A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (6)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
SÁBADO, 12 DE AGOSTO DE 2034 - CAMINHO ARAGONÊS
Dormi razoavelmente bem, na noite de sábado para domingo, em Puente La Reina. Mas acordei ainda não eram cinco da manhã. A Sophia respirava tranquilamente, todo o albergue estava em silêncio. Como tantas outras vezes, fui para a sala de estar, ver e rever o meu itinerário nas etapas seguintes.
New look ... para a despedida e para a nova fase do Caminho
Quando regressei, a Sophia acordava, ensonada. Fui fazer a minha higiene ... e resolvi cortar a barba. Assim, para despedida, a Sophia fica com uma imagem minha mais "limpa". E de facto, quando voltei ... quase não me reconhecia... 😂
O abraço que se seguiu foi marcado por uma profunda emoção. Um abraço que transcendia palavras, carregado de gratidão, de esperança ... e, porque não dizê-lo, também de Amor e de Fé. Ambos tínhamos pela frente a aproximação aos Pirenéus ... por Caminhos diferentes. Saímos de Puente La Reina às 7h, com o Sol a nascer.
Obanos, 06.08.2034, 07h55 ... apenas 2,5 km depois de Puente la Reina. Sob a protecção da Ermida de San Salvador
e da Puerta de Obanos ... a Sophia e eu deixávamos para trás uma parte de nós mesmos... 😓
A Porta de Obanos, no centro da vila ... foi o local simbólico onde se separaram dois peregrinos que viveram 12 dias de Caminho, 24 horas por dia. Um último abraço selou a promessa de que nos iremos manter em contacto ... e naquela grande Plaza de Los Fueros (os foros medievais), fiquei a ver a Sophia a afastar-se. Acenámo-nos mutuamente ... e segui, pelo Caminho Aragonês.
Obanos é uma pequena vila atravessada pelo Caminho de Santiago, onde confluem os dois ramais vindos de França, o de Saint Jean Pied-de-Port e o de Somport. O ramal de Saint Jean Pied-de-Port reúne as Vias Turonensis (proveniente de Tours), Lemovicensis (desde Vézelay) e Podiensis (com origem em Le Puy-en-Velay). O ramal de Somport, por sua vez, corresponde à Via Tolosana, proveniente de Toulouse. O Codex Calixtinus descreve em detalhe estas quatro rotas, percorridas por milhares e milhares de peregrinos ao longo de séculos e hoje consideradas Património da Humanidade.
S.ta Mª de Eunate, 08h20 ... um verdadeiro refúgio de paz, um espaço onde descansei muito mais do que apenas os pés…
Santa María de Eunate é uma Ermida octogonal situada no vale do rio Ilzarbe, entre Obanos e Eneritz. Há quem aponte o local como um ponto de convergência de forças telúricas, outros envolvem-no em mistério e esoterismo, devido aos sinais e símbolos existentes nas pedras da Ermida. Eunate é uma jóia românica, construída na segunda metade do Séc. XII, embora as suas origens não sejam completamente conhecidas. O seu nome original, Onat, significa "a porta boa" (on-ona, bom, e ate, porta), reflectindo a espiritualidade muito especial do templo e do próprio lugar. Eunate... foi o Espaço e o Tempo que eu precisava, na manhã do meu primeiro dia novamente a solo.
Ruínas do Castelo de Tiebas, 11h45
Seguiram-se cerca de 10 km de campos cerealíferos, em suave subida até Olcoz e Tiebas, pela vertente poente da Sierra de Alaitz.
Ainda era cedo, mas almocei em Tiebas, uma tostada com presunto e queijo, regada com uma Vasconia rubia. Os 13 km que me faltavam sabia que eram os mais árduos...
Depois, à medida que subia para Guerendiáin ... começava a ver a poente a Sierra del Perdón!
