas, como os restantes peregrinos que vou encontrando.
Nas personagens ficcionadas, qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
Algumas imagens foram criadas e/ou editadas por Inteligência Artificial.
Não é permitida a utilização de imagens ou textos sem a autorização expressa do autor.
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1 comentário:

Graca disse...

É sempre um prazer ler as crónicas e aprendemos sempre ; a referência à ponte levou-me a procurar uma imagem do quadro para o recordar.
“Ci prendi in giro” , expressão engraçada: está a brincar comigo?