A Sierra del Perdón vista da Sierra de Alaitz, entre Tiebas e Guerendiáin, 13h10
Na Sierra del Perdón situa-se o Alto del Perdón ... um dos locais mais icónicos do Caminho Francês de Santiago, na variante de Saint Jean Pied-de-Port. Lembro-me bem da passagem pelo Alto del Perdón em 2016 ...
donde se cruza el camino del viento con el de las estrellas. Agora, entre Tiebas e Guerendiáin, sentei-me um pouco a contemplar no horizonte aquele cume mítico. Como que num sonho acordado ... vi claramente a Sophia sentada, de mãos postas, no Alto do Perdão. A vontade de falar era imensa, mas havíamos prometido um ao outro esperarmos até ao final da etapa. E certamente que ela já estava mais à frente, talvez mesmo a entrar em Pamplona ... Pamplona que igualmente surgiu no meu horizonte, próximo da aldeia de Ezperun. Afinal estávamos ainda a escassos 10 km um do outro ... mas no meu sonho acordado estávamos juntos!
Monreal, junto ao rio Elorz, 16h05, em final de etapa. Tinha passado há pouco os 700 km desde Santiago...
O final de etapa foi no belíssimo núcleo urbano medieval de Monreal. Estava a dirigir-me ao albergue quando a Sophia me chamou. Já tinha chegado a Pamplona há quase uma hora, estava encantada com a cidade ... e tinha vivido uma experiência incrível no Alto do Perdão. Eu disse-lhe que a vi de mãos postas, num sonho acordado, uma espécie de viagem astral ... e vi, na videochamada, a expressão de admiração dela ... ao confirmar-me que efectivamente o meu sonho tinha sido realidade...
Sentei no chão, fechei os olhos e me entreguei ao momento! Senti uma força me puxando para dentro de mim ... e comecei a rezar, não com palavras, mas com o coração, numa conversa íntima com o Universo, uma gratidão profunda por tudo que havia vivido até ali. Ao abrir os olhos, sentia-me renovada, o Caminho até ali tinha sido um presente!
Eu escutava-a, maravilhado ... com grossas lágrimas correndo-me pela face. E só lhe consegui dizer ... que a Vida é Bela ... que o Amor é a força maior que nos move e rege!
No albergue municipal, estava com um grupo de 6 catalães vindos de Somport e um alemão solitário, como eu. Com 76 anos ... o Klaus é até agora o peregrino mais velho que encontrei neste Caminho. O número de peregrinos no Caminho Aragonês é de qualquer modo bem inferior ao das 24 etapas anteriores. Jantámos os oito no bar quase ao lado do albergue. Como seria de esperar, o meu projecto de Caminho ... a minha Cruzada a Jerusalém ... foi o tema central do convívio.
Através de um belo bosque, próximo de Salinas de Ibargoiti, 07.08.2034, 07h35
Segunda feira, a etapa começou pela ponte gótica sobre o rio Elorz, à saída de Monreal. Como todos os dias, a minha arraiana telefonou-me. Tinha acabado de cruzar o rio e estava a atravessar um belo bosque de grandes pinheiros e carvalhos. Senti a saudade nas palavras dela, mas ao mesmo tempo a compreensão, a força e até o estímulo.
"A casa nunca mais foi a mesma sem ti. Sinto muito a tua falta, mas a alegria de te ver a realizar esse sonho sossega-me. Procuro ocupar o tempo o mais possível, ainda ontem os nossos Manos Velhos me vieram buscar, passei o dia com eles. É tão bom ter amigos assim." ... foi-me ela contando, com um misto de emoção e alegria.
Ambos chorámos, ambos rimos... Eu disse-lhe que ela está sempre comigo mesmo sem estar ... vai na minha mochila, miniaturizada na forma da pequena e velha ursa de pêlo que transporto sempre que caminho sem ela. Consegui fazê-la rir a bom rir, quando lhe contei que, nos dias que passei acompanhado da Sophia, lhe disse que "a ursa tem uma webcam nos olhos, através da qual a Lala vê sempre onde estou e com quem estou 😂"...
Entre o Alto de Eibar (710m alt.) e Rocaforte, próximo da Fuente de San Francisco, 14h45
Rocaforte também é conhecida por Sangüesa La Vieja, debruçada sobre a confluência dos rios Irati e Aragón. Foram terras de fronteira e de confrontos entre cristãos e muçulmanos e entre os antigos reinos de Aragão e de Navarra. Quando em 1213 S. Francisco de Assis passou por ali, na sua peregrinação a Santiago, a água brotou naturalmente à sua passagem, no sítio que ficou conhecido por
Igreja de Santa María La Real, Sangüesa
Fonte de S. Francisco. Em sinal de agradecimento, o poverello de Assis deixou a sua vieira de peregrino, para que outros caminhantes pudessem mais facilmente saciar a sede. E ali veio a fundar o primeiro Convento Franciscano fora de Itália.
Antes das três e meia estava a cruzar o Aragón pela ponte medieval de Sangüesa, outra jóia histórico-artística de origem medieval, onde se destaca a Igreja Românica de Santa María La Real, junto à ponte, e a Igreja de Santiago. O Albergue Municipal fez ele próprio parte de um antigo Convento. Bem posso dizer que estas etapas estavam a ser, literalmente, como uma autêntica viagem no tempo ... sentia-me na Idade Média ... sentia-me talvez Cruzado...
O Albergue não é grande, uma única camarata com 14 camas, mas ficámos apenas 5 peregrinos ... 2 jovens checas, 1 francês, 1 italiano ... e 1 português já idoso...
Amanhecer pouco depois de sair de Sangüesa, 08.08.2034, 06h55 - Sair cedo, para fugir ao Sol e ao calor, no vale do Aragón
Depois de Sangüesa, mais longe ou mais perto, o rio Aragón ia ser meu companheiro quase até França. Nesse longo percurso, o marco principal é indiscutivelmente o Mosteiro de San Juan de la Peña, berço do Reino de Aragão. Optei por dividir os 70 km desde Sangüesa em três etapas, marcadas pela melancólica solidão, como aliás o Gronze as define. Em pleno agosto, agradeci aos céus as temperaturas não estarem muito altas, já que, tal como as povoações, as sombras são escassas. De qualquer forma ... sair entre as seis e meia e as sete da manhã foi a norma que ditei a mim mesmo. Além de me permitir assistir à alvorada, nas horas de maior calor já estava recolhido.
Barragem de Yesa, na aproximação a Ruesta,
08.08.2034, 14h00
Vale do rio Aragón e ainda a barragem de Yesa, vista
de próximo de Artieda, 09.08.2034, 08h45
Nestas etapas ... achei por bem transportar alguns víveres como "kit de sobrevivência". Contudo - e o meu "mano" Zé Messias que me perdoe, ele que é sempre ultra previdente - parte do kit não era necessário, comprovando a minha habitual "tese" de que o Caminho nos dá tudo. Na terça feira almocei junto à Ermida de Santiago, que chegou a ser albergue de peregrinos, à entrada de Ruesta.
Dormir em Ruesta foi uma experiência única no Caminho. Ruesta é uma aldeia abandonada desde 1959, dado que a barragem de Yesa inundou os campos de cultivo, que eram o sustento dos seus habitantes. Em 1988, a CGT aragonesa passou a encarregar-se do que restava da aldeia, incluindo a recuperação de duas casas transformadas em Albergue. Os hospitaleiros confeccionam o jantar; éramos 10, os 2 hospitaleiros e 8 peregrinos. O Marco, italiano, encantado com o meu projecto, atirou-me com um "Ci vediamo a Roma" ... que me deixou a pensar numa opção mil vezes pensada mas não decidida: na minha Cruzada ... vou por Roma ou pelos Balcãs? Ainda tenho muito tempo para decidir...
A Sophia entretanto chegara a Roncesvalles. Faltava-lhe apenas a Ruta de Napoleón ... a grande travessia dos Pirenéus. Pedi à Virgem de Biakorri que a acompanhasse e protegesse, como me acompanhou e protegeu há 18 anos, na primeira etapa do meu Caminho Francès, a 28 de abril de 2016 ... no aniversário da partida do pai da minha estrela para outro nível.
Albergue de Arrés, um exemplo de hospitalidade tradicional
Arrés é uma pequena aldeia desde sempre ligada às peregrinações. Desertificada pelo despovoamento, tem recuperado precisamente graças ao Caminho. O Albergue foi hospital de peregrinos e é mantido por voluntários da Federação de Amigos do Caminho. A ceia comunitária, a dormida e o pequeno almoço ... tudo se paga por donativo ... e ainda temos direito a um dos pores do Sol mais espectaculares a que já assisti nos Caminhos de Santiago!
Arrés, 09.08.2034, 21h10 - O Sol põe-se sobre o vale do Aragón e sobre o Caminho percorrido!
Depois deste espectacular pôr-do-Sol, estava de regresso ao albergue quando o ecrã do telemóvel se iluminou. Era a Sophia a enviar-me uma foto ... em Saint Jean Pied-de-Port. Nas 28 etapas que ela previra,
A Sophia, que acompanhou 12 das minhas etapas, entra
em Saint Jean Pied-de-Port, 09.08.2034, 17h00
terminou o seu Caminho Madrid - Sahagun - Saint Jean. Estava eufórica!
Um grupo de brasileiros que iam começar o Caminho Francês, no dia seguinte ... fizeram-lhe uma festa celebrando o final do dela, percorrido al revés desde Sahagun.
Ai, Zé, junto à Virgem de Biakorri eu senti que você estava comigo, mais que em qualquer outro lugar nestes 4 dias. Sua presença me deu força. E quando entrei em Saint Jean, foi como se todas as minhas células vibrassem num misto de emoções!
E efectivamente senti, nas palavras dela, a euforia da conquista, a paz de uma missão cumprida, a gratidão por cada passo, num misto de alegria e nostalgia. Prometemo-nos mutuamente continuarmos em contacto ... alimentarmos o mais possível esta ligação mágica criada no Caminho.
Eu vou continuar com você, Zé, você vai-me sentir!
Anteontem, quinta feira ... saí do albergue eram seis e meia da manhã. Com o céu limpo, a hora azul criava uma atmosfera mágica e serena, à medida que descia a pequena colina onde se situa Arrés.
Igreja românica de Santa María (Séc. XI-XII)
Santa Cruz de la Serós, 10.08.2034, 10h15
Os primeiros 10 km foram praticamente planos, com o rio Aragón à minha esquerda. Duas horas depois estava em Santa Cilia e pouco depois das dez da manhã, já com 16 km percorridos, em Santa Cruz de la Serós, bonita localidade ... onde comecei a subida a sério para o sítio mágico de San Juan de la Peña.
A subida a San Juan de la Peña é um bom teste para os Pirenéus, já que decorre por trilhos de montanha, íngremes e por vezes pedregosos. Dos 760 metros de altitude de Santa Cruz de la Serós, passei aos 1150 metros do "Mosteiro Velho" em pouco mais de 2,5 km. A subida foi lenta, mas eu tinha todo o tempo do mundo. Tinha estado em San Juan de la Peña há 39 anos ... na pré-história em que eu fui professor, com alunos. Já nem sei se esse tempo existiu mesmo ... ou se é apenas uma lenda, como a lenda do Santo Graal, ou a dos irmãos Voto e Félix que, como eremitas, estariam na origem do Mosteiro de San Juan de la Peña, como já vos contarei.
E cheguei a San Juan de la Peña: Monasterio Viejo, 10.08.2034, 11h05
Chegar a San Juan de la Peña a pé é uma sensação sublime. De repente senti-me transportado no Tempo e no Espaço, e para várias épocas e lugares diferentes. Por segundos, pareceu-me estar a atravessar as Foreste Sacre e a chegar ao Sacro Monte della Verna, no Caminho de Assis, que percorri em 2023. Mas logo de seguida recuei muito mais do que 11 anos...
Aí pelo Séc. VIII, um jovem nobre de nome Voto foi caçar para aqueles montes. Atrás de um veado, caiu num precipício mas salvou-se milagrosamente. São e salvo, no fundo do barranco viu uma pequena caverna na qual descobriu uma Ermida dedicada a São João Batista e, no interior, encontrou o cadáver de um eremita. Impressionado pela descoberta, o jovem Voto vendeu todos os seus bens, retirou-se para a caverna juntamente com seu irmão Félix e iniciaram também eles uma vida eremita.
Esta seria a origem do Mosteiro, sobre o qual escreveu Miguel de Unamuno:
… a boca de um mundo de penhascos espirituais revestidos de um bosque de lenda, no qual os monges beneditinos, meio ermitãos, meio guerreiros, veriam passar o inverno, enquanto pisoteavam a neve javalís de carne e osso, saídos dos bosques, ursos, lobos e outros animais selvagens.
A própria origem lendária do Reino de Aragão também encontra as suas raízes na caverna de San Juan de la Peña, quando os guerreiros cristãos, reunidos ao lado de Voto e Félix, decidem nomear o líder que os conduziria à batalha para reconquistar as terras de Jaca e Aínsa. O rei Garcia Sanches I, de Pamplona, concedeu aos monges direito de jurisdição, e os seus sucessores continuaram esta política de protecção. No reinado de Sancho I, San Juan de la Peña torna-se panteão dos reis de Aragão.
E o Santo Graal, o cálice utilizado por Jesus Cristo na Última Ceia? Das muitas lendas acerca daquele cálice místico, fonte da vida eterna, uma das mais famosas localiza-o precisamente no Mosteiro de San Juan de la Peña, para onde teria sido levado para o proteger das perseguições. Os monges tê-lo-iam ali guardado por séculos, até à sua suposta transferência para a Catedral de Valência, por volta de 1437, por ordem de Afonso V de Aragão ... e ainda bem, já que terríveis incêndios devastaram o Mosteiro Velho, principalmente em 1494 e 1675. Na sequência do último, construiu-se o Monasterio Nuevo. O Mosteiro antigo, declarado Monumento Nacional em 1889, não mais foi utilizado, preservando-se como memória do que foi o Mosteiro mais importante do Reino de Aragão na Alta Idade Média.
Miradouro de San Voto, debruçado sobre os barrancos a norte do Mosteiro Velho
Do Mosteiro Velho ao Mosteiro Novo, que distam menos de um quilómetro, poderia seguir directamente, mas, já que tinha tempo, optei por subir ao Miradouro de San Voto e ao imponente Balcón de los Pirineos, de onde se avista uma panorâmica fabulosa para a cordilheira.
Balcón de los Pirineos, uma soberba panorâmica para a cordilheira. Ao fundo, a leste, o maciço do Monte Perdido.
Deixei-me ficar naquele balcón quase uma hora. Estava a escassos 500 metros do Mosteiro Novo e da Hospedaria onde ia ficar. Sentia-me suspenso entre o Céu e a Terra, apetecia-me planar com os grifos que por vezes pairavam no ar. Que sensação de paz e plenitude, mas ao mesmo tempo sentindo-me ínfimo, parte de algo muito maior. O som do vento entre as árvores era uma melodia para a alma. Falei com a minha namorada, partilhei com ela o que via e sentia. Namorada, sim ... namoramos há 61 anos! "E já almoçaste?", perguntou-me. "Não preciso", respondi ... "a paisagem e a sensação de estar aqui alimentam". Mas depois descansei-a, lá lhe disse que já tinha comido, ali mesmo, o resto de um enorme bocadillo que tinha comprado em Santa Cruz de la Serós. Passava já das duas da tarde quando deixei aquele mágico balcão e me dirigi ao Monasterio Nuevo de San Juan de la Peña.
O Mosteiro Novo de San Juan de la Peña, onde se situam também o Centro de Interpretação e a Hospedaria
O Mosteiro Novo é um grande edifício que começou a ser construído no final do século XVII, após o incêndio que devastou o Mosteiro Real em 1675. Destaca-se a fachada barroca da Igreja. O enorme edifício abriga também o Centro de Interpretação, a Hospedaria, um Bar-Restaurante, etc..
Os peregrinos, com Credencial, têm 50% de desconto no bilhete de ingresso nos dois mosteiros ... mas não na hospedaria. Reservei o meu lugar há dias, quando optei por dormir no Mosteiro, sabendo embora que o preço é quase quatro vezes mais que a média dos albergues de peregrinos ... mas não sabia que, quando dizem que "la clave de su oferta hostelera es la comodidad " ... se referem a níveis de luxo fora dos padrões, tanto peregrinos como monásticos. A Hospedaria, situada na ala sul das antigas dependências monásticas, esteve encerrada vários anos, mudou várias vezes de gestão, passou por sucessivas obras, até que reabriu no verão de 2025 ... pelos vistos como hospedaria de luxo. É claro que, um mês depois de sair de casa, me soube muito bem ter um quarto privado, com WC privado, uma banheira privada (onde ia adormecendo em imersão em água bem quente), tudo ... mas preferia sentir-me como me senti em la Verna, em 2023. Do misticismo de San Juan de la Peña, ficar lá foi a experiência menos mística ... mas compensada durante um pequeno passeio depois do jantar...
San Juan de la Peña, 10.08.2034, 21h00 - A hora dourada em San Juan de la Peña foi simplesmente mágica, compensando a desilusão com a magia do Mosteiro Novo ... ou com a falta dela...
No dia seguinte, ontem de manhã ... acordei eram 4 e pouco! Ao fim de um mês de Caminho ... que sensação estranha, sozinho num quarto, sem ouvir outros peregrinos, ter uma cama larga, com lençóis brancos, um roupão de banho, gel, shampoo, sabonetes ... que parafernália, que eu já nem sabia que existia. Ainda tentei voltar a dormir ... mas não fui tocado pelo ceptro de Hipnos, deus do sono... 😂
Às cinco da manhã estava por isso de novo de molho na banheira, com água bem quente. Todo o corpo agradeceu estas benesses, mas principalmente os pés. Felizmente sem problemas de maior, nem ampollas dignas desse nome ao longo de 30 dias, mas claro que os ditos são a parte mais sofrida.
As mordomias da Hospedaria permitiram-me o pequeno almoço no quarto, deixado de véspera ... e às seis e meia da manhã estava a sair, com o céu ainda estrelado e a assistir ao nascer de um novo dia.
17 km depois estava de novo no vale do Aragón - Cidadela de Jaca, 11.08.2034, 10h40
Jaca foi a primeira capital do Reino de Aragão, entre 1035 e 1096, quando a capital foi transferida para Huesca. No meu Caminho, destaquei três monumentos de entre o extenso legado histórico e artístico da cidade: a Igreja de Santiago, construída no século XI;
Catedral de Jaca, dedicada a S. Pedro ... e esplanada da "Casa Fau"
a grande Catedral de S. Pedro, também dos Séc. XI-XII e uma das primeiras construções românicas de Espanha; e a Cidadela, magnífica fortificação militar pentagonal, que começou a ser construída no final do século XVI, por ordem de Filipe II, que temia uma invasão francesa que não se deu. Jaca é hoje uma cidade dinâmica, apelidada por vezes a "Pérola dos Pirenéus", importante etapa do Caminho de Santiago por Aragão.
Junto à Catedral, almocei na "Casa Fau ", com três peregrinos húngaros. "Shall we walk together to San Juan de la Peña?", perguntou o Lajos. Deixei os três espantados com a minha resposta: "No, I'll arrive tomorrow at Somport " ... e ainda mais com o meu projecto de Cruzada. E seguimos os nossos Caminhos opostos, continuando a subir o curso do rio Aragón, no meu caso. Até Castiello de Jaca, nove quilómetros mais a norte, ainda me cruzei com mais alguns peregrinos, causando sempre a admiração por estar a caminhar em sentido contrário. França estava cada vez mais perto...
Castiello de Jaca, 11.08.2034, 16h10 ... e entrara nos Pirenéus profundos...
Castiello de Jaca é uma bela aldeia localizada numa colina sobranceira ao vale do Aragón. Na parte mais alta, destaca-se a Igreja de San Miguel (Séc. XII), de origem românica. Tinha optado por pernoitar no Albergue A' Noguera, que se veio a revelar uma excelente escolha. A maioria dos peregrinos, descendo os Pirenéus, vão ficar a Jaca, pelo que em Castiello apenas fiquei com due coppie de italianos vindos de Oloron Sainte-Marie. O albergue não é barato (para ir preparando a bolsa para os preços em França...), mas alia de forma extraordinária a beleza da paisagem ao bom gosto e comodidade das instalações. Acabei por ficar de novo sozinho numa camarata de quatro, já que, naturalmente, os dois casais ocuparam uma das outras idênticas. E o jantar e pequeno almoço, em conjunto com a simpática hospitaleira, foram muitíssimo bem servidos. Só a paisagem já alimentava...
Pequeno almoço panorâmico ... e completíssimo! Albergue A' Noguera, 12.08.2034, 07h30
E hoje ... último dia em Espanha! A sensação é estranha. 24 km de subida quase permanente ... quase mil metros de acumulado positivo ... 864 km percorridos desde Santiago! Estou em Somport ... a mais de 1600 metros de altitude. Saí de casa há 32 dias! Tudo é uma sensação estranha. Sinto-me a viver num Universo paralelo ... numa espécie de twilight zone entre a realidade e o sonho ... como se tivesse atravessado um portal Espaço / Tempo ... como se estivesse a viver numa outra dimensão!
Ponte medieval de Canfranc, ou de los Peregrinos, 11h10
Saí de Castiello de Jaca já passava das oito horas, depois daquele belo pequeno almoço. Com o rio Aragón no vale, sempre à minha direita, fui subindo para Villanúa, primeiro, e depois para Canfranc, acima já dos mil metros de altitude. Entre Canfranc e Canfranc-Estación, o percurso transforma-se num delicioso trilho, através de um extenso bosque de faias.
Canfranc-Estación ... curioso nome para uma povoação a 4,5 km de Canfranc. O nome deve-se à impressionante Estação Internacional de Canfranc, inaugurada pelo Rei Afonso XIII em 1928, uma vez terminada a construção do túnel ferroviário de Somport, entre Espanha e França.
Estação Internacional de Canfranc, desactivada em 1970 e transformada em Hotel de luxo em 2023
É contudo possível chegar à Estação de Canfranc de combóio. A nova estação, bastante mais pequena, situa-se ao lado do Hotel em que se transformou a antiga e monumental Estação Art Nouveau. Aliás, para retemperar forças para a continuação da subida, uma negrinha "Pirineos Bier " acompanhou um bom trozo de tortilla, no bar da nova estação 😄
Durante mais de 50 anos, o túnel e a linha ferroviária de Somport caíram no abandono, sendo portanto a nova estação de Canfranc a estação terminal. A situação foi no entanto revertida em 2026, voltando a histórica linha a ser internacional e ligando Jaca a Pau.
Candanchú, 14h55 - Ruínas do Hospital de Peregrinos de Santa Cristina, importante centro de acolhimento na Idade Média
E às 15h10 de 12 de agosto, ao 31º dia de Caminho ... chego a Somport, na fronteira francesa. Sim ... foi dali que eu vim... 😲
O Col de Somport, situado a 1640 metros de altitude, marca a fronteira entre Espanha e França. Uma fronteira é, quer queiramos quer não, um marco significativo, um limite, uma etapa, especialmente num Caminho de Peregrinação ... numa Cruzada. Uma fronteira diz-nos que realizámos uma parte da missão que nos propusemos. Chegar a Somport foi um momento de grande emoção, a primeira fronteira deste vasto projecto em que me lancei ... desta aventura "louca" de um octogenário "louco"...

Col de Somport (1640m alt.) e Albergue Aysa, na fronteira ... mas entrar em França fica para amanhã...
No Col de Somport, ainda do lado espanhol, o Albergue Aysa aloja uma diversidade de amantes da montanha e dos caminhos, ou Caminhos: peregrinos, montanhistas, simples turistas, a pé, de moto, de carro. Tinha reservado uma cama ... e ainda bem, já que os 40 lugares estavam esgotados. Na camarata de dez que me "saiu na rifa", só eu e três catalães somos peregrinos, claro que eles para começarem amanhã o Caminho Aragonês. "Bombardearam-me" com perguntas sobre a minha experiência. Eu também inicio amanhã ... mas inicio amanhã a minha Cruzada em terras dos Pyrénées-AtlantiquesNouvelle-Aquitaine ... afastando-me cada vez mais do meu "ninho"... 😕
A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (Espanha): 31 dias, 864 km, 15200m de desníveis acumulados.
Veja aqui as 31 etapas desde Santiago. Pode aceder ao mapa de cada uma delas clicando em cada etapa.
Publicado em 31.10.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
A maioria das personagens são ficcionadas. Qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
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3 comentários:

Graca disse...

Mais uma bela lição de História.
O que significa C G T aragonesa?
Com que então os hotéis fornecem pequenos almoços no quarto às 6 da manhã?
Continuação de um bom caminho e das interessantíssimas informações que nos vais dando.👏👏👏

José Carlos Callixto disse...

Obrigado, Graça 😊
CGT quer dizer o mesmo que cá, Confederação Geral de Trabalhadores.
As próximas crónicas já serão em França, em terras occitanas.

Graca disse...

Se esses manos velhos formos nós é sinal de ainda estamos vivos e a mexer😂😂😂😂